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Roger Chartier
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Por terem sido escritos em di
ferentes ocasiões, às vezes, com anos
Roger Chartier
de intervalo, os artigos desse livro se
-Diretor de Estudos da ÉcoledesHa utesEtudrs
complementam, formando um con
en Sciences SocúUes, desde 1984 (FR)
junto bastante abrangente de todas -Professor visitante de História na
as consequências da revolução digi Pennsylvania Univmity, Filadélfia, desde 2001
tal sobre a cadeia de produção e cir (USA)
culação do livro, na atualidade. Po -Professor do CoUege de Fr ance, 2007-2016 (FR)
rém, os textos são autônomos, não -Professor emérito do CoUtge de Fr ance, desde
obedecem a uma sequência lógica. 2016(FR)
-Diretor do Centro de Pesquisa Histórica
Da mesma forma, por vezes, o mes
da École des Ha utes Etudes en Sciences Sociales
mo trecho de uma ou outra obra
(1982-1986) (FR)
pode ser citado em mais de um arti
- Professor visitante na University of
go e suscitar diferentes reflexões do
California, Berkeley, 1987 (USA)
pensador, dependendo de seu foco
-Professor em Estudos Europeus e Inter
de estudo. Na esteira desse diag
nacionais, ComeU University, 1988 (USA)
nóstico da situação atual, este livro - Professor visitante na The Johns Hopkins
apresenta importantes propostas University, Baltimore, 1992/95 e 1998 (USA)
para superar ou minimi~ar os efei - Professor visitante na Chicago Un iversity,
tos da pandemia sobre o mundo do 1995/97/2000 (USA)
livro. - Professor convidado da Universidad de
Buenos Aires, 2000 e 2002 (ARG)
Guiomar de Grammont
Doutor Honoris Gausa,
-Universidade de Lisboa (POR)
-Universúladde Buenos Aires-UBA (ARG)
-Universúlad de Valencia (ESP)
-Universúlad de Chile-Santiago (CL)
-Universitatea din Bu.cure#i (HUN)
-Universúlad Nacümal de San Martín (ARG)
-University of London (ENG)
-Université Laval-(blebec (CAN)
-Universúlad Carlos Ill-Madrid (ESP)
-Université de Neuchâtel (SWZ)
-Universúlad Nacümal de Rosario (ARG)
1• Edição - 2020
São Paulo - Brasil
'0 Roger Charticr
lf'• Guiomar de Grammont
li• Editora Lctraviva
Todos os direitos reservados
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
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Um mundo sem livros e sem livrarias?
1. HáhiLo de lcitcra 2. Leil.ura5 3. Livrarias
4. L!.vcos 5. Livro!i -Aspectos ~:oç~c.i!J - Eistór~ ...
E. L~vrc~: v :citura 7, ::.varias - História
1. ~rAr~CriL, G~~omar de. I:. Ttt~lc.
Roger Chartier
2~-47~92 CI)J-002.09
Índices para catálogo sistemático:
l. :~v:o1 & l!v•ar~us : Histt:ia
Autor: Roger Chartier
Prefácio: Guiomar de Grammont
Capa: Lucas Gurbanov
Projeto gráfico: Lucas Gurbanov
Editoração eletrônica: Lucas Gurbanov
Edição e Revisão: Bernardo Gurbanov
Editora Letraviva
LETR IVA
Rua dos Pinheiros 334
1
05422-000 São Paulo SP
www.letraviva.com.br
SUMÁRIO
Prefácio ....................................................................... 7
I- A morte do livro? ............................................... .47
li- Edições científicas .............................................. 71
III- Livrarias ............................................................. 9 3
IV- Autoedição ...................................................... 123
V- Ler sem livros ................................................. .14 7
VI- Experiências brasileir~s .................................1 69
Epílogo
Um mundo sem livros e sem livrarias? ............... 211
Currículo ....................................................... :. ....... 229
Livros em português .............................., .............. 235
5
Prefácio
PREFÁCIO
No texto "Experiências Brasileiras", que figu
ra nesta coletânea, Roger Chartier lembra um mo
mento de rara beleza vivido por Fernand Braudel no
Brasil. O carro do historiador estragou na estrada
de Feira de Santana, no interior do Estado da Bahia,
e ele se viu bruscamente apanhado em meio a uma
prodigiosa explosão de vagalumes fosforescentes.
Braudel se lembrou mais de uma vez desse momento
como um insight de sua arquitetura das temporali
dades da história: "os eventos são como esses pontos
de luz. Além de seu brilho mais ou menos vivo, além
de sua própria história, toda a paisagem circundante
deve ser reconstituída ... "1 Como escreveu Chartier,
•
"
o lusco-fusco dos vagalumes serviu a Bra\ldel "para
fazer compreender que os acontecimentos são so
mente espumas de ondas da história, cujas realidades
1 Fernand Braudel. «L'Histoire, mesure du monde>>
( 1941 e 1943-44). In: Les Ecrits de Fernand Braudel. Tome fi. Les
Ambitions de l'Histoire. Edition établie et présentée par Roselyne de
Ayala et Pau/e Braudel. Paris: Editions de Fallois 1997 p. 23-24.
1 1
7
Um mundo sem livros e sem livrarias? Prefácio
fundamentais se localizam num tempo que não é o não tive participação, a não ser agora, no momento
tempo das percepções imediatas". da preparação deste volume. Estive envolvida, direta
Essas intuições propiciadas por uma vivência ou indiretamente, na organização dos eventos que
incomum, em uma realidade diferente da france motivaram a escrita de todos os outros artigos que
sa, poderiam explicar também a relação que Roger compõem essa coletânea. Nessas ocasiões, mediei as
Chartier sempre manteve com o Brasil: como uma conferências do professor Roger Chartier, que me
fonte de experiências que alimentaram a profundi concedeu o privilégio de sua orientação na École de
dade de suas reflexões sobre a história do livro, da Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris, em 1999
leitura e das livrarias. Os artigos desta coletânea têm e 2000, em estágio do meu doutorado, realizado na
em comum sobretudo o fato de terem sido escritos a USP, sob orientação do professor João Adolfo Han-
partir dessa interação com nosso país, nos diferentes sen.
momentos em que o historiador foi convidado a nos Por terem sido escritos em diferentes ocasiões,
honrar com a fulgurante riqueza de seu pensamen às vezes, com anos de intervalo, os artigos desse livro
to. É preciso mencionar, inclusive, que Chartier es se complementam, formando um conjunto bastante
creveu, originalmente, em português, a maior parte abrangente de todas as consequências da revolução
destes artigos, eu traduzi apenas dois deles e o epílo digital sobre a cadeia de produção e circulação do li-
..
go. Portanto, este pequeno livro que o leitor tem em vro, na atualidade. Porém, os textos são autônomos,
suas mãos, é inédito na França, um P..resente extraor não obedecem a uma sequência lógica. Da mesma
dinário que o pensador realizou especialmente para forma, por vezes, o mesmo trecho de ~ma ou outra
seus leitores no Brasil. obra pode ser citado em mais de um artigo e su~citar
A apresentação desse texto, na Jornada Inter diferentes reflexões do pensador, dependendo de seu
cultural França-Brasil, organizada no Instituto Ricar foco de estudo. Na esteira desse diagnóstico da situa
do Brennand, em Recife, em 2019, foi a única em que ção atual, este livro apresenta importantes propostas
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Um mundo sem livros e sem livrarias? Prefácio
para superar ou minimizar os efeitos da pandemia O engajamento de Michel de Certeau contra as vio
sobre o mundo do livro. lências cometidas pelo regime militar fez com que
Nesse artigo, "Experiências Brasileiras", Char esse historiador, que também era jesuíta, fosse im
tier presta tributo a pensadores que foram muito im pedido de entrar no Brasil, na época. Chartier nos
portantes em sua trajetória intelectual e que manti conta como de Certeau conseguiu contornar essa
veram fortes relações com o Brasil: Fernand Braudel, proibição.
Michel de Certeau, Michel Foucault e Pierre Bour Roger Chartier reconstitui também as visitas
dieu. Dentre estes, Bourdieu é o único que nun de Foucault ao Brasil, que culminaram em uma ex
ca morou nem viajou ao Brasil, mas esteve sempre plosiva declaração do pensador, realizada em outu
muito atento à nossa realidade, através de sua inter bro de 1975, ao tomar conhecimento do encarcera
locução com os sociólo~os brasileiros. mento de professores e estudantes da USP: "Não dá
Roger Chartier relembra a corajosa denúncia para lecionar sob o tacão das botas; não dá para fa
que Michel Foucault e Michel de Certeau fizeram lar diante dos muros de prisões; não dá para estudar
contra os desmandos da ditadura militar, no perío quando as armas ameaçam. A liberdade de expressão
do em que aqui estiveram. O exemplo desses histo e de pesquisa são sinais de garantia da liberdade dos
riadores, através do olhar de Chartier, nos incenti povos."2 Em protesto, Foucault cancelou seus cursos
•
"
va a reagir contra a reescrita da história por parte no país e chegou a assistir ao famoso ato ecumênico
do governo atual, que tenta apagar _da memória dos
2 Segundo Reger Chartier, o texto de.Foucault foi pu
brasileiros as atrocidades cometidas pelos militares
blicado no]o rnai alternativo EX, a 16 de novembro de 197 5
nos anos 70. De Certeau publicou diversos artigos
e se encontra verbatim nos arquivos do SNL Testemunho de
Paulo Eduardo Arantes. In:Ricardo Parro e Anderson Lima
denunciando as torturas e assassinatos perpetrados
da Silva. «Michel Foucault na Universidade de São Paulo». ·
pela ditadura no Brasil, inclusive, um deles, sobre
«Michel Foucault na Universidade de São Paulo», Revista Dis
a atuação revolucionária de Dom Helder Câmara. curso, Volume 47, n· 2, 2017, p. 205-223, p. 216.
10 . 11
Um mundo sem livros e sem livrarias? Prefácio
em memória de Vladimir Herzog celebrado no dia to, como Umberto Eco5 Antes de tratar da questão
•
31 de outubro na Catedral da Sé, o qual foi, como sobre o possível desaparecimento do livro, porém,
lembra Chartier: "a primeira grande expressão de Roger Chartier considera que é preciso nos pergun
protesto da sociedade civil contra a ditadura militar". tarmos: "O que é um livro?"
Quando convidei Roger Chartier ao Fórum O historiador nos remete a Kant que, ao se
das Letras de 20063 e lhe propus falar sobre a morte colocar a mesma questão, ainda em 1798, teria dis
do livro, o pensador concordou, com uma condição: tinguido o livro «como objeto material, como 'opus
que eu acrescentasse um ponto de interrogação ao mechanicum', que pertence a quem o comprou, e o
título. Assim, Chartier abriu um importante ciclo de livro como discurso dirigido ao público, cujo pro
oficinas, ministradas por importantes editores brasi prietário é o autor e cuja publicação - no sentido
leiros4, com a conferência intitulada "A morte do li de tornar público um texto - remete ao 'mandatum'
vro?", que dá início a essa coletânea. O historiador já do escritor, ou seja, ao contrato explícito estabeleci
começara a se debruçar sobre essa questão em outros do entre o autor e seu editor, o qual atua como seu
de seus livros, estabelecendo diálogo com teóricos representante ou mandatário». Essa distinção fun
que vinham sendo instados a falar sobre esse assun- dadora irá reger todos os discursos sobre o livro, a
partir de então.
Chartier nos mostra como Fichte e Diderot
3 Evento literário que idealizei e \Oordenei por uma a desenvolvem, abrindo caminho para. o regime de
quinzena de anos na Universidade Federal de Ouro Preto.
propriedade de um texto, em que a materialidade de
4 Os editores que ministraram essas oficinas foram :
Isa Pessoa (Objetiva), Luciana Villas-Boas (Record), Maria 5 ECO, Umberto e CARRIERE, Jean-Claude. Não
Amélia Mello Qosé Olympio, hoje, Autêntica), Plínio Mar contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record. Nesse livro,
tins (EdUSP e Ateliê),Joaci Furtado (Globo) e Jorge Viveiros os pensadores, notórios biblióftlos, discutem a história e o
de Castro (7 Letras). Os publishers Sergio Machado, da Re futuro dos livros com erudição e bom-humor, defendendo a
cord, e Carlos Augusto Lacerda, da Nova Fronteira, também imortalidade do objeto-livro, tal como o conhecemos, apesar
participaram de mesa de debates no evento. do advento do e-book e da internet.
12 13
Um mundo sem livros e sem livrarias? Prefácio
um livro vem a ser separada da singularidade do a u em seguida: «é um livro somente um texto? E a lite
tor. Esse dualismo platônico, de filiação órfica, com ratura são apenas palavras e imagens que atravessam
que o livro é definido a partir de Kant, é evidencia os séculos e cuja inalterada permanência se oferece
do na máxima, citada por Chartier, que o impressor às interpretações ou 'entonações' diversas de seus su
madrilenho Alonso Víctor de Paredes enunciou, em cessivos leitores?»
1680: o livro é uma criação humana porque, como o O próprio Borges, que enuncia a máxima de
homem, tem corpo e alma ... que um livro seria «um cubo de papel e couro com
Desde tempos tão remotos o livro foi pensa folhas» que ganha renovadas vidas apenas a cada lei
do como um ser vivo, com corpo e alma, nada mais tura, acaba oferecendo a Chartier a prova de que a
natural do que a pergunta sobre quando ele morrerá. materialidade de um livro permanece fundamental:
Essa questão não é nova, foi proposta desde a Mo o escritor evoca em sua autobiografia a emoção do
dernidade, com frequência vinculada a outras, como encontro com um dos livros de sua vida: o Dom Qui
"O que é um autor?", discutida em conferência rea xote, na encadernação vermelha com títulos doura
lizada por Chartier para a Sociedade Psicanalítica dos da edição Garnier. Parecia a Borges que este seria
Francesa dez anos depois daquela pronunciada por "o verdadeiro Dom Quixote".
Foucault, com esse mesmo título. E também "O que Com a solenidade de um orác.. ulo, Chartier
é a literatura?", colocada por Sartre e também desen conclui que «somos herdeiros desta história». O
volvida por Chartier. livro continua sendo, para nós, duplamente, um
.
O historiador relembra a resposta de Borges objeto material e uma obra intelectual ou estética
à pergunta sobre o que é o livro. Para o escritor ar identificada pelo nome de seu autor, fundada sobre
gentino, seria um diálogo infinito estabelecido entre distinções imediatamente visíveis entre seus supor
o texto e seus leitores. «Se for assim», propõe Char tes (cartas, documentos, diários, livros).
tier, «o 'livro' nunca desaparecerá». Mas questiona
14 15
Um mundo sem livros e sem livrarias? Prefácio
Contudo, na reflexão que irá se desdobrar nos xistência entre os antigos objetos e ações, e as novas
vários textos deste volume, em que se pergunta o que técnicas e práticas, o que o levava a ser otimista na
acontecerá com o livro, a leitura e as livrarias, a par resposta à pergunta que lhe propus inicialmente: o
tir das mutações do presente, Roger Chartier lembra livro irá morrer? Naquele momento, Chartier jul
que a ordem dos discursos mudou profundamente gava que o livro, tanto como discurso e obra intelec
com o advento da textualidade eletrônica. Esta, não tual, quanto em sua materialidade (o cubo de papel
utiliza mais a prensa, ignora o "livro unitário" e está com folhas, de Borges), não iria morrer.
alheia à materialidade do códex. Ao adaptar-se a essa Quinze anos depois, ao organizar seus artigos
revolução, o leitor contemporâneo precisou abando para compor essa coletânea, o pensador se sente le
nar todas as heranças que o formaram. vado a assumir que, hoje, o futuro do livro é uma
Chartier analisa que a leitura do texto eletrô incógnita, em um contexto que, como veremos nos
nico lida com uma textualidade suave, flexível e in fi artigos desse livro, se tornou muito complexo.
nita, porém, descontínua e segmentada, que supõe e As edições científicas são o objeto do segundo
produz, segundo a expressão de Umberto Eco, uma artigo da coletânea, em que Chartier traça, inicial
"alfabetizazione distratta", uma leitura rápida, frag mente, um diagnóstico relativamente abrangente do
mentada, que busca informações e não se detém na volume de publicações na Europa e· nas Américas,
...
compreensão das obras em sua coerência e totalida tanto livros quanto artigos científicos. O .. historia-
de. Nesse texto, feito em 2006, Ch!lrtier se pergun dor reflete sobre as razões da drástica redução dos
tava se, com essa tendência à fluidez, o texto digital impressos por parte das publicações ci~ntíficas, com
seria capaz de apoderar-se dos livros que se leem e tendência crescente de adesão ao digital. A difusão
também dos que se consultam. em massa das revistas científicas em forma eletrô
Ele lembra que, na história de longa duração nica, segundo o historiador, faz com que ressaltem
da cultura escrita, cada mutação produziu uma coe- duas questões fundamentais: a primeira, como fica
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