Table Of ContentRev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):358-71
Artigo de Revisão www.eerp.usp.br/rlaenf 358
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Edir Nei Teixeira Mandú1
Mandú ENT. Trajetória assistencial no âmbito da saúde reprodutiva e sexual – Brasil, século XX. Rev Latino-am
Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):358-71.
Construções tecnoassistenciais em torno dos processos da reprodução e sexualidade, no âmbito do setor de
saúde brasileiro, encaminhadas no século passado, são o objeto em discussão. Recupera-se a sua trajetória histórica,
com ênfase em três grandes momentos: um primeiro, até os anos 50, quando se assentam as bases de uma
responsabilidade pública com a maternidade e difundem-se intervenções médicas moralizantes no campo da
sexualidade; um segundo, entre os anos 50 e 70, em que se consolida o cuidado clínico-educativo dirigido ao processo
reprodutivo feminino e a complicações do sistema sexual de ambos os sexos; um terceiro, em que se constroem
bases políticas mais amplas de atenção à saúde, reprodução e sexualidade.
Descritores: saúde pública, reprodução, sexualidade
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Technical and practical works on the reproduction and sexuality processes conducted in Brazil, in the last
century, are the subject of this article. Therefore, authors review the history and emphasize three moments: the first
one, until the 1950’s, when the basis of public responsibility is defined specially regarding maternity and medical
interventions are carried out in order to moralize the sexuality field; second, between the 1950’s and 1970’s, when the
clinical and educative health care is consolidated and directed to women reproductive process and complications on
men and women sexual apparatus; third, when broader political bases are built regarding health care, reproduction
and sexuality.
DESCRIPTORS: public health; reproduction; sexuality
1 Professor Adjunto da Faculdade de Enfermagem e Nutrição da UFMT, Doutoranda em Enfermagem pela Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, e-mail: [email protected]
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Construcciones técnico-asistenciales alrededor de la reproducción y la sexualidad, en el ámbito del sector
salud Brasileño en el siglo pasado, son el objeto en discusión. Se recupera la trayectoria histórica con énfasis en tres
grandes momentos: un primer momento hasta los años 50, cuando se asientan las bases de una responsabilidad
pública con la maternidad y se difunden intervenciones médicas moralizantes en el campo de la sexualidad; el segundo,
entre los años 50 y 70, en que se consolida el cuidado clínico-educativo dirigido al proceso reproductivo femenino y a
las complicaciones del sistema sexual de ambos sexos; y un tercero, donde se identifican bases más amplias de
atención a la salud, reproducción y sexualidad.
DESCRIPTORES: salud pública; reproducción; sexualidad
INTRODUÇÃO se convencionou denominar sistema médico,
que contempla significativas inclusões
A
trajetória da atenção pública à saúde tecnológicas no cuidado à vida humana
no âmbito da reprodução e sexualidade, no relativas a instrumentos e meios diagnósticos,
Brasil do século XX, articulada aos seus controle e tratamento da saúde, processos
específicos determinantes, ainda está por ser normativos, relacionais, saberes e sistemas
reconstituída. A intenção, neste artigo, não é organizacionais de cuidados, através de
dar conta dessa tarefa, mas aproximar-se práticas denominadas comumente de saúde
desse percurso, reunindo informações pública e assistência médica(2,3-4). Nesse
dispersas em estudos que exploram ângulos movimento, desenha-se um campo de atuação
diversos da prática em saúde e daquela político-social voltado à atenção a
específica atenção no país, destacando necessidades nas esferas da reprodução e
proposições políticas, modelos organizacionais sexualidade. No cuidado a essas dimensões
e incorporações tecnológicas. da vida humana, são construídas tecnologias
No século XX, ocorreram expressivas diversas, em dados modelos organizacionais,
mudanças na interpretação e efetivação de a partir de necessidades e possibilidades
direitos em saúde, nos padrões de saúde- identificadas e valorizadas no interior de
doença, nos conhecimentos médicos, nos processos sociais e políticos em curso no país.
modelos e práticas assistenciais. Surgiram Essas construções, em linhas gerais,
novas construções técnico-científicas, serviços, circunscrevem-se: à construção social do papel
medidas e ações públicas e privadas em saúde, materno no cuidado da saúde dos filhos; à
intermediados por lutas sociais em prol de conformação de certos padrões de
condições mais dignas de vida e políticas comportamento sexual; ao controle quantitativo
públicas favoráveis. Nesse século as da procriação; ao cuidado médico com a
sociedades ousaram pensar a saúde com uma gravidez, parto, puerpério e funcionalidade do
intencionalidade prática(1). sistema reprodutivo/sexual; à ampliação de
Com essas mudanças demarca-se o que direitos nessas esferas. Essas formulações
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apresentam-se de modo peculiar, em as relações escravocratas, sob o domínio
momentos distintos da prática em saúde, e colonial português, e, nesse contexto, a
podem ser classificadas em, pelo menos, três participação estatal em saúde é praticamente
grandes fases: a da maternidade e sexualidade inexistente, resumida apenas a algumas
como constituintes do projeto higienista/ medidas de caráter mais geral e/ou de auxílio
eugenista, do final do século XIX a meados do financeiro à filantropia.
século XX; a da reprodução como constituinte A prática médica preocupa-se com o
do projeto médico, do final da fase anterior à combate da desordem social, considerada
década de 70; a da saúde, sexualidade e causa dos problemas de saúde existentes. Em
reprodução, como constituintes dos direitos suas bases, encontra-se um projeto higienista,
sociais, abrangendo, particularmente, as articulado à ordem e à moral. A família constitui-
décadas de 80 e 90. se o grande alvo das suas medidas, voltadas à
construção de comportamentos interpretados
como favoráveis ao controle da mortalidade
O PROJETO HIGIENISTA/EUGENISTA NO (sobretudo infantil) e estímulo à natalidade,
BRASIL: A SEXUALIDADE E A postulando-se a restrição do exercício da
MATERNIDADE SOB CONTROLE sexualidade, sobretudo das mulheres, às
relações conjugais e à procriação*(6).
No final do século XIX, a ciência e a É no início do século XX, no contexto de
técnica em saúde são pouco desenvolvidas no reorganização produtiva, política e geográfica
Brasil. As instituições governamentais de saúde do Brasil republicano, que se localizam
restringem-se praticamente a órgãos de iniciativas mais amplas do poder público no
fiscalização e regulamentação das condições âmbito da saúde, acompanhadas da criação/
sanitárias do meio(3). A população recorre adoção de tecnologias como campanhas
diretamente a médicos, cirurgiões, barbeiros, educativas, policiamento sanitário, saneamento
curandeiros, parteiras e curiosas, sendo os de portos e cidades, imunização de massa e
pobres assistidos por iniciativas filantrópicas(2). isolamento de doentes(3).
A assistência ao parto e o tratamento de Nesse momento, várias unidades
infecções do aparelho genital (problemas burocráticas de saúde pública são criadas, com
venéreos) são realizados no espaço dos responsabilidade consultiva, normativa e
domicílios. Os governos quase não participam executiva, generalizando-se normas e medidas
desses e de outros cuidados. Os legais em torno daquelas práticas. O modelo
conhecimentos técnico-científicos em saúde, tecnológico organizado viabiliza-se através de
reprodução e sexualidade são bastante institutos de pesquisa, laboratórios e algumas
restritos(3-5). poucas unidades de assistência. Em seu
Predominam as atividades fundiárias e interior, são produzidos novos conhecimentos
* O discurso higienista, no Brasil, articula saúde-doença à ordem-desordem social. Dirigido à reprodução e sexualidade,
evidencia as responsabilidades da mulher no cuidado da saúde infantil, na prevenção de agravos à saúde da família,
estimulando a natalidade e a restrição do sexo à procriação(6)
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científicos em torno da etiologia, meios atenção à saúde. O combate governamental
diagnósticos e medidas de prevenção das da pobreza e doença apresenta-se como uma
enfermidades coletivas contagiosas, com base, condição fundamental à estabilização política
sobretudo, na bacteriologia, imunologia e e organização de um novo mercado de
engenharia sanitária(7). A saúde e a doença são trabalho, favorável ao desenvolvimento inicial
encaradas como processos coletivos, da industrialização nacional.
decorrentes da agressão do meio social/natural Desse modo, ao lado da preocupação
sobre o corpo biológico. O modelo construído com as questões do meio, novos padrões de
e as tecnologias aplicadas voltam-se à higiene são traçados e implementados através
descoberta dos agentes contaminantes, ao seu de práticas educativas sistemáticas. Desafios
isolamento, à destruição dos vetores e ao como a desqualificação física para o trabalho
aumento da resistência dos indivíduos às e problemas de saúde infantil suscita medidas
doenças(4). preventivas e corretivas articuladas em torno
A atenção pública à reprodução, nesse da chamada educação sanitária(3).
contexto, é restrita, caracterizando-se Nos anos 20, desenvolve-se a base
basicamente pelo padrão de interferência inicial da atenção médico-previdenciária no
familiar dos anos anteriores. Frente à Brasil, dirigida a trabalhadores inseridos no
sexualidade, as ações governamentais mercado urbano de setores de ponta, nos
circunscrevem-se ao controle médico dos espaços geográficos que primeiro se
problemas venéreos. No início do século XX, a industrializam(9). Essa nova organização
sífilis apresenta-se como um dos grandes preocupa-se com processos de cura, mediante
problemas urbanos, enfrentado através de serviços específicos, distinguindo-se dos
medidas de alerta, de educação moral e de voltados ao controle das doenças, via medidas
controle sanitário. Em hospitais, várias áreas de higiene, educação sanitária e organização
são construídas para o seu tratamento, aplicam- administrativa dos serviços(4).
se medidas educativas à população, práticas Nos anos 30, estrutura-se uma
de inspeção são dirigidas a amas-de-leite e explicação médico-sanitária, construída com a
militares e institui-se a obrigatoriedade do participação de sanitaristas dos grandes
exame pré-nupcial(8). centros brasileiros, influenciados por
Planos e ações governamentais mais experiências americanas, manifestando-se
abrangentes, nas esferas em questão, são uma nova compreensão da saúde-doença, que
encaminhados somente a partir dos anos 20/ passa a ser predominantemente interpretada
30, quando a saúde pública compromete-se como fenômeno individual/coletivo determinado
com novos processos sociais e passa a pelos próprios indivíduos(4). A saúde pública
desenvolver ações específicas dirigidas à passa a ocupar-se sobretudo da educação dos
infância, maternidade e profilaxia em geral. indivíduos, visando ao controle das doenças
Nesses anos, grupos sociais diversos através de ações pedagógicas junto à família.
colocam em cheque o regime político liberal- Sob orientação do modelo médico-
republicano e canalizam, para o Estado, sanitário, a nova organização da assistência
pressões por melhores condições de vida e de toma como eixo os postos e centros de saúde,
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organizados em uma estrutura regionalizada, combate às doenças venéreas (e lepra),
comandada pelo setor público, com a criando-se, em 1920, a primeira legislação
participação específica de sanitaristas. As brasileira nesse terreno. Institui-se uma
atividades desenvolvidas associam às ações inspetoria com a função de fiscalizar os
educativas o controle das doenças, através do serviços, formular normas técnicas, organizar
diagnóstico e tratamento precoces(4). No interior nacionalmente a profilaxia e intervir
desses serviços alarga-se a atenção medicamente em pessoas recolhidas em asilos
governamental à reprodução, maternidade e a e prisões. Em 1921, estrutura-se um grande
aspectos da sexualidade, orientada por uma laboratório para diagnóstico da sífilis e
visão que valoriza a educação como via fabricação de medicamentos específicos e
essencial à saúde. Como parte dos cuidados, preservativos. Alastram-se, pelo país,
são eleitas medidas educativas de estímulo e dispensários antivenéreos, alguns localizados
controle da amamentação, de cuidado materno nos principais portos brasileiros(8).
com a vida infantil e de desenvolvimento de Na proteção médico-sanitária da
comportamentos para a prevenção dos gravidez e vida infantil, utilizam-se tecnologias
problemas venéreos. como estímulo à amamentação natural, o
Os anos 20 são considerados centrais recurso das amas-de-leite (práticas presentes
no combate das doenças venéreas, incluindo anteriormente), educação materna para o
a participação do governo federal e a de um cuidado de bebês, programas de higiene da
grupo de médicos e cientistas da Sociedade gravidez (autocuidado com a gravidez e a
Brasileira de Dermatologia e Sifilografia. A alimentação apropriada), distribuição de leite a
preocupação com a formação de trabalhadores gestantes e nutrizes pobres, além de práticas
hígidos, especialmente com a diminuição do de visitação domiciliar(3,6,8,10-11). Às práticas
fluxo imigratório no Brasil, torna explícitas educativas juntam-se alguns cuidados médicos
questões como o problema da sífilis e o sentido individualizados, de diagnóstico e tratamento
moral que a acompanha. Ajuíza-se que a precoces dos problemas, que passam a ganhar
mistura de raças no Brasil é o resultado de uma cada vez mais espaço com o avanço da
promiscuidade que, por meio de estratégias assistência médica(11). Emprega-se um discurso
eugênicas*, poderia ser superada. A de higiene infantil dependente dos padrões de
hereditariedade é controlada via medidas moralidade da família e cuidado materno, que
normalizadoras da sexualidade. Apregoam-se propõe regras e mudanças de comportamentos
os exames pré-nupciais, regras são a seus membros(6).
estabelecidas a respeito do casamento e, Entre 1930 e 1945, novas estruturas
através de ações educativas de caráter burocrático-assistenciais são criadas no campo
científico e moralizador, os comportamentos da saúde pública(3). Ao mesmo tempo,
sexuais são disciplinados(10). aprofunda-se a organização da atenção
Formula-se uma política nacional de médica, voltada para trabalhadores inseridos
* O discurso eugenista ocupa-se do aprimoramento da raça, estimulando sua depuração mediante a aplicação de
medidas educativas moralizantes e de controle da hereditariedade(10)
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no mercado de trabalho em desenvolvimento. produtivas. Aceleram-se a industrialização e o
À medida que a saúde pública sedimenta sua processo de urbanização, e inúmeras tensões
atuação, a atenção previdenciária projeta-se e pressões marcam as relações do Estado com
favorecida pelo financiamento do Estado, a sociedade civil, face ao acesso diferenciado
inicialmente mediante auxílios e subvenções e, a condições de vida e saúde. Assim, como parte
mais tarde, também através da compra de de um processo em que se garantem as bases
serviços(9). sociais e políticas para o crescimento
Aumenta o número de unidades de econômico nacional são contempladas, no
saúde pública, sob encargo estadual, setor saúde, propostas mais abrangentes de
especialmente de centros e postos de saúde e atenção ao grupo materno-infantil(3).
postos especiais, responsáveis, entre outros Solidificam-se ações públicas voltadas à
processos, pelo controle de doenças maternidade e infância, num cenário em que
transmissíveis (incluindo as venéreas) e pela se aprofunda a preocupação com a formação
proteção médica de gestantes e crianças. de quadros humanos para o crescente trabalho
Concomitantemente, expandem-se industrial, luta-se por melhoria do acesso a
significativamente serviços hospitalares serviços e produzem-se novos modos de atuar
públicos e privados(3). Em 1937, é criada a no campo.
Diretoria de Proteção à Maternidade e Infância, Na saúde pública, essa assistência
entre outras razões, para apoio técnico e orienta-se pela puericultura, que, em seu
financeiro às instituições públicas e privadas desenvolvimento, mantém/introduz tecnologias
de assistência materno-infantil(11). de controle da gestação, cuidado materno à
A partir dos anos 40, a assistência criança, controle pré-nupcial da saúde, dentre
médica passa a integrar mais efetivamente os outras, desenvolvidas como parte prática da
serviços de saúde pública, nas áreas rede de postos e centros de saúde e dos
estabelecidas de controle das doenças denominados clubes de mães. No
transmissíveis e também na atenção à reequipamento de instituições materno-infantis,
maternidade e infância. Depois de meados da na expansão de postos de puericultura, de
década de 40, a assistência materno-infantil postos e centros de saúde pública, de
firma-se, apoiada no Departamento Nacional maternidades e serviços de pediatria públicos
da Criança. Normas, planos e programas e privados, somam-se investimentos estatais
integrados de proteção pública e privada à nacionais e recursos internacionais(11).
maternidade, infância e adolescência, incluindo Em síntese, pode-se dizer que, na
auxílio financeiro e programas especiais, como primeira metade do século XX (dos anos 20
alimentares e educativos, passam a ser aos 50), assentam-se as bases de uma
articulados por essa estrutura(11). responsabilidade governamental com a
Com o término da II Guerra Mundial, maternidade, em consonância com a
mudanças econômicas e políticas marcam o importância dada ao seu controle para o
cenário mundial. No Brasil, luta-se por desenvolvimento econômico-social do Brasil.
democratização em meio a substantivas No âmbito da saúde pública, a atenção à
alterações no desenvolvimento das forças maternidade organiza-se ligada à preocupação
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com a saúde infantil, apoiada eminentemente (elaborado nos anos 40), que aponta o social
em tecnologias educativas, dirigidas a como um de seus fatores causais, relacionado
mulheres, inicialmente com vistas ao cuidado ao hospedeiro e ambiente(12). Articulada por
apropriado das crianças e família e, mais tarde, sanitaristas, essa nova proposta enfatiza a
também em função da necessidade identificada integralidade do doente e a aplicação de
de proteção mais ampla daquele processo. Os medidas preventivas de saúde familiar, visando
cuidados desenvolvidos em torno da à superação da dicotomia cunhada entre a
sexualidade restringem-se à conformação de saúde pública e a atenção médica(4).
um determinado padrão de moralidade Ao contrário, a retração da saúde pública
interpretado, hegemonicamente, como e o seu distanciamento da assistência médica
apropriado à época e ao controle das doenças aprofundam-se ainda mais, nos anos seguintes.
de transmissão sexual, mediante a aplicação As práticas individualizadas e o uso de
de tecnologias educativas que disciplinam o tecnologias curativas solidificam-se no
exercício conjugal e sexual, sobretudo da vida processo de crescimento dessa última, com a
feminina. privatização do setor e com o crescimento do
complexo médico-industrial, ambos
incrementados por incentivos fiscais, compra
O AVANÇO DA ASSISTÊNCIA MÉDICA: de serviços pelo Estado(9) e produção contínua
A REPRODUÇÃO EM FOCO de novos conhecimentos técnico-científicos.
A partir de meados de 70, no quadro de
A reprodução e a sexualidade são crise econômica e social que acompanha o
incorporadas como objetos de políticas esgotamento do modelo desenvolvimentista
específicas e prioritárias, sobretudo a primeira, dos anos anteriores, confronta-se a
somente na segunda metade do século XX, no permanência do acesso diferenciado ao
processo de avanço da industrialização consumo de bens e serviços sociais em geral
nacional e fortalecimento dos movimentos e e no campo da saúde. Nesse contexto, novas
forças sociais, no tempo em que se alarga a medidas governamentais são delineadas, como
interferência médica pública e privada em a extensão da assistência à saúde a alguns
saúde. setores assalariados, limitadas pela
Nos anos 60, manifestam-se problemas contraditória manutenção das bases salariais
de saúde cada vez mais complexos no Brasil, do financiamento em saúde(9). A política de
relacionados à aceleração da industrialização, saúde assume, além da extensão da
urbanização e deterioração das condições de assistência médica à parcela de mulheres
vida, num momento de reordenação pobres não inseridas no mercado de trabalho,
econômica, chamado de “milagre brasileiro”, a oferta de benefícios como o salário
comandado pelo regime político autoritário maternidade(11).
(efetivamente instalado em 1964). Demandas crescentes por atenção
Desenvolve-se, no setor saúde, um médica e a crise financeira da Previdência
discurso e prática preventivistas, baseados no Social, em fins de 1970, geram a eleição de
paradigma da história natural das doenças medidas governamentais restritivas dos gastos,
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valorizando-se investimentos na assistência Prevêm-se, inicialmente, orientação e
básica à saúde e a utilização, nesta, de distribuição de meios contraceptivos nos
tecnologias simplificadas(4). Mundialmente, o serviços de prevenção da gestação de risco e,
ideário da Atenção Primária à Saúde, sob o mais tarde, a sua expansão para os demais
marco da medicina comunitária, propunha espaços de execução do programa(11). Com o
medidas voltadas à reorganização dos serviços, estímulo ao espaçamento entre as gestações
para assistência precoce e contínua de cunho em situações consideradas de risco, justificado
preventivo e curativo, destacando a expansão na necessidade de prevenção da mortalidade
e melhoria do primeiro nível tecnológico do infantil e materna, revela-se a tônica da
setor. Assim, sob a influência desses dois interferência governamental proposta na
processos, o Ministério da Saúde reformula as questão do controle/planejamento da
diretrizes gerais da assistência à saúde e, em reprodução. Apesar das divergências em torno
1974/1975, também a política nacional de da questão, a necessidade de controle do
saúde ao grupo materno-infantil, oficializando- crescimento populacional nos países pobres
a através do Programa Materno-Infantil (PMI). encontrava-se presente no cenário mundial,
Por meio desse programa são desde os anos 50, e, na América Latina e Brasil,
formalizadas ações de assistência à gravidez, desde os anos 60(14). Aqui, medidas de controle
parto e puerpério, de estímulo à amamentação do processo reprodutivo já vinham sendo
e medidas para espaçamento entre as desenvolvidas, direcionadas a mulheres,
gestações, dirigidas a mulheres entre 15 e 49 independentemente das posições oficiais do
anos, consideradas partes dos grupos mais governo brasileiro. Não existiam no Brasil, até
vulneráveis, delimitados por meio de critérios o final da década de 70, propostas
pautados no conceito de risco(13). Os homens governamentais específicas referentes ao
ficam de fora dessas proposições, negando- planejamento/controle da prole, mas grupos e
se, no plano da política proposta, a participação, instituições filantrópicas e privadas, apoiados
responsabilidade e os riscos reprodutivos a que por instituições internacionais e pelo próprio
estes também estão sujeitos. governo, disseminavam, entre as populações
As novas tecnologias orientam-se para mais pobres, tecnologias contraceptivas, como
a assistência ao ciclo grávido-puerperal, a o DIU, os hormonais e a esterilização(11).
problemas ginecológicos (câncer e doenças Nos anos 70, inúmeras clínicas e
venéreas femininas) e ao controle da fertilidade maternidades são construídas no Brasil,
feminina. Ações educativas, realizadas nos crescendo o número de leitos públicos e
serviços e nos domicílios, somam-se ao privados para o cuidado aos problemas
incremento da terapêutica medicamentosa e à relacionados ao ciclo grávido-puerperal(11). O
prevenção e tratamento de agravos controláveis trabalho das parteiras/obstetrizes, até então
através de tecnologias como imunização, valorizado, é praticamente substituído pelo
suplementação alimentar e controle de trabalho de profissionais especializados
problemas menos complexos, do ponto de vista (sobretudo médicos obstetras).
médico, como parasitoses, anemias, infecções Nesse momento, a interferência na
urinárias, hipertensão, entre outros. esfera da sexualidade continua a se restringir
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a problemas orgânicos decorrentes da atividade produzidos e atualizados continuamente via
sexual e do próprio processo da reprodução, mercado.
abarcando, especialmente, o controle de Nesse contexto, como parte da histórica
problemas relativos ao aparelho sexual correlação entre produção – reprodução -
feminino e masculino, através das mulheres, aprofunda-se a perspectiva que
especialidades de ginecologia e urologia. Os explica a reprodução como fenômeno afeito
problemas venéreos, que, por muito tempo, sobretudo à dinâmica orgânica feminina, numa
foram objeto específico de atenção, com o clara restrição e homogeneização das
avanço da terapêutica medicamentosa (como problemáticas socioculturais vivenciadas pelo
os antibióticos), passam a ser controlados via grupo(16-17), acompanhada da negação do seu
práticas clínico-educativas sedimentadas nas caráter relacional. Os conhecimentos e práticas
unidades ambulatoriais. produzidos no âmbito da sexualidade também
Essas novas construções políticas e se centralizam em processos fisiopatológicos,
práticas em relação à reprodução e sexualidade firmando-a como um processo eminentemente
firmam um campo específico de assistência, biológico, limitado na relação sexo - reprodução.
dirigida à gestação, parto e puerpério e a Com os anos 70, distingue-se o cuidado
complicações do sistema reprodutor/sexual público dirigido à esfera reprodutiva feminina,
(controle de infecções e anomalias genitais como atenção à saúde materna. Ao mesmo
masculinas e ginecopatias e infecções tempo, torna-se cada vez mais explícita a
femininas). Amplia-se a assistência médica necessidade de o Estado comprometer-se com
especializada, por meio da atenção medidas mais abrangentes de atenção à saúde,
ambulatorial e hospitalar, através de serviços reprodução e sexualidade. Estas passam a ser
públicos, do complexo previdenciário e da rede demandadas nos anos seguintes, de modo
privada. particular pelas e para as mulheres, junto à
A assistência médica à saúde afirmação de seus direitos e crítica à visão
desenvolvida orienta-se por uma visão clínica naturalizada adotada em torno dos seus
e curativa das doenças, ao mesmo tempo em processos de vida e saúde, estendendo-se
que lhe dá consistência. Mesmo no campo da também a outros grupos como o de
saúde pública, a explicação (via epidemiologia adolescentes.
clássica) e atuação em problemas coletivos
submetem-se à lógica dessa visão(15). As
intervenções dirigem-se predominantemente à SAÚDE, REPRODUÇÃO E SEXUA-
correção dos problemas físicos, negando-se, LIDADE COMO DIREITOS
no plano assistencial, os processos
socioculturais que se encontram na base dos Na segunda metade dos anos 70 e início
processos vitais, como a reprodução e dos anos 80, a interpretação médica vigente,
sexualidade. Incorpora-se o uso crescente de centrada em questões de ordem física, torna-
tecnologias medicamentosas, práticas se amplamente questionada e mobilizada por
cirúrgicas(12), instrumentos e recursos outras abordagens que dão vitalidade às
diagnósticos (como os de radioimagem) relações entre saúde e condições socioculturais
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vividas pelos vários grupos e, especificamente, cenário nacional, confrontando-se defensores
por mulheres. da especialização e alta absorção de insumos
Propaga-se uma abordagem social da e equipamentos na atenção à saúde via
saúde-doença e cura(15) e, através de mercado, articuladores de um modelo centrado
perspectivas feministas/de gênero, na atenção básica, alternativo à redução de
desnaturalizam-se os papéis e as relações gastos públicos em saúde, e atores favoráveis
entre homens e mulheres, desencobrindo os a mudanças radicais para a democratização,
seus significados para a saúde feminina(17). universalização e integração do setor(4).
Contrapondo-se à visão prevalecente, ganha Defesas em prol da extensão de direitos
corpo uma leitura articulada dos processos femininos em saúde dão um novo tom, através
biológicos, psicoemocionais e socioculturais da da defesa de propostas e experiências de
vida humana, fornecendo-se novas bases para reconstrução da atenção, fundada na
uma compreensão mais global da saúde, da consideração às especificidades das condições
reprodução e sexualidade. Os anos 80 são de vida das mulheres, num claro confronto aos
marcantes nessa revisão, através de vários limites das respostas públicas/governamentais
processos sociais, em que se destacam os elaboradas nos anos anteriores. Não só se
movimentos pela reforma sanitária e os com debatem em todo o território questões de saúde
participação de mulheres e feministas(18). da mulher, como se elege um outro olhar sobre
Esses anos são definitivamente o feminino, as diferenças, criticando-se
marcados por reformas nas políticas sociais. A qualquer forma de subordinação social(18-19).
crise econômica, que se manifesta após o Necessidades afeitas à reprodução e
“milagre econômico” dos anos anteriores, sexualidade passam a ser vistas no contexto
alcança seu auge nos anos 80, acompanhada da atenção integral à saúde e explicadas com
de uma abertura democrática gradual. base nas relações sociais de classe, raça/etnia,
Oficializa-se, na Constituição Federal de 1988 gênero, geração, em que se resgata a relação
e em outras legislações secundárias, a proposta entre o cotidiano e o contexto global.
de criação do Sistema Único de Saúde, pautada Essas específicas manifestações e
nos princípios da universalidade, eqüidade e reconstruções articuladas em torno de
integralidade da atenção e na afirmação da demandas pela ampliação de direitos sociais
saúde como direito de todos e dever do Estado. femininos evidenciam-se, como em todo o
Críticas contundentes são dirigidas ao duplo mundo, como um tema diretamente vinculado
modelo, à perspectiva racionalizadora adotada à vida desse segmento, ficando novamente o
e à centralização da atenção em processos de homem, enquanto sujeito com direitos
cura. Movimentos e iniciativas voltados à específicos, marginalizado nesse processo.
remodelação da assistência enfatizam a Mundialmente, contribuições de grupos
necessidade de construção de modelos feministas, de mulheres, de acadêmicas/
tecnológicos mais abrangentes, inspirados no cientistas e de organismos governamentais/não
resgate local da relação saúde - qualidade de governamentais, estimulavam e
vida. incrementavam o processo nacional. Em 1975,
Diferentes posições difundem-se no na I Conferência Internacional da Mulher,
Description:Trajetória assistencial no âmbito da saúde reprodutiva e sexual – Brasil, século XX. Rev Latino-am. Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):358-71.