Table Of Content·~
·C )
.,
.)
,.
1 1
...
____ _
..
~- )
e
)
,
y
1 1
Volume 1
.·.
=uNDAÇÃO
BOITEUX
TERRITÓRIOS DESCONHECIDOS:
A PROCURA SURREALISTA PELOS LUGARES DO ABANDONO
DO SENTIDO E DA RECONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE
Volume I
Luis Alberto Warat
TERRITÓRIOS DESCONHECIDOS:
A PROCURA SURREAUSTA PELOS LUGARES DO ABANDONO
DO SENTIDO E DA RECONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE
Coordenadores Prof. Orides Mczzaroba Volume l
Prol. Aires José Ro,·cr
Prof. Arno Dai Ri Júnior
Profa. Cláudia Sen·itha lvlonlciro
Colaboradores Alessandro Tonon Càmara A\'ila
Alexandre André 0.'odari
André Bezerra 1\-!eireles
Daniela Mcnengoti Gonçalves Ribeiro
Equipe do UNJlJR
Larissa Maria Lima Costa
Marcelo Markus Teixeira
Patrícia de Oli\'eira Areas
Paulo Potiara de Alcântara Veloso
Ricardo Sontag
FUNDAÇÃO
BOITEUX
~
CONPEDI
ÇÁ~A.llQ(U ~CNPq Florianópolis, 2004
.c.- ~. ...... ....o -._-. . ._. •_-·- FUNOtVNl!DJlASIZD,I,OIJNP1E!D DCl.AAls.sDlAlM:~AACARVJCUSAA ( .. ,.. l 1 OBSERVATÓRIO 00 ESTADO
Copyright© 200.J by
Fundação josé Artur Boiteux
W253a Warat, Luis Alberto
Territórios desconhecidos: a procura SLUrcalista pelos lugares do abandono do
sentido e da reconstrução da subjetividade/ Luis Alberto Warat; coordenadores:
Oridcs Mezzaroba, Amo Dal Ri Jwlior, Aires José Rover, Cláudia Sen·ilha l\fonteiro.
- Florianópolis: Fundação BoiteLLx, 200-l.
584 p. SUMÁRIO
ISBN: 85-87995-40-5
1. Direito - Filosofia. 2. Crôrlicas brasileiras.!. Título.
CDU: 340.12
Catalogação na fonte por: Onélia St/1'a Guunaroes CRB-141071
APRESENTAÇÃO .. .. ..................................... 9
WARA T, ANJO TORTO
EDITORA FUNDAÇÃO BOITEUX
Alayde Avelar Freire Sant'Anna ............................................................................................................... 11
Presidente Prof. Orides Mczzaroba CRÔNICA DA PROMESSA
Vice-Presidente Prof. Mário Lange de S. Thiago Cláudia Seruilha Monteiro ........................................................................................................................ 13
Secretário Prof. Aires José Rover
Tesoureiro Prof. Ubaldo César Ballhazar LITERASOF1A
Orador Prof. Luiz Otávio Pimentel Warat-textos ilusoriamente completos para o Lapidarium de meu museu discursi,·o .............. 19
Conselho Editorial Prof. Aires José Rover
Prof. Antonio Carlos Wolkmer DERECHO AL DERECHO ..... 27
Prof. Amo Dal Ri Júnior
Prof. José Rubens Mora to Lei te A CIÊNCIA JURÍDICA E SEUS DOIS MARIDOS .... ............................... 61
Prof. Mário Lange de S. Thiago
Prof. Orides Mezzaroba MANIFESTOS PARA UMA ECOLOGIA DO DESEJO .................. .. .. ................................. 187
Prof. Luis Carlos Canccllier de Oli,·o
Prof. Luiz Otá,·io Pimentel O AMOR TOMADO PELO AMOR
Crônica de uma paixão desmedida ......................................................... . . .......................... 289
POR QUEM CANTAM AS SEREIAS
Capa e projeto gráfico Studio S - Diagramação e Arte Visual Informe sobre Ecocidadania, Gênero e Direito .................................... .. .. ........................... 369
[email protected]
METÁFORAS PARA A CIÊNCIA, A ARTE E A SUBJETIVIDADE . . ............................ 529
Foto da capa Jairo Bisol
EL CINE Y EL HORROR DEL OLVIDO .......................................................................................... 541
Endereço UFSC-CCJ - 1.0 andar-Sala 110 LA CINESOF1A Y SU LADO OSCURO
Campus Universitário - Trindade -CEP 880-10-970 La infirli ta posibilidad sLUrealista de pensar com la cinesofía .............. . ......................... 549
Florianópolis-Santa Catarina - Brasil
Telefone/Fax: (48) 233-0390 OS QUADRINHOS PUROS DO DIREITO ...................................................................................... 563
E-mail: [email protected]
Site: www.funjab.ufsc.br
--
APRESENTAÇÃO
O homem chegou em nossas vidas desafiando as imposturas, represen
tou a guinada do imaginário na Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina, marcou gerações, reverteu a inércia do saber jurí
dico dominante, revolucionou a sala de aula, abalou criativamente as estrutu
ras. Depois da ousadia da provocação do preestabelecido, convidou-nos a to
dos a compartilhar do sonho febril e surrealista sobre nós mesmos e nossos
conceitos, fez um convite para que a comunidade acadêmica reagisse diante
da tarefa de construção do espaço da autonomia dos indivíduos também atra
vés da linguagem jurídica.
O grande projeto waratiano de resgate da subjetividade externou-se em
uma riquíssima diversidade de ações didático-pedagógicas, como literatura,
cinema, workshops e oficinas, aulas nas tardes sem fim da Ilha de Anhatomirim,
história em quadrinhos e também estes textos compilados para serem apresen
tados agora ao leitor. Aqui estão verbalizadas as trajetórias deste pensador
inquieto, não uma, mas muitas, como foram tantos os caminhos trilhados na
construção de uma história de vida.
A proposta da Coleção Warat é a retmião destas escritas produzidas ao
longo dos anos. Uma grande e entusiasmada equipe foi formada para executar a
tarefa de recoU1er os textos, muitos deles quase perdidos no tempo, localizar
edições esgotadas, realizar traduções e revisões, sempre respeitando a lingua
gem peculiar empregada em grande parte do material e que não poderia ser
corrompida por uma revisão convencional; afinal, a fala waratiana toma parte
no próprio recado que dá.Na equipe de revisores, para aqueles que viam apenas
um autor desconhecido, ele se tomou urna paixão. Como de hábito, Luis Alberto
Warat, até no processo de elaboração desta o'Qra, seduziu com seu pensamento
aqueles que ainda não o conheciam. Uma pequena seleção de frases brilhantes
foi voluntariamente armazenada por uma integrante do grupo para, quem sabe,
urna publicação futura. Foram colaboradores deste projeto editorial Alessandro
Tonon Câmara Ávila, Alexandre Nodari, André Bezerra Meireles, Daniela
Menengoti. Gonçalves Ribeiro, Larissa Maria Lima Costa, Marcelo Markus
Teixeira, Paulo Potiara de Alcântara Veloso, Patrícia Oliveira Áreas, Ricardo
Sontag e toda a equipe do Laboratório de Informática Jurídica da Universidade
Federal de Santa Catarina. Os coordenadores aqui agradecem aos que direta e
indiretamente participaram desta publicação com a inspiração, o apoio e a ter
nura no trato das idéias que nosso próprio mestre nos ensinou a nutrir.
• 9 •
• _.,5 ALBERTO W/'.RAT
O primeiro volume, Territórios desconhecidos: a prornra surrealista pelos 111-
gares do ab1111do110 do scntido e da reconstrução da subjetividade, reúne a rebelião do
autor contra o saber adormecido no Direito e provoca a retomada dos propósi
tos da subjetividade. O ensino do Direito é a temática de fundo do segundo
volume, Epistemologia e ensino do Direito: o sonho acabou, que agrupa os textos que
vertem discussões instigantes sobre o modo de produção e de reprodução do
conhecimento jurídico. Talvez, nunca tenha sido tão oportuna como agora a
WARAT, ANJO TORTO
reapresentação ao público dessas palavras dadas pelo ensino do Direito no Bra
sil. Um dos professores bandeirantes a abordar um assunto então difícil em
Alayde Avelar Freire Smzt'Anna
outras épocas, pode-se colher no material teórico deste volume o papel do ensi
no jurídico na reformulação do Direito. O terceiro volume é orientado ao tema
da mediação, Surfando na pororoca: o ofício do mediador, trazendo a contribuição
Quando vi Luís Alberto Warat pela primeira vez, soube, imediatamen
da Psicanálise e da Semiologia para esboçar os rumos da importância e intensi
te, que nunca mais seria a mesma. Estava diante de um anjo, um raro.
dade cidadã da mediação e da função do mediador. O quarto volume, Semiótica
da alteridade e Direito, ainda no prelo, fechará a coleção tratando 80 tema da Dele quase tudo já foi dito. E, aqui, não celebrarei a indiscutível contri
(re)construção dos sentidos e do princípio da alteridade no Direito. De fomu buição de Warat aos que se dedicam ao estudo do Direito, do poder e da polí
alguma esta coletânea é exaustiva da obra de seu homenageado, mas fornece tica, em suas intrincadas relações. Cantarei, antes, o amor que tenho pelo via
uma amostragem extensa e fiel de seu trabalho, reapresentando textos somente jante que me acolheu e me apresentou outras paisagens, cenários de possibili
publicados em espanhol, outros de pouca circulação nacional, alguns inéditos e dades emancipatórias onde pude perceber com a vida o espaço de encontros e
praticamente todos os restantes já esgotados. desencontros com o outro.
Não é material que se permita perder na memória, porque está vivo nas Atravessado por uma dor de mundo que em seu vasto coração se trans
veias do pensamento jurídico brasileiro. Todo ele, o conjunto de quatro volu formou em esperança e por uma inteligência que como um raio o atingiu sem
mes, representa muito mais do que um tributo ao grande mestre Luís Alberto piedade, Warat é, com certeza, o filósofo do amor. Um profeta de uma
\,Yarat, ou um simples resgate histórico de seus inquestionáveis tesouros, é um futurologia sociopolítica que nos faz interrogar sobre o futuro que nos espera.
marco de diferença a nos lembrar que as questões ainda urgem, as respostas não Uma pergunta com a advertência e a angustia de quem espera respostas, não
foram suficientemente elaboradas, nossa segurança acadêmica é ilusória, o sa apenas revelação de um problema. Ao contrário, o que Warat deseja é uma
ber jurídico está no banco de provas de um mundo em transformação. Enquanto busca de soluções, dos sinais do futuro. Seu pensar enraizado num humanismo
a saída surrealista pelo imaginário resgata a jurisprudência do desejo nestes tex libertário, amante da heterodoxia e da diversidade, presenteia-nos com uma
tos recolhidos, Warat segue camavalizando por aí. Cabe, portanto, aos coorde concepção da complexidade das relações humanas que apontam para o senti
nadores destes quatro volumes a responsabilidade de alertar ao leitor para os do da vida como aposta no amor contra a morte.
perigos subversivos que se aproximam nas próximas páginas. Sua prática, reflexo de sua alma inquieta, faz dele um missionário que
alimenta o crescer das pessoas em dignidade, autoconhecimento, autonomia e
Ilha se Santa Catarina, primavera de 2004. no reconhecimento e afirmação dos seus direitos à diferença. Com Warat aprendi
que a experiência de resistência e de luta contra todas as formas de dogmatismo
Os coordenadores do projeto
revela uma cidadania das singularidades, tun exercício de vida que é um labo
Orides Mezzaroba
ratório onde, entre acertos e erros, os novos movimentos sociais de oposição à
Aires José Rover
subjetividade dominante configuram uma rede dialética que anuncia a emer
Arno Dai Ri /IÍnior
Cláudia Servilha Monteiro gência autônoma e original de novas maneiras de organização coletiva.
o.
• 1 • 11 •
LUIS ALBERTO WARAT
A angústia que o estimula na busca dos sinais do futuro que surgem
emergentes no processo de transformações profundas que atravessa todas as
instâncias da vida revela um homem em devir constante que questiona toda a
realidade construída socialmente pela modernidade.
VVarat, pedagogo da esperança, ser iluminado que contagia a todos
que têm o privilégio de sua interlocução, que aposta na pulsão da vida na sua
guerra contra nossas próprias tendências destrutivas, é o cartógrafo da eman CRÔNICA DA PROMESSA
cipação que nos indica o sentido ecológico do político como predomínio de
uma prática política de amor sobre todas as práticas de poder derivadas das Cláudia Serviliza Monteiro *
pulsões destrutivas.
Para Warat, apostar na vida é articular três instâncias da realidade: a
ecologia, a cidadania e a subjetividade. Uma articulação capaz de compreen: Abandonei as batas coloridas de algodão e os brincos de miçangas. O
der uma magma de sentidos que compreendem transforn1ações fundamentais olhar implacável de um ambiente julgador intimidou a menina vinda de São
que precisam ser operadas para garantir nosso futuro, comprometendo todos Paulo. Eram tempos de vestibular, escolhas. Tão cedo para saber o que vai nos
nós com a preservação da existência em todas as suas manifestações. tornar realizados. Uma profissão? Cedo demais para uma escolha tão violenta.
Como filósofo da crise civilizatória que atravessamos, Warat afirma uma E, como muitos outros, cometi também meus enganos. Ponderei jornalismo,
autonomia centrada na alteridade através de um processo de precipitação de tentei Ciências Sociais, convicta de um território adequado ao mundo das mi
revoluções moleculares do sistema de valores existenciais que se infiltrariam em nhas incansáveis indagações. Poucos meses foram suficientes para começar a
rede em todo tecido social. O direito do amanhã, em Warat, é assim, um trabalho sufocar no peito a frustração. Não, não era isso.
cartográfico sobre o desejo como núcleo impulsor do devir das autonomias que O vazio doloroso da dúvida me conduziu assim ao Curso de Direito.
configura a vontade de viver, de criar, de amar e de inventar uma nova socieda Agora já sem as paixões revolucionárias daqueles tempos em que a redemo
de. É desse anjo que falo e a quem recorro, cotidianamente, para continuar a cratização do país apresentava-se na angústia de sua iminência. Munida de
trilha do amor que aporta sentido à vida e à luta por um mundo melhor. um pouco de esperança e uma pitada de sonhos, fui aceita nas Arcádias. Salas
de aula amplas. Pareciam caber cem alunos ali. Paredes grossas, pilares roma
nos na portentosa entrada. Professores de terno, alunos sóbrios. Uma bibliote
ca com cheiro de guardado, publicações muito antigas e outras diferentes e
bem mais novas, mas sempre técnicas. Outros livros, aqueles cujo acesso te
riam cativado a alma curiosa pelo aprendizado maduro, esses, inacessíveis,
eram reservados somente aos doutos professores. Saber para neófitos. O audi
tório em vermelho nos assentos e suas pesadas cortinas. O madeiramento ve
tusto de uma grande mesa parecia comandar um recinto religioso. Uma coisa
de Igreja. A igrejinha do senso jurídico dogmático.
Testemunhei professores desenvolverem apanágios do nobre saber ju
rídico. Sentia-me uma figurante em uma peça ambientada nos anos 30. Aí
• Esta crônica foi especialmente escrita para o mímcro inaugural da Rcuisla Crítica dos Estud1111/cs
de Direito - RECRIE, da UFSC. A autora é advogada, professora, mestre cm Direito, aluna do
Programa de Doutorado em Direito do CPGD/UFSC e pesquisadora-bol-;ista da Fondazione
Cassamarca. A versão ah1al contém os nomes ocultados e é inteiramente dedicada ao seu
inspirador: o professor doutor Luis Alberto Warat.
1
• 12 • • 13 •
11
L
TERRITÓRIOS DESCONHECIDOS:
LUIS ALBERTO WARAT a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade
veio o Direito Romano. Meu primeiro amor. Juro. Meu primeiro amor foi o portunhol. E as vestes! Um temo de linho rosa, as calças amparadas por um
Direito Romano. Amava história e era a única disciplina lecionada por um colorido suspensório. Meu Deus! De onde teria saído aquela figura? E com que
professor 1 que, ainda que travestido nos velhos costumes da faculdade, for paixão falava. Falou dos sonhos e dos desejos. Falou da autonomia dos indiví
necia em seus conteúdos uma visão crítica da História do Direito e conseguia duos. Falava de cinema, de Filosofia, de Amor e de Psicanálise. Falava de li
fazer uma ponte com as atualidades do pensamento jurídico. Um deleite. berdade. E articulava tudo isso em uma intensa relação de pertinência com o
Guardo até hoje meu caderno de Direito Romano. Quando uma disciplina era Direito. Escandalizava todos os padrões conceituais da casa, do jeito de vestir
especial eu logo tratava de escolher um caderno apropriado. Esse tinha gati e de falar, passando pela postura de serena intimidade com o público e che
nhos por todos os lados e as linhas eram grossas e de um vermelho vivo. Ah! gando até a um conteúdo subversivo. Então, era possível viver o sonho no
O meu caderno de Direito Romano! Preenchido com esmero. Nenhuma infor Direito? Era possível transformar a realidade? O Direito poderia operar de
mação faltava ou estava fora do lugar. outra forma que não a dogmática!
Aos poucos um desconforto na alma foi se formando. Não, também não Como no poema de Tereza de Manuel Bandeira, "não vi mais nada. Os
era aquilo. Direito Romano era muito pouco e o resto? O que seria de mim? céus se misturaram com a terra. E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a
Afogada na maré da dogmática eu não teria condições de sobreviver. Sucum face das águas". De onde tinha saído aquele sujeito? Ele tinha que ser meu
biria em breve. Desistir já não era mais possível. O desencanto. Veio outro ano prpfessor4• A melancolia de me sentir meio fora do meu lugar foi substituída
e o Direito Constitucional foi nos concedido lindamente por um professor2 de imediatamente pela obstinação. Se eu ia mesmo me formar em Direito era para
alma literata. Caso raro naquele ambiente acadêmico de então. No resto, o peso fazer diferença. Tinha que haver algum compromisso, alguma contribuição.
do insuportável avivava cada vez mais a ferida aberta daquela última escolha Perguntei nos corredores, indaguei aos professores e veio a revelação. Existe
a que havia me permitido. um Curso de Direito em Santa Catarina onde essas discussões existem. São
No terceiro ano, a frialdade da cidade e do ambiente da faculdade já me mais do que permitidas, são estimuladas. Apesar das inúmeras diferenças de
colonizavam de tal forma que aprendi a usar "blazer" e roupas sociais. Muitos abordagens, lá lecionam e pesquisam aqueles que não perderam a capacidade
garotos e garotas já estavam assumindo a reprodução daquele mundo, seus de sonhar e de acreditar. Lá existe uma coisa chamada liberdade acadêmica e
sonhos de elite e suas imposturas. Roupa social, tratamento formal e eu, que mais uma outra denominada rigor teórico. As duas juntas iam poder mover o
queria era ler a poesia da vida, investigar como o conhecimento jurídico pode mundo jurídico ta] qual eu o enxergava.
ria ser utilizado para transformar a realidade. A alma lírica quase sucumbia. Novo vestibular e dois anos preenchendo lacunas curriculares. A grade
Então, um jovem professor3 recém-chegado de seu doutoramento na cheia, prática forense, urna disciplina em cada turma, da primeira à décima fase
Europa começou a mobilizar alguns poucos alunos interessados em estudar o e mais as habilitações. Valeu a pena. Logo que cheguei, de "blazer" e calça social,
outro lado do Direito. Arrumamos patrocínios, convênios com a Prefeitura da o choque. Professores despreocupados com formalismos de vestimentas e atitu
cidade, fotocopiávamos e distribuíamos entre nós textos. Textos outros. Saber des, alunos de calção e chinelo. Um desfile de minissaias e decotes. Seria pela
jurídico clandestino. Então, havia algo mais a ser conhecido? Olhos atravessa proximidade do mar que uma certa sensualidade ingênua passeava nas salas de
dos nos corredores, éramos uns marcianos. Mal esse processo havia se iniciado aula ou seria produto de um recinto de liberdade? Nunca soube a resposta.
e eu, perplexa, solitária, fiz a maior descoberta de todas: havia vida inteligente Um quartel de novas propostas, diagnósticos críticos e modelos emanci
no planeta do Direito! patórios sendo construídos. Os alunos da graduação reuniam-se no PET, es
Como foi isso? Um dia fomos chamados para uma palestra. O auditório tudavam e discutiam grandes temas do pensamento jurídico contemporâneo
semivazio. Uns poucos alunos marcianos e lá estava um senhor de grande com pela mão dos grandes tutores que por ali passavam, deixando, cada um, um
pleição física. Cabelos claros, pele alva. Falava uma língua estranha, algo como quilate a mais. As informações entre graduação e pós (pós-graduação) circu
lavam e era freqüente nossa presença em seminários do programa de
mestrado. Corria a notícia de que iam apresentar um seminário sobre Frege
1. Aluísio Surgik.
2. Sansão José Loureiro.
3. Clemerson Merlin Cleve. 4. Luis Alberto Warat.
• 14.
LUIS ALBERTO WARAT TERRITÓRIOS DESCONHECIDOS:
a procura surrealista pelos lugares do abanaono do sentido e da reconstrução da subjetividade
na noite daquele dia, e uma pequena legião de alunos da graduação compa graduação no Curso de Direito da UFSC trouxe doces momentos. Turmas de
recia educadamente na assistência. Testemunhávamos as defesas de disser jovens com suas características típicas para esses tempos em que a perda dos
tação e tese nas quais grandes aulas surpreendem o público por sua sofistica sentidos coletivos é a regra. Mas, uma turma após a outra, percebi um acrésci
ção. E tinha uma certa vibração no ar.
mo. Maior desenvoltura na redação, aumento da capacidade crítica e tudo
O material humano riquíssimo. Da geração do professor do temo de linho isso misturado a uma coisa meio "não tô nem aí". A marca dessa geração. Isso
cor-de-rosa, se destacaram outras gerações também criativas e competentes. Al é a contramão dos cursos de Direito no país. Por onde quer que se ande a
g1ms ainda na casa, muitos que seguiram seus caminhos acadêmicos por todo o reclamação dos professores é justamente a respeito do pouco preparo e
Brasil e também aqueles exilados de seu próprio elemento, por força da crise das desqualificação intelectual crescente dos jovens estudantes. Aqui não. Estava
instituições públicas de ensino superior. Naquela época estavam todos aqui. Uma lecionando, mencionei qualquer coisa de Escola de Frankfurt e uma figurinhas
nova geração vinda de doutorados europeus mobilizava grupos de alunos, no fundo da sala com o semblante típico do "não to nem aí" de sua geração me
tensores de riquíssimas discussões teóricas. Outros professores, ainda novos na pergunta de Walter Benjamin. Ora vi vai Alguém se interessou por Benjamin!
casa, já se destacavam ou pela atitude ou pela produção contradogmática. E uma Em uma outra sala, um garoto6 morava na Filosofia. Percebi alunos com sua
nova leva recém chegava, enriquecendo as salas de aula. capacidade reflexiva intacta. É esse o material humano que o curso vai pôr no
Lutas internas? Muitas. A riqueza da diversidade provoca isso mesmo, mundo profissional. Se não formos capazes de estimularmos sua transcen
e esse sempre foi e tem sido o maior valor daquele ambiente de liberdade im dência, serão só rep'rodutores dos velhos sentidos, dragados por uma estrutu
pulsionado pela didática waratiana. Havia um sentido em tudo aquilo. O país ra perversa que faz da dimensão prática do Direito um paradoxo conceitua!.
trilhava os primeiros anos da redemocratização. Muito a fazer, a academia se De um lado operadores conscientes de seus compromissos e de outro a pró
propunha a pensar o Direito, discutir as veredas, abrir as janelas para arejar o pria corporação a que se filiam e das quais são até honrosos diretores e co
quarto escuro do ensino jurídico no Brasil. mandantes, isso do Judiciário à congregação profissional, repetindo as velhas
formas de controle simbólico dos sentidos possíveis para as coisas do Direito.
Entendi então que aquilo que era o diferente na relação professor/ aluno
A estrutura é perversa em si mesma, a despeito do esforço individual de mui
em sala de aula e fora dela. Não era de forma alguma um desleixo. Era algo
tos de seus emblemáticos dirigentes.
perseguido, o próprio ambiente libertário na academia de Direito era utilizado
como ferramenta democratizante. A sala de aula vista em si mesma como um A Universidade é feita muito mais do que de alunos e professores. É feita
espaço de resistência. Fui aluna da graduação, do mestrado e agora do douto de idéias em um ambiente livre de coerção. É feita de posturas conscientes dian
rado. Aos poucos, debandadas de professores e novos ingressos foram modifi te do mundo. Não um outro mundo, é a própria sociedade em autoperspectiva.
cando e atualizando os quadros. A crise da Universidade pública se agudizou. A disposição de busca da transformação pessoal e do ambiente em que
Com ela, muito de desestímulo. Mas restaram ali um espaço de liberdade aca vivemos sempre esteve nos meandros de minhas escolhas. Alguns professores
dêmica e o desejo imenso de preservar as características desse curso que já era buscando a reconstrução de um território jurídico pós-positivista. Os alunos bus
naquele tempo a grande referência do pensamento jurídico-crítico sofisticado cando o suporte de seu futuro, algims, reificando o campo dos sonhos: um espa
no Brasil. Ainda tateando caminhos, reformulando currículos, revendo concei ço crítico para os alunos. Esta revista, suas promessas. Quem estará contra nós?
tos. A busca constante pela mudança e pelo desafio do novo permanece latente
1 na atmosfera do prédio apesar da crise, das marés de desânimo e das ondas
1
i
ocasionais de desatino coletivo que tomam as almas. Coisa de oncle existe vida.
1 E todo mundo, cada um ao seu modo, tentando acertar.
1
Já como professora na casa em que ainda sou aluna, continuei persistin
do em desvendar os significados. Ressentia-me quando os alunos não com
1 preendiam que o ambiente de relacionamento acessível de que dispõem com
os professores não era algo dado, mas duramente conquistado. Gerações de 5. Alexandre Nodarí.
u' 1 estud_antes despejados no mercado. Meu reencontro com o mundo da 6. Ricardo Sontag.
• 16.
• 17.
LITERASOFIA
Warat - textos ilusoriamente completos
para o Lapidarium de meu museu discursivo
Apresentação
I
Todo começo esconde uma arte. Hoje é primeiro de janeiro de 2004, um
dia de muitos começos, um momento inaugural que se bifurca em mil possibi
lidades e evoca outros começos: os primeiros passos indecisos, temerosos e
expectantes em alguma cidade desconhecida; os primeiros encontros com o
corpo de urna mulher, o primeiro encontro de dois enamorados; todas as pri
meiras impressões; a primeira linha de qualquer texto, deste texto. Qualquer
primeira vez precisa de poesia para sustentar o caminho. Existe e sempre exis
tiu urna grande primeira vez, um começo que nunca pode deixar de ser vivido
corno uma constante e permanente primeira vez: é o caminho que todos deve
ríamos empreender desde a ignorância à sabedoria. Falo do caminho de meus
próprios sentidos de vida. É o caminho do eterno começo.
Começar: posso defini-lo, com toda a imprecisão de qualquer definição,
como a necessidade de manter-se livre, pelo maior tempo possível, das percep
ções automatizadas, do prêt-à-porter de sentidos que logo virão. Começar é po
der estar fora de uma Matrix. Recomeçar é poder conseguir sair da onda. Co
meçar é poder ver as coisas pela primeira vez, ainda que se as tenha visto
setenta mil vezes antes. Estar para sempre virginalmente diante do mundo
(apesar de que os famas nos agridam chamando-nos de imprevisíveis, de nun
ca contar com os adãos de olhar para um fazer esperado ... ). Começar é poder
conservar o olhar de Adão, logo, imediatamente, no segundo seguinte de ha
ver mordido a maçã ... Começar é perguntar-se como se começa apesar de ha
ver feito uma infinidade de vezes antes esse mesmo trabalho. Isso vale para o
• 19.