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Estas 20 Cartas a um Amigo, da filha de Stalin, não constituem memórias de um
marxista que renegou a doutrina, nem um panfleto político, nem tampouco a
apologia da personalidade de seu pai ou do regime que ele ajudou a implantar e
que consolidou com mão de ferro.
Trata-se de um documento humano, profundamente humano, a livre e
espontânea confissão de uma alma de criança grande que acaba de despertar,
ainda assustada e trêmula, de uma longa noite de pesadelos.
Alegre e feliz em sua infância, que recorda a cada passo, com lírica ternura, cedo
perdeu a mãe — e êsse momento assinala, para ela, e coincidentemente também
para a Rússia, uma reviravolta total. Começou então a onda dos expurgos, das
torturas físicas e dos campos de concentração, em que foram sendo tragados, um
a um, seus amigos mais próximos, os tios, os irmãos, os namorados.
Espírito observador, Svetlana pôde registrar e interpretar as atitudes e reações
dos personagens que conheceu na intimidade, desde o semi-analfabeto e todo-
poderoso guarda-costas de Stalin, o “general” Vlássik (que reunia os mais
famosos artistas do país para ditar-lhes como escrever, pintar ou produzir teatro)
até o antigo e astuto camponês Khruschev, que exibia as mãos cheias de trigo,
para o chefe ver “como nossa terra é rica” (embora nessa mesma época o povo
passasse fome), ou o ministro da Defesa, marechal Bulgânin, a bajular o filho do
grande ditador, um general de vinte e poucos anos, alcoólatra inveterado, ao qual
puniu e transferiu para a reserva, no mesmo dia do sepultamento de Stálin. isto
para não falarmos no mau caráter Lavrênty Béria.
Mas registra igualmente, a Autora, os instantes de grandeza dos “marxistas-
idealistas”, seu comportamento heróico diante da traição e da morte. Os bons e
os honrados, os dignos e os simples, como sua babá, tiveram a devida
consagração nestas páginas.
Sem pretensões literárias, escrevendo com natural fluência, Svetlana Alliluyeva
nos oferece, neste livro, um vasto e movimentado painel da vida soviética, em
seu período mais dramático, com detalhes absolutamente inéditos, verdadeiras
revelações, só possíveis graças ao privilégio mesmo de seu observatório, situado
nos bastidores.
Aí se encontram, misturados, lances de tragédia e cenas de ópera-bufa,
enternecidas odes à natureza e uma amostragem, sem malícia porém bem
expressiva, daquele processo de degenerescência das bases igualitárias do
regime, tão bem satirizado no Animal Farm, de Orwell.
Livro magoado, sincero, vigoroso. Fascinante livro.
Osvaldo Peralva
SVETLANA ALLILUYEVA
20 Cartas a um Amigo
As Memórias da Filha de Stálin
Traduzido do original russo por Osvaldo Peralva
editôra
NOVA FRONTEIRA
© 1967, Svetlana Alliluyeva Copyright 1967 by Ocpex Establishment
All rights reserved
Capa
ESTÚDIO JB
Revisão
TARNAPOLSKY
Pedidos pelo telégrafo NEOFRONT
Direitos de publicação no Brasil reservados pela EDITORA NOVA
FRONTEIRA S. A.
Rua do Carmo, 27 - 4.° andar — Tel. 31-5830 Caixa Postal 3812 Rio de Janeiro
— GB.
À memória de minha mãe
Nota do tradutor
A presente tradução foi elaborada de acordo com os últimos originais russos
enviados dos Estados Unidos, contendo todas as correções feitas pela autora, nas
margens das provas tipográficas, e às quais ela mesma se refere no preâmbulo.
Procurei manter-me absolutamente fiel ao texto, reproduzido em português
quase ao pé da letra, evitando qualquer tentação de retocar-lhe o estilo. Sua
maneira desataviada de exprimir-se, certas repetições antiestéticas de palavras, o
abuso das reticências e dos travessões, tudo foi deixado como está em russo.
Minha colaboração se limitou a explicar, em notas ao pé da página (todas as
quais de responsabilidade do tradutor, salvo naturalmente aquelas em que se
menciona ser da própria autora), o significado de algumas siglas, de alguns
nomes de pessoas e lugares, de algumas frases.
Em face da inexistência de uniformidade no modo de grafar, entre nós, os nomes
russos, adotei a seguinte regra, nos dois casos principais: o e russo, que se
pronuncia como ie, deixei como e mesmo, isto é, com o som que tem em
português (exemplo: Allilúeva, em vez de Allilúieva, como seria o correto);1 o x
russo, que se pronuncia aproximadamente como o h aspirado inglês ou o j
espanhol, representei por kh, como aliás já está internacionalmente
convencionado. As línguas que não possuem o som de nosso j, costumam
apresentar o equivalente russo como zh. Assim, os espanhóis escrevem Zhdanov,
e até mesmo em português tem aparecido, inexplicavelmente, grafado assim.
Aqui, porém, escrevi Jdânov. Já Khruschev, cuja grafia mais certa, em
português, seria Khrustchiov (aqui o e russo é tremado e soa como iô), está de tal
modo conhecido como Khruschev, que achei melhor escrevê-lo como todos o
fazem.
Vali-me da ajuda de duas pessoas que conhecem bem a língua russa, e uma delas
com a vantagem de ter nascido na Geórgia (terra de Stálin, em largos trechos
referida no livro) para decifrar vários pontos insuficientemente claros, alusões a
costumes e hábitos regionais e mesmo certas palavras pouco legíveis, escritas a
mão, nas correções do texto tipográfico.
Este trabalho foi feito nas minhas escassíssimas horas vagas, e ao terminar uma
parte devia enviá-la imediatamente à composição e impressão, sem dispor de
tempo para uma releitura, em conjunto, da tradução. Que o leitor releve, pois, as
imperfeições. Como a gente do interior costuma fazer em suas cartas, peço que
desculpem a letra pois escrevi às pressas.
Mas, sinceramente, não creio que se detenham nessas miudezas, porque algo
muito mais importante há de prender-lhes a atenção: o extraordinário conteúdo
humano destas Cartas, que têm a força e a trama de uma tragédia grega.
O.P.
1 A Editora esclarece que a grafia ALLILUYEVA, por este motivo, só foi
mantida nos casos em que o nome da autora não faz parte do texto ou aparece
como assinatura do original.
VINTE CARTAS A UM AMIGO
Estas cartas foram escritas no verão de 1963 na aldeia de Júkovka, perto de
Moscou, num período de trinta e cinco dias. A forma livre com que as redigi
permitiu-me ser absolutamente sincera, e considero estes escritos uma confissão.
Eu não havia pensado então sequer na possibilidade de publicá-las em livro.
Hoje que essa possibilidade surgiu, não vi razão para fazer nelas qualquer
alteração, embora tenham decorrido já quatro anos e hoje me encontre longe da
Rússia.
Além das necessárias correções no processo da preparação dos originais para a
imprensa, de alguns cortes e acréscimos insignificantes, o livro permaneceu do
mesmo modo em que foi lido por meus amigos em Moscou.
Agora, gostaria que cada um dos leitores destas cartas, considerasse-as como
dirigidas pessoalmente a ele.
SVETLANA ALLILUYEVA
Locust Valley, maio de 1967
16 de julho de 1963
Como está calmo aqui! A apenas 20 quilômetros, Moscou — ignívomo vulcão
humano, lava incandescente de paixões, ambições, política, divertimentos,
recepções, infortúnios, futilidades. . . Congresso Mundial de Mulheres, Festival
Mundial de Cinema, negociações com a China, notícias, notícias de todo o
mando, pela manhã, durante o dia e à noite... Os húngaros chegaram, artistas de
cinema, vindos de todas as partes da Terra, passeiam pelas ruas, mulheres negras
escolhem souvenirs no GUM 1... A Praça Vermelha — a qualquer hora que se
vá ali — está cheia de gente de tudo quanto é cor, e cada pessoa trouxe consigo
para cá seu destino próprio, seu caráter, sua alma.
Moscou referve, agita-se, sufoca-se, e está sempre ansiosa de novidades —
acontecimentos, notícias, sensações. E cada pessoa — cada pessoa em Moscou
— quer ser a primeira a saber da última novidade. Eis o ritmo da vida moderna.
E, aqui, tão calmo.
O sol da tarde doura o bosque e a grama. Este bosque é um pequeno oásis entre
Odíntsovo, Barvikha e Romáchkovo. Um oásis onde não mais se constroem
casas de campo, nem abrem estradas. Mas continuam a limpar o bosque, a ceifar
a grama e remover os gravetos. Aqui vêm passear os moscovitas. “O melhor
repouso para um fim-de-semana”, segundo proclamam o rádio e a televisão. Isto
significa caminhar, com a mochila nos ombros e um cajado nas mãos, da estação
de Odíntsovo à estação de Üssovo ou até Ilínski, através do nosso abençoado
bosque com suas maravilhosas clareiras, seus barrancos, prados e bosquetes de
bétulas. Durante três ou quatro horas o moscovita vagueia pelo bosque, respira
oxigênio. Sente-se como redivivo, revigorado, cheio de saúde, refeito de todas as
preocupações. Precipita-se então para a trepidante Moscou, deixando enfiado,
numa tábua na estação da estrada-de-ferro da casa de campo, um buquê de flores
do prado emurchecidas. Mais tarde, ele vai insistir com seus conhecidos e
amigos para que passem um domingo no bosque, e todos eles acabarão
aparecendo pelas veredas, exatamente em frente da cerca e da casa onde moro.