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ColeçãoEstudos Jean-Marc Besse
DirigidaporJ.Guinsburg
Tradução: VladimirBartalini
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VER ATERRA
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SEIS ENSAIOS SOBRE A PAISAGEM
E A GEOGRAFIA
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Equipederealização-Ediçãodetexto:MareioHonóriodeGodoy;Revisãodeprovas: .
%\í PERSPECTIVA
Lilian Miyoko Kumai; Sobrecapa: Sérgio Kon; Produção: RicardoNeves e Raquel j
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FernandeSAbranches.
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Titulodooriginalemfrancês: Sumário ,
Voirlaterre
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Copyright©ActesSudlensi'lCentreduPaysage,2000.
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DadosinternacionaisdeCatalocíaçãonaPublicação(CIP)
(CâmaraBrasileiradoLivro,SP,Brasil)
Besse,Jean-Marc
Veraterra:seisensaiossobreapaisagemeageografial
Jean-MarcBesse;traduçãoVladimirBanalini.-SãoPaulo:
Perspectiva,2006.-(Coleçãoestudos;230ldirigidaporJ.
Guinsburg)
Titulooriginal:Volt'laterre.
ISBN85-273-0755-3
Prefác|o VIl
l.Paisagemnaarte2.Paisazcmnaliteratura
l.Guinsburg,J. il.Titulo. III.Série.
l. Petrarcana MontanhnosTormentos daAlma
06-2636 Cdd-809.9332 Deslocada l
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' .lndtcesparacatálogosistemático: Petrarca: UmaModernidadeAmbígua l
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. .. q 'l.Paisagemnaliteratura 809.9332 ' APaisagemeoProblemadaVontade 4
OsOlhos,oEspaçoeaVidadaAlma 10
2. ATerracomo Paisagenl BruegheleaGEOGrafia..............17
PaisagemeCorografia 20
APaisagemcomoTeatrodoMundo 23
Direitosreservadosemlínguaportuguesaà 3. VaporesnoCEu.APaisagemItaliananaViagem
EDITORAPERSPECTIVAS.A.
deGoethe · 43
Av.BrigadeiroLuísAntônio,3025
01401-000 SãoPauf"o SP Brasil
1'eld"ax:(Oll)3885-8388 l
www.editoraperspectiva.com.br
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2006
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' Prefácio
VI VERATERRA
4. AFisionomiadaPaisagem, deAlexandervon Humboldt
aPaulVidal deLa Blache 61
APaisagem,Além da Estética 61
APaisagemdosGeógrafos: aFisionomiadoEspaço
Terrestre 65
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5. EntreGeografiaePaisagem,aFENOMEnOLOG[a..................75
Geografia, PaisagemeFenomenologia 75
APaisagem em ErwinStraus,ouAlémdaGeografia.....78
ATerraeaHabitaçãoHumana:aGeografia
FenomenológicaSegundo ÉricDardei ' 82
6. NasDobrasdo Mundo. Paisagem eFilosofia Segundo
PEc:uv 97
ComoseviauTerraaoandarporestescaminhos?
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JUIJENGR,ACQ Ç
.
Os ensaiosque seseguem, emboraevoquem situações eautores
muito diversos (Petrarca, Goethe, a geografia, a pintura, a fenome-
-_ nologia...), reúnem-seem tornodeuma únicaquestão, que constitui, l
porassim dizü,acoerência interna deste livro. Estaquestão, porém, l
émenos dirigidaà paisagem doquecolocadaapartirdela, suscitada
" e"
pela experiência vívida que se faz dela, assim como pelas diversas
representaçõesartísticas,científicasouespirituais,dasquaiselaéob-
jeto. Em outros termos, o interesse e o desafio que pode representar
uma leituradacartanaqual PetrarcaevocasuasubidaaomonteVeri-
toux, do relato de Goethe de sua vigem à Itália, ou da descrição da .
paisagem francesa por Vidal de La Blache, repousa essencialmente
nofatodestedeparar-seefetivocom apaisagem aparecercomoave- i
rificaçãoouaindaasubversãodeumaexpectativaperceptiva,deuma
categoriado pensamento, ou de um hábito de escrita. Não são esses i
autoresque colocamquestõesàpaisagem,aocontrário, eles próprios
são interrogados, postos em movimento, afçtados pela paisagem.
Mais ainda: eles são atravessados pelaquestão que, silenciosamente
(masnemsempre),apaisagem coloca. Quequestãoéesta?
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l.J.Gracq,Carne/selugranelchemin.Paris:JoséCorti, 1992,p. 185.
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VIII VERATERRA PREFÁCIO ix
UmartistadaIdadeMédianãoteriasonhadoemfazerestudosde Sejanumaplaníciemonótonadeamplohorizonte,dizAlexundrevonHumboldt,
paisagens,dizYvesBonnefoy: ondeplantasdeumamesmaespécie(urzes,cistáceas,gramíneas)cobrànosolo,sejaonde
asondasdomarbanhamacostaefazemreconhecerseustraçospelasestriasverde-
jantesdeulvasedeconjuntosdealgasButuantes,osentimentodanatureza,grande
Nãoserepresentaopanicularquandosetema felicidade douniversal,nãohá
e livre,arrebatanossaalmaenosrevela,comoporumamisteriosainspiração,que
porquesedeteraosfatosdoacasoquandoopossível,etambémoobriEatório,éce-
existemleisqueregulamasforçasdouniverso.[..jOqueessasimpressões[..Jtêm
lebraroqueostranscende.Apaisagemcomeçanaartecomasprimeirasangústiasda
consciênciametafisica,aquelaqueseinquietaderepentecom asombraquesemexe degraveedesolene,elasoapreendemdopressentimentodaordemedasleis,que
sobascoisas'. nascesem nossoconsentimento,aosimplescontatocomanatureza;elasoapreen-
demdocontrastequeoferecemoslimitesestreitosdonossosercomessaimagemde
infinitoqueserevelaemtodaparte,naabóbadaestreladadocéu,numaplanícieque
Mas há mais do que uma inquietação. Há uma violência dapai-
seestendeaperderdevista,nohorizontebrumosodooceano'.
sagem. GeorgSimmel circunscreve esta violência naexperiência de
serarrancadodosentimentodepertenceraumTodo(osentimentoda Mas esse pressentimento de uma relação com uma extensão e
grande natureza), que acompanha inevitavelmente a individualiza- um movimento "infinitamente.mais vastos'", que se dá na essência
i çãodasformasdavidanaculturadassociedadesmodemas. Segundo mesma deum olharàsvezesmomentâneo, apaisagem oexprimede
Simmel,esta"tragédia",constitutivaaomesmotempodapaisageme váriasmaneiras. Háemprimeiro lugarestaparteinvisível doespaço,
damodernidade,exprime-senofatode"apartedeumtodo"tornar-se que bordejaeextravasa constantementeo visível,e lembraoquanto l
i porsua vez"um conjunto independente, quese desprende do prece- apaisagemdelimitaum mundoeinsinuaemsuasmargensapresença $,l
denteereivindicaseudireitoemrelaçãoaele'".Apaisagemsignifica de uma vida tumultuosa. Depois há o horizonte, as lonjuras, como ll
originalmente a restrição do mundo visível ao campo visual que se sinaleanúnciodeumapromessa,umapelo.Mastambém,maisperto,
abre a partir deste recorte primordial. O sentimento de pertencer à ostraçosdomundoquesedisfarçamsoboolhar,comoumconvitea
generosa presença daquilo que é, é substituído então por uma con- explorartodos os detalhes, todasas dobras do visível, numaespécie l
templação à distância do mundo. Não é isso que dizHôlderlin?"Eu de viagem interminável. Todos os pontos do espaço, as margens, os
aprendi perfeitamenteamedistinguirdaquiloque mecircunda: eeis centros,olongeeopertomarcamessainsistênciadoinfinitonofinito
queestouisoladonabelezadomundo'". quetrabalhanointeriordapaisagem eadefine.
Estaviolênciamudanãoconstitui, noentanto, asignificação úl- Osensaiosquecompõemestelivrotentarãoseguirodesenvolvi-
tima da paisagem. Ao contrário, é preciso considerara tomada desta mentodestadialética.Elaseexprimirásobdiferentesfomas:literária,
distânciarepentinafrenteaomundocomoacondição"deumanovapossi- filosófica, artísticaetambémcientífica. Elatomaránomesdiferentes:
bilidadedaexistênciahumanae,maisprecisamente,de-umanovaface acuriosidade,aconversão,aintuição,osímbolo,afisionomia,apre-
dasrelaçõesdohomemcomoTodo. Porqueapaisagemnãoésomente
sença... No entanto, sempre se tentará perceber e pensar um único
umaentidadefechadaemsimesma.Nointeriordessaclausura,aques- problema,quepoderiafinalmenteserformuladoassim:comoépossí-
tãodasrelaçõescom umarealidademaisvastapermanece. vel habitaroespaço?Oqueéumavidaquetomaaformadoespaço,
eoqueeladevefazerparanãoseperdernele?
Constantemente,sublinhaSimmel,oslimitesautotraçadosdecadapaisagemsão
desfeitosedissolvidosporestesentimento(odoTodooudoUno),eapaisagem,arran-
cadaviolentamente,tornadaautônoma,éentãoatormentadapelaobscura presciência
destecontextoinfinitot
Apaisagem é atormentadapelo infinito,etalvez, nofundo,esta
insistência, esta presença transbordante do infinito no finito, seja a
forçamaisíntimadaexperiênciapaisagística.
~
2.Y.Bonnefoy,Lêpeintredontl'ombreestkvoyageur,RueTraversièreetuu/res l
récitsenrêw.Paris:Gallimard, 1992,p.162.
3.G.Simmel,Philosofied.upaysage.LaTragédiede/(1cu//ure. Paris:R.ivages,
1988,p.232. 6.A.vonHumboldt,Cosmos.Essaid'unedescriptionphysiquedumonde,Paris:
4.F.Hõlderlin,Hyperionoul'Ermi/edeGrèce,Paris:MercuredeFrance,1965,p.16. Clide, 1846,p.4.
5.G.Simmel,op.cit.,p.231. 7.G.Simmel,op.cit.,p.230.
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1. Petrarca na Montanha:
Os Tormentos da Alma4
Deslocada'
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En/ím.experimenteiquasetudoeemnenhumlugaren-
contreirepousol
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-3b Il PETRARCA: UMAMODERNIDADEAMBÍGUA
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Oshistoriadoresdapaisagemhátemposatribuemàcartanaqual
PetrarcafazorelatodesuaascensãoaomonteVentouxumvalorinau-
gural. Com efeito, Petrarca, decidindo escalaramontanha parasim-
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plesmente fruirda vista que pode ser desfrutada do seu cimo3, teria
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sidooprimeiro aencontrarafórmula daexperiênciapaisagísticano
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sentido própriodo termo: adacontemplaçãodesinteressada,doalto,
l.Esteensaioapareceusob umaoutraversãonaRevuecIesscienceshumaines,
? maio,2000.
2. Petrarca,Lettresjànii/ières,l, ],trad. fr.,C.Carraud,JérômeMillon:Cireno-
ble, 1998,p. 19.
m '" 3. "Altissimumregionishuiusmontem,quemnonimmeritoVentosumvocant,ho-
diernodie,solavidendiinsignemlocialtitudinemculpiditateductus,ascendi"(Hoje,mo-
, vidopelosimplesdesejodeverumluj;arreputadoporsuaaltura,subiummonte,omais
elevadodaregião,denominado,nãosemrazão,Ventoux).Petrarca,Lettresfami/ières,iv,
j,traduçãodeD.Montebello,Séquences:Reze, 1990,p.27.Paraolatim,utilizoaedi-
çãodacartaapresentadaporM.FórmicaeM.Jakob,"LaLetteraDelVentoso",Tarara:
Verbania,1996.OpresenteestudoseapOianostrabalhosdeH.Baron,G.Billanovich,P.
' Courcelle,R.M.Durling,T.Greene,D.eR.Groh,B.Martinelli,A.Tripet.
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Y
2 VERATERRA PETRARCANAMONTANHA:OSTORMENTOSDAALMADESLOCADA 3
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domundonaturalabertoaoolhar.Nistoresidiriaa"modernidade"do um pastor paratentarpersuadirosjovens escaladores aabandonara
l poeta e moralista italiano, do ponto de vistadahistóriadas concep- aventura. No entanto, quando Petrarca desconsideràa advertência e
çõesdanatureza,bemcomodasrelaçõespráticasqueohomemman- se engaja pelos caminhos perigosos que conduzem ao alto, ele tem
tém com o mundo visível. Segundo esta tradição de interpretação, consciênciade fazero leitorpenetrar, alegoricamente,num outro es-
fixada no século xix por Jacob Burckhardt, Petrarca teria posto em paço,odeumaexperiênciaespiritualquepressupõeatransgressão:o
evidência,melhorqueoutros,aposturamodemadoolhardiretosobre deserto.Amontanhaéumafiguradodeserto,ouseja,,daquele"Além
omundo,aqueladasecularizaçãodacuriosidade,voltando,porassim absoluto"(PaulZumthor)ondeameditaçãocristãcolocou,hátempo,
dizer, à autópsiada natureza, um olharaté então dirigido aos livros. adramaturgiadasaúdedaalmaedastentaçõescontraasquaiselade-
Maisainda, afirmando,como ele decertamaneirafeznocomeço de cide lutar, voltandoas costasaomundo e àsuaurbanidade. Omonte
suacartaarespeitodasopiniõesdeTitoLívioedePomponiusMela, Ventoux é, da mesmamaneira, para Petrarca, o deserto ondeele vai,
ocaráterdecisivo da experiênciapessoal na determinação da verda- num primeiro momento, desenharos caminhos e os desvios do seu
degeográfica, Petrarca ilustrariademaneiraexemplaratransgressão l tormentopsíquico.
constitutiva da modernidade em relação à Idade Média. Ele "viu a i Defato,éjustamentenascategoriasmaisantigasdaasceseespi-
naturezaporelemesmo",dizBurckhardt. Nistoelepodesercompa- ritualquePetrarcainterpretaalegoricamente,naprimeirapartedesua
l
rado aos cosmógrafos de seu tempo, cujos olhos exercitados foram l carta, as dificuldades desuaascensão. Elassão reais e propriamente
testemunhasatentasdasrealidadesterrestresqueelespercorreramem físicas, mas elas são também subjetivas.Amontanhaé alta, ocami-
incessantesviagens. nhodifícil,efracaavontadedopoeta. EnquantoseuirmãoGherardo
Esta modernidade de Petrarca se apresenta, no entanto, sob toma o caminho difícil, mas reto, que o conduzdiretamente ao alto,
uma luz complexa. Como Joachim Ritter destacou, numa análise Petrarca,assimqueoreconhece,tentaretardaraprovaçãodasubida,
em todos os sentidos fundadora, o vocabulário com que o poeta procurando veredas mais favoráveis na aparência, mas que, no final
apresentao significado de sua empresa eprocura garantir-lhe uma dascontas, sóoconduzem avagueaçõeseprovaçõessuplementares.
espéciedeexemplaridadeespiritual ("impulsodaalmadocorporal SÓdepoisdelongosdesvioseleatingiráseuobjetivo.Osentidomoral
aoespiritual pelaaberturadesi mesma aDeus, livrecontemplação desuaatitudeseimpõeimediatamenteaPetrarca:asdificuldadesque
danaturezanummovimentointeriordaalmatendendoàfelicidade") ele encontra na ascensão física são a imagem das fraquezas de sua
deriva inteiramente de uma tradição "filosófica", a da theoria lou resoluçãoespiritualnasuabuscadafelicidade.
Kosniou, da contemplação da ordem divina do mundo a partir de
um pontoelevado. l Oquetentastestantasvezeshojeaoescalarestaimntanhaserepetirá,paratie
! paratantosoutiosquequerematingirabeatitude[..J.Avidaquenóschamamosfèiiz
AsdefiniçõesquePetrarcatomaemprestadodatradiçãofilosÓficadateoriase- l ocupaasalturase,comodizoprovérbio,estreitoéocaminhoqueaelaconduz.Nu-
mcrosostainbémsãoosdesfiladeirosqueéprecisopassaredomesmomododevemos
rãodesde entãoconstitutivasda relação estética com a naturezaconsideradacomo
avançarpordegraus,devirtudeemvirtude;noaltoestáofimdetodasascoisas,oob-
paisaçem.Nestesentido,aascensãodomonteVentouxmarcaumadata.Anatureza,a
jetivoparaoqualdirigimosnossospasses.I...]Oquetedetém?Nada,evidentemente,
paisagem,sãoofrutoeoprodutodoespíritoteórico'.
anãoserocaminhomaisplanoquepassapelosbaixosprazeresterrestresequeparece,
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àprimeiravista,maisfácil;masquandotiveresdivagadobastante,seránecessárioque
. Em outros termos, a paisagem prolonga, na aparência sensível, j subasparaocimodabeatitude,penandosobopesodeumcansaçoequivocadamente
o antigo cosmos. A experiência paisagística reconduz e veicula, no adiado,ouentãocairdeesgotamentonosvalesdosteuspecado9.
plano da estética, a densidade espiritual de uma situação filosófica.
Petrarca, neste sentido,étanto herdeiro quanto inovador, ea"trans- OSecretum,escritoaproximadamentena mesmaépocadacarta
gressão"da qual eleteriasidp o herói pareceseefetuarsegundo um que nos ocupa.aqui, fomuila de maneira mais concisa o desafio da
códigofixadohámuitonaordem"d"aÜidaespiritual. situação psicdógica e moral na qual seencontra Petrarca: "Quer-se
aomesmotemposubirepermanecerembaixo,e,'puxadoemsentidos
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A começar pela escolha que consiste em fazer de uma monta- contrários,nãosechegaanada"'. "
nha o quadro dabuscade si mesmo. Certamente, a ascensão é ujna
transgressão, como Petrarca logo deixa claro ao invocara figura de
4. J. Ritter, Lêpaysage. Fonctiondel'esthétiquedanslasocietémoderne,tra- 5. Petrarca,op.cit.,p.33es.
duçãodeG.Raulet,Argi/e, 16, 1978,p.29. 6. Petrarca,Monsecrel,t,rad.fr.,Paris:Rivages, 1989,p.5l.
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PETRARCANAMONTANHA:OSTORMENTOSDAALMADESLOCADA 5
4 VERATERRA
examedeconsciêncianumaestruturateológicaestabelecidahámuito
APAISAGEM EOPROBLEMADAVONTADE
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tempo, queele vai infletir, no entanto, nos temos de uma interpreta-
A questão é a da autenticidade de uma vontade, tanto para as çãopsicológica.
coisasdocorpoquanto paraaquelas doespírito. Nãosetratadesim- Nesta altura do seu relato, porém, Petrarca continua a interpre-
plesmentequerer. Éprecisoquererquerer,ePetrarcanãoconseguese
tar de modo positivo a experiência da ascensão. O próprio cume é
elevaraestasegundaexigência,quemarcariaumadecisãoverdadeira. apresentado pelo poeta comoo fim, ou o termo, de sua peregrinação
Acartaque relataaascensãoaomonteVentoux desdobraos tormen- espiritual. "Possaeucumprircom minhaalma esta viagem a quedia
tos da sua irresolução. A montanha, como bem diz Nicholas Mann, e noiteaspiro, comoacumpri hoje depois de tersuperado as dificul-
é para Petrarca "a imagem dos seus desejos, de suas aspirações e da dadescommeucorpo'".
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consciênciaagudadesuasprópriasfraquezaspsicológicasemorais'". l AprecequePetrarcadirigeàsuaprópriavontade(conseguiráele
Quandoopoetanelainstalaorelatodesuaexperiênciaespiritual, faz superarasuaprópriafraqueza?)deixaintactaaestruturaale,góricana
delaoespaçodessatensãoemdireçãoaumaautenticidademoralpela qual ele inscreve e dá uma significação àsua experiência. E no inte-
qual ele não conseguejustamente se decidir. É preciso entenderesta
rior das categorias da ascese moral que ele organiza esta circulação
carta como uma meditação sobre a vontade e, sobretudo, sobre as entreadimensãofísicaeadimensãoespiritual desuaexperiência.As
condições do seu exercício. Pode-se, mais precisamente, considerar dificuldades]neslnasqueeleencontra,aocolocarempráticasuareso-
a carta do Ventoux coino a exibição (e a condenação) das diversas lução, respondem aos códigos tradicionais do exercício espiritual. A
estratégias pelas quais Petrarca retarda o momento do retorno a si chegada aocume e as primeiras sensações que ela provoca parecem,
próprio. Estaestruturatem um nome: acídia. nestesentido,umaassunçãoeumaconfirmaçãodoespaçointelectual
No Secretum, Petrarca fazdaacidiaacaracterísticaprincipal de inicial noqual Petrarcainscreveusuaempresa, adabuscadagrande-
sua vida psíquicat Ele designa por este nome o efeito de uma in- zadaalma,queseobtém noexercíciodeolharomundodoalto"t
capacidade de querer, de uma indolência ou de uma preguiça que o Mas aexperiência visual daalturaea levezado arambientenão
impedemdeprolongarsuavontadeemverdadeiraação.Aacidiaseria confírinamsomenteaspalavrasouvidasporPetrarcasobreoVentoux
o sentimento de tristeza prÓprio daquele que sabe muito bem o que antesdasubida. Elasprovamtambém, analogamente, averacidadede
tem que fazer, que conhece o obstáculo que o impede de cumpri-lo, outrosrelatosreferentesaoAtosouaoOlimpo,emesmoaoHemus.A
masque,noentanto,nãofaznadadedecisivoparasairdessasituação, experiência físicadoVentoux asseguraaveracidadedas fábulasanti-
-e" e multiplica os desvios e as falsas razões pelas quais ele adiao mo; gas. Elafecha,porassimdizer,ocírculodohorizontedeinterpretação
. .. _ mento da resolução autêntica. A acídia é esta tristeza da impotência no qual asubidanuma montanhapode serdecididae pensada.
diante de si próprio. É o sentimento que acompanha a consciência,
Curiosaméhte,noentanto,aexperiênciadocumenãoévivencia-
dupla, da divisão da existência e da incapacidade da vontade de sair da por Petrarca como a possibilidade, ou mesmo como aesperança,
dessa divisão. de uma pacificação do seu universo interior. As tensões espirituais
A história do conceito é de início teológica, e desenvolve-se, não desaparecem no deserto, nem diantedapaisagem.Acontempla-
como nos informa Evagre lê Pontique, no contexto da experiência ção a partir do cume não cria as condições de um êxtase, mas antes
dos monges do deserto no Egito durante os séculos iii e lv.Aaccidia reconduz o poetaa um movimento de introspecção em relação à sua
designa,de início,.oenfadodomongenasuacela,queo impele,seja própria vidae à volubilidàde dosseus desejos. Petrarca não cumpre
adormir,sejaaabandonarsuacelaeasuaprofissãoreligiosa. Éuma
atéofimoprogramaderegeneraçãoespiritual que,de modotradicio-
espécie de incapacidade de suportar a vida meditativa, cuja tomada nal nocristianismo,embasaaexperiênciasimbólicadaascensão. Ele
deconsciênciaconduzao desespero.Aacidiaé estatristezadonega- nãodescobre, nem reencontra, nocume, ocentro ea unidade dasua
tivo que, na tradição cristã posterior, designará, de maneira geral, a existência inserindo-a, àmaneira estóica, na ordem natural do vasto
negligência nocumprimentodosdeveres espirituais. Petrarcaéfami-
-_
liarizado com essas descrições de acídia, largamente'difundidas nos
9. Petrarca,Letiresfami/ières,iv, l,op.cit.,p.35. .
manuais e coleções de sermões escritos para a educação catequética 10. Sêneca:"AvirtudeàqualnÓsaspiramosproduzagrandeza,porqueelalibera
Í
nosséculos xiiiexiv.Quandoeleseapresentaasi próprio, noSecre- aahna,prepara-aparaoconhecimenÍodascoisascelesteseatornadignadepartilhar .
luni, como acometido deste mal, ele insere, conseqüentemente, seu acondiçãodivina"(Questionsnature//es,prefácio,I,6). P. Hadotassiíncomenta:"A "
grandezadaalmaéaquiassociadaa umaespéciede vOodoespiritopara longe das
coisas terrestres"'(Erenc'ices.spirituelsetphi/osophieantique, Paris: Éíudes augusti-
7. N.Mann.Pétrcirque,Arles:ActesSud, 1989,p.lll.
niennes,3""édition, 1993,p.130).
8. Idem,p.99eseguintes.
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6 VERATERRA 4
e— PETRARCANAMONTANHA:OSTORMENTOSDAALMADESLOCADA 7
mundo.Atopografiavisual queseestendediantede Petrarcaé, para
tempoenoespaço,ointervaloqueoseparadascoisasqãoéanulado.
ele, sobretudo, a ocasião de um trabalho da memória, ou antes, da
Eleéapenaspercorrido(enãosolucionado)pelapotênciadoolhare
rememorização, quetomaaformade umaconfissão ede um exame
pelotrabalhodamemória,aolongodeumexameoudeumareflexão,
deconsciência. E, abemdizer,oquecaracterizaameditação dopoe- l
ta é que, longe de tomarpossível uma reapropriação do próprio eu, l emqueoeuprocurasereapropriardoseudevir,querendoaomesmo
i tempomantê-loàdistância,numaformaderejeição.
longe de realizar a unidade do eu, eladeixasubsistiradistância e a
Em Rousseau,aocontrário,o"desaparecimentodovéu"conduz
l opacidade.Elanãoconsegue,anãoserpelaprece,peiolamento,pelo
àaboliçãodareflexãoedadistância,numregistrodeum "gozoime-
arrependimento, resolver o deslocamento de um eu dissociado por
, diato dascoisas": "o espetáculo tem nãosei o quedemágico, deso-
seusmúltiplosdesejos.
brenatural, queencantaoespíritoeos sentidos: esqueço-medetudo,
O que de fato descobre Petrarca quando ele contempla a paisa-
esqueço-medemim mesmo,nãosei maisondeestou'"l
gemquese lheofereceapartirdocumedoVentoux?Essencialmente
Éum êxtasesensível, acompanhadodeumaatenuação doslimi-
oespaço, massob aformamaiscruel queelepode sedar, istoé,sob
tes do eu refletido e pessoal. Aexperiência imediata da presença do
a forma da distância inexpugnável, sob a aparência da distância in-
mundosupõe umaexpansãodasensibilidade.
transponível, de um intervalo que, tantono plano geográficoquanto
no temporal, não pode serpreenchido, mas somente percorridopelo
Numuniversoquenãoopõemaisobstáculos,quenãoobrkaaenergiadaalma
olhar e pela reflexão da consciência. Aseparação é vivida nos dois
asedesdobrarnemaserefletirsobresimesma,osercoincide(acreditacoincidir)in-
planos: o topográfico, do aqui e do ali, e o cronológico, do presente teiramentecomasensaçãopresente.Eleseesquece,umavezqueesqueceerenunciaà
edopassado. suaprópriahistória,sedcscarrq;adoseupassado,perde[...Joqueeraneleconsciência
Porém, mais profundamente, a separação se apresenta sob as separada,consciênciadeseparação.Masporoutroladoeleseafirma,umavezquea
sensaçãoatualaunientaoespaçoàmedidadoseudesejo,umavezqueomundoexte-
formas de uma divisão da alma e de uma agitação sem ordem nem l
l riorseunificacencontraseucentronopurogozodoeu.[..J.Tudomeatravessa,maseu
repouso. Elaévivida,comonoSecretum ouna Canzione264, como i atinjotudo.Eunãosoumaisnada,maseunegooespaçoporquemetorneioespaço'".
o conflito de duas vontades totalmente contraditórias, uma delas le-
vando Petrarcaàprocuradoamoredacelebridade, enquantoaoutra O contraste com a experiência de Petrarca é, neste sentido, es-
a isto resiste. A memória reconduz o poeta à atualidade do conflito pantoso. Com efeito, não se encontra em Petrarca esta fusão com a
moraldequeeleéopalco.ApaisagemdescobertanomonteVentoux sensaçãopresentequepoderialheassegurarumaformadereconcilia-
:R»-. conduz,antesdetudo,àexperiênciadeumaalteridadeinterior. çãoconsigomesmo. Osentidodaexperiênciasensível épostergado,
A comparação da carta de Petrarca com uma outra ascensão, submetido aosHcursos daconfissão.Além disso, o tomar-seespaço . - . :
aquela que Rousseau relata na famosa '"Lettre sur lê Valais" de La a, maneira de RC.ousseau constitui em Petrarcaj,ustamente a perda, a l'
NouvelleHéloíseé, neste sentido, reveladorada situação moral par- queda.Aopoetaitalianoserianecessário,aocontrário,negaroespaço
ticular do poeta italiano. Apesar da analogia da intenção espiritual para voltar a serele próprio. Negar, por exemplo, a distância que o
subjacente aestas duas ascensões, asexperiências às quais elas con- separadaItália paraaboliresteperpétuo sentimento deexílio(oque
duzemseorientam,comefeito,emdireçõesopostas.Se,emRousseau, nãopareceserpossível, oumais exatamente, oqueapresençadiante
apresença diante da paisagem toma possível a afirmação de um eu dapaisagemnãopermitequeocorra).Concluamosquantoaisso:não
sensível ousentimentaleprovocamesmoumesquecimentodesi,em épossível,emPetrarca,nemfusãocomoespaço,nem mesmoarticu-
Petrarca, ao contrário, avista, apartirdocume, produz somente um
i laçãoentreaapreensãopaisagísticadomundoexterioreaexperiência
examedeconsciência. ! de si. Parece que nada na paisagem, no espaço da paisagem; pode
JeanStarobinski mostrouque,nessacarta, Rousseaupõeseulei- ! serviràedificaçãodoeu.
torna presença de uma "paisagem sem véus", de uma paisagem de Sabe-sequeò"cume"narrativo da cartaresidenomomento em
uma transparência que significa a abolição da distância entre o eu e queosolhosdePetrarcapassam dacontemplaçãodapaisagemà lei- l
as coisas exteriores". Da mesnia maneira, parece haver em Petrarca tura da frase de"Santo Agostinho, que condeiaa sua empresa: "E os
aexperiência de umapresença diante das coisas. No entanto, aqui a
' homens vão admiraros cimos dos montes, as ondas do mar, o vasto
distânciasubsiste:trata-sedeumapresençanadistância. Mesmoseo
euconseguever,e,maisgenericamente,atingirascoisasdistantesno
12.J. J. Rousseau,Ju/ieou /(1 Nouve//e Hé/oi3'e, primeira parte, Carta xxiii à
Julie,Paris,Flammarion,GF, 1967,p.46.
ll.J.Starobinski,La7kln.s7xu1enceet/'Obs/ac/e,Paris:Gallimaid,1976,p.102-104.
13.J.Starobinski,op.cit.,p. 104.
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8 VERATERRA PETRARCANAMONTANHA:OSTORMENTOSDAALMADESLOCADA 9
curso dos rios, o circuito do Oceano e o movimento dos astros, e se aesperançaeomedo.Chegomesmoacrerqueleionãoahistóriade um outro, masa
esquecem desi mesmos"[', minhaprÓpria".
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Comestacitação, Petrarcacolocaabruptamente umtermoàauto
interpretaçãoalegóricaque escandiaatéentãoseuitinerário. O poeta Imitação, ou, mais precisamente, filiação cujo motivo a carta
!' descobre bruscamente, à maneirade um chamamento à ordem ou de desenha progressivamente. Assim, Petrarca se atribui nesta carta a
y. umatomadade consciência, que a montanhanão tem nenhum signi- mesma idadedeSantoAgostinhonomomentodesuaconversão final
ficado alegórico, que a ascensão é apenas um exercício físico e que (trinta e dois anos). O período de dezanos que, no bispo de Hipona,
elanãopodesertraduzidanumexercícioespiritual.Petrarcadescobre é concluído para a conversão, é encontrado em Petrarca: dez anos
o queelejásabia: queeleolhapara fora, quandoaverdaderesideno igualmenteseparam a subidaao Ventouxe suasaídada universidade
interior. Mas se aascensão não tem significação, além dopuro esfor- de Bolonha. Sobretudo, num caso como no outro, a causa ocasional
r,
ço físico que ela exige, como compreendero percurso interpretativo daconversãoé constituída pelaleiturade um livroque chainabrutal-
) seguidoatéestemomentoporPetrarca? mente àordem os doisatores deste drama dasaúde.Ainda mais exa-
Quando a carta mostra ao leitor a impossibilidade de traduzir a tamente, Petrarca, quando se mostra repentinamente chamado pela
caminhada físicaem energia espiritual, elaparece quererindicarque leituradasConfissões,descreveoepisódio inscrevendo-o namemória
a partidaparaa montanha foi algo como uma"falsa partida". Émes- da cena do.jardim de Milão't o que ele lê tem o mesmo significado
motodaumasériedefalsaspartidasinterpretativasqueéapresentada, imperativo que o versículo da Epístolaaos Romanos lido porAgos-
emesmoaleitura(oupostura)alegóricadevesercompreendidacomo tinho em Milão.Acarta desencadeia umasériede "testemunhos", da
umafalsapartida.AintençãoinicialdePetrarcaéumarazãoperversa, qual Petrarca se apresenta como herdeiro, e que conduz, para lá de
e é isto que o escalador percebe, mas muito tarde. A brutal tomada l SantoAgostinho, aSantoAntônioe talvezaSão Paulo.
de consciência que encerraa subida do monte Ventoux é, então, bem No entanto, Petrarca, apesar de todo o desejo de imitá-lo, man-
mais que um incidente de percurso. A experiência do cume da mon- tém distância daquele que, visivelmente, o inspira. A filiação reivin-
tanha é, bem precisamente, uma decepção, e esta decepção conduz dicada mantém-se problemática. A lição moral que conclui o exame
a um exame de consciência. É, de fato, no interior de um espaço, de consciência do poeta não provoca nele uma pacificação interior,
que é o do exame de consciência, que a experiência da paisagem de l mas, ao contrário, produzremorsoecólera. Petrarcaseremeteao seu
Petrarcadeve servista. Certamente aascensãoassinaloua Petrarcao modelocomoqueàdistância,ecom umaespéciedeimpotência. É no
esforçoespiritual que.eledeviarealizar,eaexperiênciadocumeofez reconhecimento de sua impotência, como bem notaram A. Tripé e T. - -
acreditar por um instante na possibilidade de uma reapropriaçãg do " M. Greene", que a experiência da montanha conduzdefmitivamente
'seu próprioeu. Mas, pelaintermediaçãodeSantoAgostinho,"Petrarca opoetangstacarta. Petrarcasecolocaemçetiacomoaquelequesobe,
designa agora esta experiência como um erro, uma diversão. Com '^" desce,seengana,rètorna_deummodofjctíe.i.lpra"rasi' pró'pri'o, lamenta
certezaSantoAgostinhopermiteaPetrarcarevelarcomoenganadores sua atitude, converte-se pela metade: é tOda uma vida íntima que se
os primeiros motivos da subida, mas, sobretudo, ele lhe permite no- expõesobreamontanha, timapsicologiamoralquearticulamovimen-
meareste erro como tal: C neste "muito tarde" que reside a proposta tosdo sentimentoe escrúpulosda consciência, mas sem outrofim que
final dacarta. não o de um reconhecimento da impotência ou da fraqueza, dirigido
Não é preciso, com efeito, crer que Petrarca fica, por fim, paci- finalmenteporPetrarcaaoseudiretordeconsciênciaagostiniano.
ficado, nem que da leiturade SantoAgostinho emanaa liçãofinal da O autor desta carta não se apresenta de uma só vez, mas antes
aventura.Todaacarta,noentanto,parececonstruídanum paralelismo pelas interpretações sucessivas de si mesmo, que se mascaram e se
entre as duas biografias, cornose fosseprecisoao poeta italiano ilus- contradizem, pelo seu caminharerrantee seus remorsos. Nãoa unifi-
trar uma intençãojá contidaroSecretum: cação final do"eu, mas sim um eu entre Felipe da Macedôniae Santo
Agostinho,aglóriaantigaeahumildadecristã, umsujeitonointervalo,
parece-meàs vezes reconhecer, no meio de minhas tormentas, algum traço da lua ir-
resoluçãopassada. Éporque,cadavezquereleiotuasC()i!/í:\'sões,euficodivididoentre -
"l5.Petrarca,Monsecrel,op,cit.,p.47.
a. l6. SantoAgostinho,LêsC()n/èb:\'ions,VII, 10, 16: ' ""
17. T. M. Grccnc, Petrarch Víu/or: the Displacements ofHeroism, em G. 'KM.lb
' Hunta"eC.J.Rawson(eds.),HeroesandtheHeroic,TheYearBookofEng/ishSíudies,
14.Santo Agostinho, Lés Cou/èssions, x, viii, 15. Citado por Petrarca, Lettres v. xii, l982,p. 35-57;A. Tripet, Pe'trarqueoulac'on/7c//:$'.\'c/nc'edesol, Genève: Droz,
jàmi/ières,trad. Montebcllo,op.cit.,p.4!. 1967.
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PETRARCANAMONTANHA:OSTORMENTOSDAALMADESLOCADA l)
to VERATERRA
Reportemo-nos às primeiras palavras dacarta sobre a condena-
queficaàdistânciadesi mesmo,diantede umaalteridade interiorin-
çãofinal daascensão: "Movido pelosimplesdesejo'deverum lugar
transponível. EmAgostinho,acenadojardiméumfim,elapõetermo
reputado porsua altura'"i "E os homens vão admiraros cimos dos
aummovimentoerranteeforneceoelementodeumaresoluçãofinal.
montes,asondasdomar,ovastocursodosrios,ocircuitodoOceano
AmontanhadePetrarcanãoofereceumasoluçãodestetipo,masaexpe-
eomovimentodosastros,eseesquecemdesimesmos"20.
riênciadeumaausênciaedeumfracasso,deumremorsoedeum"tudo
l arefazer". Éprecisoentãose indagarsobreosentidodestadistânciae PetrarcareencontraemSantoAgostinhoestaidéia,jáestóica,de
i queolharo mundo visível é faltarasi mesmo. Ele retoma estaopo-
destaseparação.
sição entre interior e exterior, entre a preocupação com a verdade,
que reside na interioridade, e a submissão às coisas exteriores. Esta
OSOLHOS,OESPAÇO EAVIDADAALMA primeiraconsideração vem lembrá-loqueapulsão visual éperigosa,
porqueelaodesviadesimesmo.
AcartaescritaporPetrarcapõeemjogoaomenosdoiselementos
Mas,alémdisso,opoetainserenasuareflexãoumelementoque
essenciaisdarelaçãoqueelemantémcomelemesmoeseumodode
lheé próprio, que concerneàverdadeiragrandeza das coisas e tam-
estarnomundo,asaber, deuma parteaquestãodorepouso,dolugar
bém à sua própria grandeza como sujeito moral. O que verdadeira-
edodeslocamento,ouseja,adovalorontológicodoespaço,edeou-
mentepodeserditogrande?Oquevaleaalturafísicadamontanhae,
traparte, aquelada suaprópriagrandezaoudasuaglória, em outras
damesmamaneira, oquevaleoesforçodeescalá-la?Qualoalcance
palavras,adovaloréticodasuaopçãodeexistência.Aquestãoquese
espiritual destecumeedestaelevação? Petrarcajásabia,mas literal-
coloca, decertamaneira, éada verdade edo valorde umavidaque
escolheu o espaço para seexprimir. Porqueo espaço, para Petrarca, menteesqueceu,"quenãohánadadeadmirávelforadaalma,quenão
hánadadegrandefaceàsuagrandeza"".
nãoéjamaisinocente.Portadoresdedúvidas,de indagações,delem-
É preciso indagar sobre o sentido deste esquecimento, depois
brançasedeemoções, os lugarescom queopoetaentraem contato,
desteapeloà ordem. Petrarca nãoestá na ignorância e muito menos
queeleatravessa, paraosquaiseleretoma,declarandonãopoderali
na inocênciadoquefez,eébem istoqueelecontaepõe.em cenade
permanecer,têm sempreparaele um valor, uma intençãoética.Qual
modo dramático: o esquecimento ativoeo apelo brutal de algoque
éentãoosentidodoespaço?Oquevaleum lugarparaPetrarca,epor
elejásabia.Mascomonomearestesaberesquecido?É,sem dúvida,
que ele atribui tanta importância à sua posição no espaço? Por que
naarticulaçãodotemadacuriosidadeàqueledagrandezaquepode-
atribuir tanta importância ao fato de estarem algum lugar, de estar
remosdivisarumarespostaaestaquestão.
aquienãoali?ComoPetrarcaviveeapresentaestarelaçãoentreoeu
Masporqueacuriosidadeéassimcondenada?Oqueelacontémm " gr.
eolugar?Porque,naconclusãodesuacarta, Petrarcavai finalmente
detãoinquiètante?Sabe-sehátempoqueacuriosidadeéaexpressãode
condenaroespaçoeaexperiênciadamontanhaemproldaafirmação
doretomoàinterioridade?'"' "' umaespédedeindiscrição,queconsisteemquererconhecer,ever,o
que "não nos dizrespeito". Ea imagem bem odiz: écomo um vOo.
Petrarcapõeemjogo,noseurelato,umareflexãosobreacuriosi-
Surpreende-se,porassimdizer,desoslaio,umarealidadequenãonos
dade,ouseja,sobreum tipodeatitudecognitivaqueatradiçãocristã
(maisprecisamenÍeagostiniana)sempreconsideroucom desconfian- édestinada, cujaintençãoestáem outro lugar. Masestatransgressão i
dos limites nãoésomente uma sub-repçãodo olhar, elaé também o
ça.Acuriosidade coloca, com efeito, oproblemadocontrole doco-
testemunho deseu descomedimento. Elaéapresentadapelatradição
nhecimento e do olhar: por que procuramos ver e conhecer? Quais
cristã como uma espécie de orgulho e um inchaço (tunior) moral. O
sãoosmotivoseosfinsverdadeirosdestemovimentoqueimpulsiona
curiosoquerseelevaràalturadossegredosdomundo: "elesse crêem
de maneira irresistível o sujeito a procurar ver as coisas? Há nisto
uma questão de desejo: a cupiditas videndi de Petrarca responde à l situados no altocom os astros, e luminosos"", diz SantoAgostinhoa
l
concupiscentia oculorum de Santo Agostinho't Mas qual é o valor
f
e,sobretudo,qual éosentidoprofundodestedesejodever,quecon-
duziu o poeta, como ele diz desdeo início do seu relato, aescalaro
l
monteVentoux? r
19.Petrarca,Leitrc'sfami/iètus',lV, ltop.cit..p.27.
i
20.SantoMostinho,LésCon/àkçiol1s,x,VIli,15,citadoporPetrarca,idem,p.4l.
2l.Petrarca,idem,p.42.
22.SantoAízostinho,LésC()/g':ssions,v,III,5,Oeuvres,traduçãodeE.Trehorel
l8.SantoAgostinho,LésCon/èssions,x,xxxv,54.VertambémaPrimeiraEpis-
eG.Bouissou,Paris:DesclCedeBrouwer, !962
IO/GdeSãoJoão,2, IS-l6,arespeitoda"cobiçadosolhos".
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