Table Of ContentTmnrronnnjfnnnrTi Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro, v.62, n.4, p.343-356, out./dez.2004
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ISSN 0365-4508
TEORIA E MÉTODOS EM ANTRACOLOGIA.
2 - TÉCNICAS DE CAMPO E DE LABORATÓRIO 1
(Com 4 figuras)
RITA SCHEEL-YBERT 2
RESUMO: Este artigo dá continuação a uma série de textos sobre a metodologia antracológica adaptada às
regiões tropicais. São apresentadas as técnicas de trabalho de campo e de laboratório, em particular o modo
de depósito dos carvões de origem arqueológica, amostragem antracológica, concentração do material,
constituição de coleções de referência, utilização de bancos de dados antracológicos, determinação dos
carvões e dimensão dos fragmentos identificados, assim como uma discussão sobre amostras flotadas,
considerando os fragmentos que bóiam e o refugo de peneira.
Palavras-chave: antracologia, carvão, banco de dados, microscopia, flotação.
ABSTRACT: Theory and methods in anthracology. 2 - Field and laboratory techniques.
This paper presents a suite to a series of articles on the anthracological methodology in the tropics. We
discuss here the techniques of field and laboratory work, especially the way archaeological charcoal is
deposited, anthracological sampling, concentration of the material, constitution of reference collections, use
of charcoal data-bases, charcoal determination, and dimension of charcoal pieces that can be identified, as
well as a discussion on the flotation technique.
Key words: anthracology, archaeological charcoal, data-base, microscopy, flotation.
INTRODUÇÃO parte dos trabalhos foi realizada em regiões
mediterrâneas e temperadas da Europa (CHABAL,
A identificação de espécies a partir de material 1988, 1997; HEINZ, 1990; BADAL-GARCIA &
carbonizado é bastante antiga (HEER, 1866; HEINZ, 1991; THÉRY-PARISOT, 2001) e, em menor
PREJAWA, 1896; BREUIL, 1903), mas o método grau, nos Estados Unidos (SMART & HOFFMAN,
utilizado na época, a confecção e análise de lâminas 1988). Uma grande parte dos princípios
finas, era lento e difícil, e as pesquisas não podiam estabelecidos por estes autores pode ser aplicada
almejar à reconstituição paleoambiental. A aos estudos de antracologia tropical, mas a
utilização da microscopia de luz refletida definição de procedimentos metodológicos
(WESTERN, 1963; VERNET, 1973) possibilitou a adaptados aos trópicos é muito importante, devido
multiplicação das análises antracológicas, às especificidades de seus diversos ambientes.
facilitando o estudo dos carvões e propiciando o
A antracologia é uma disciplina relativamente nova
desenvolvimento de abordagens paleoecológicas e
no Brasil (SCHEEL, GASPAR & YBERT, 1996a,
paleoetnológicas, além de ensejar a realização de
1996b; SCHEEL-YBERT, 1998, 1999, 2000, 2001;
pesquisas metodológicas.
SCHEEL-YBERT et al, 2003), onde a necessidade
Este desenvolvimento levou os pesquisadores a de adaptação da metodologia de coleta de campo
aprimorar também os métodos de amostragem no se fez sentir desde os primeiros trabalhos. Até hoje,
campo, assim como a aprofundar uma série de ainda é raro que os arqueólogos brasileiros coletem
questionamentos teóricos sobre a pertinência e a os carvões de modo sistemático, pois este material
validade dos estudos antracológicos (cf. SCHEEL- costuma ser considerado exclusivamente como
YBERT, 2004). Ainda que a preocupação com a uma possível fonte de datações radiocronológicas.
análise metodológica tenha se desenvolvido muito Esta atitude, aliás, não é restrita à arqueologia
entre os antracólogos nas últimas décadas, a maior brasileira, e foi observada também em Portugal
1 Submetido em 10 de fevereiro de 2004. Aceito em 22 de novembro de 2004.
Apoio financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - PROFIX n° 540207/01-2) e da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ - E-26/152.430/02: Projeto “Soberanos da Costa”, coordenado por M.D.Gaspar)
2 Museu Nacional/UFRJ, Departamento de Antropologia. Quinta da Boa Vista, São Cristóvão, 20940-040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].
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(FIGUEIRAL, 1994) e na Itália (FIORENTINO, 1995), especial mas que podem ser reconhecidos no campo
por exemplo. a partir de critérios arqueológicos. As estruturas
Este artigo tem como objetivo ressaltar a contendo carvões concentrados sempre devem ser
importância da coleta sistemática dos carvões e coletadas separadamente, pois seu estudo oferece
apresentar aos arqueólogos e futuros antracólogos importantes informações paleoetnológicas.
brasileiros uma metodologia adaptada. Em regiões temperadas, considera-se que as
interpretações paleoecológicas devem ser baseadas
exclusivamente nos fragmentos de carvões
TÉCNICAS DE CAMPO
dispersos. Não só estes fragmentos recobrem um
período de atividades mais longo, mas
1. Modo de depósito dos carvões
principalmente porque se considera que o estudo
A metodologia de amostragem antracológica deve
de carvões concentrados fornece resultados
ser adaptada em função do modo de depósito dos
qualitativos e quantitativos incompletos e aberrantes
carvões. A distinção entre os carvões concentrados
do ponto de vista paleoecológico (HEINZ, 1990).
nas estruturas de combustão e os carvões dispersos
Diversos autores observaram que as amostras de
nas camadas arqueológicas é fundamental, pois
fogueiras (carvões concentrados) fornecem
estes dois tipos de depósito fornecem informações
geralmente um número de taxa inferior àquele
distintas e, em conseqüência, devem ser coletados
encontrado nos carvões dispersos nos sedimentos
separadamente. Os carvões concentrados são mais
arqueológicos, e que eles são freqüentemente sub-
visíveis durante a escavação, mas as camadas
ou super-representados (HEINZ 1990; BADAL
arqueológicas em geral apresentam também uma
GARCIA & HEINZ 1991; BADAL GARCIA 1992).
grande quantidade de carvões dispersos no
No entanto, CHABAL (1989a) e THIÉBAULT (1995)
sedimento (CHABAL, 1988, 1997; HEINZ, 1990;
observaram que em certos casos os carvões de
BADAL-GARCIA & HEINZ, 1991), provenientes da
fogueiras fornecem informações bastante precisas
dispersão dos fragmentos de queima ou da limpeza
sobre o paleoambiente vegetal; para isso, é
periódica de fogões ou fogueiras.
necessário que a amostra apresente uma grande
Os sedimentos da maior parte dos sítios arqueológicos
riqueza taxonômica, associada a um longo tempo
brasileiros contêm uma grande quantidade de
de utilização. PERNAUD (1992) concorda que os
fragmentos de carvão dispersos. É provável que eles
carvões concentrados em certas estruturas podem
tenham sido originados pela queima de lenha
fornecer uma imagem válida do ambiente vegetal,
doméstica, mas essa hipótese ainda deve ser confirmada
mas alerta que é somente a análise dos fragmentos
na maioria dos casos. No caso de sambaquis do litoral dispersos que confirma, ou não, a validade das
brasileiro, foi demonstrado que os carvões dispersos interpretações obtidas.
provinham efetivamente da lenha coletada para uso
Na zona tropical, só existe até agora um estudo
doméstico, para a qual não havia seleção (SCHEEL-
sobre esta questão (SCHEEL-YBERT, 1998).
YBERT, 1999,2001). A análise de fragmentos de carvão
Diversas amostras de carvões concentrados de
provenientes de várias coletas de madeira (lenha)
fogueiras de sambaquis foram analisadas no
sucessivas ao longo do período de ocupação, que
sudeste do Estado do Rio de Janeiro, demonstrando
representem uma boa amostragem da vegetação
que eles em geral apresentam uma grande
contemporânea, é uma premissa indispensável para
diversidade florística e permitem em todos os casos
uma boa interpretação paleoecológica baseada neste
a dedução de um ambiente vegetal que é
material (SCHEEL-YBERT, 2004).
qualitativamente semelhante ao que é verificado
Os carvões concentrados freqüentemente se originam pelo estudo dos carvões dispersos. Isso tende a
de fogos, fogões ou fogueiras que tiveram uma curta mostrar que, em teoria, o estudo de carvões
utilização no tempo, ou representam apenas os restos concentrados fornece, nos trópicos, informações
da última queima neles realizada, o que implicaria paleoecológicas fiáveis, desde que se disponha de
numa amostra pouco significativa da vegetação como um grande número de fogueiras, contendo uma
um todo. Eles podem também estar relacionados a grande quantidade de fragmentos, em cada camada
atividades especializadas, por exemplo materiais de arqueológica. Na prática, esta condição é muito
construção ou objetos manufaturados queimados dificilmente preenchida, de modo que, em função
acidentalmente, queima de cerâmica ou, em outras do mínimo amostrai, as análises paleoecológicas
regiões do mundo, fornos de padaria, de metalurgia devem ser preferencialmente baseadas no estudo
etc., que muitas vezes requerem um combustível dos carvões dispersos.
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TEORIA E MÉTODOS EM ANTRACOLOGIA. 2 - TÉCNICAS DE CAMPO E DE LABORATÓRIO 345
2. Amostragem antracológica amostrada deve perfazer entre V* e a totalidade de
cada metro quadrado, em função da riqueza da
Uma análise antracológica qualitativa e
camada em carvões (CHABAL, 1988).
quantitativamente confiável só é possível a partir da
análise de um grande número de carvões para cada Este método pode ser adaptado, seja em razão de
estrato3, de modo que a superfície do sítio contingências da escavação arqueológica (SCHEEL-
arqueológico deve ser amostrada o mais amplamente YBERT, 1998), seja devido à abundância de carvões
possível, para cada nível estratigráfico. no sítio (SCHEEL-YBERT 85 SOLARI, no prelo).
O ideal é que a amostragem antracológica seja feita No caso do Sambaqui Ilha da Boa Vista I (Estado do
concomitantemente à escavação arqueológica, a qual Rio de Janeiro), por exemplo, cuja escavação foi feita
deve seguir o método de decapagem de camadas pelo método de decapagem de superfícies amplas, a
naturais em superfícies amplas, a fim de obter malha de quadriculamento adotada pelos
resultados que permitam boas interpretações arqueólogos foi de 2 metros de lado (BARBOSA,
paleoecológicas e paleoetnológicas e que levem em GASPAR & BARBOSA, 1994). A amostragem
conta as eventuais heterogeneidades locais do sítio. antracológica foi feita em quadrículas alternadas,
O método geralmente preconizado para a coletando-se, em cada decapagem, um balde de 10
amostragem concomitante à escavação consiste na litros de sedimento em seções de 30 x 30cm situadas
amostragem sistemática do sítio seguindo uma no ângulo nordeste de cada quadrícula (Fig.l). Este
malha de lm2. Deve-se coletar uma amostra em cada material foi peneirado a seco, no campo, com malha
quadrícula, em cada decapagem. A superfície a ser de 4 mm e reservado para flotação e triagem posterior.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
R
(cid:9632) (cid:9632) (cid:9632) (cid:9632)
Q g
(cid:9632) (cid:9632)
P u u
(cid:9632) (cid:9632) (cid:9632) (cid:9632)
O g
(cid:9632) (cid:9632)
N u u
(cid:9632) (cid:9632)
M (cid:9632) (cid:9632) p
L (cid:9632) (cid:9632) u (cid:9632)
1
K (cid:9632) (cid:9632) (cid:9632)
J (cid:9632) u (cid:9632) 1
trincheira leste - oeste
I . (cid:9632) . ////// • YJjOtâ ;. íSíííí
H
G
F
E
D
C
B
A
trincheira norte - sul
0 6 m
Fig.l- Esquema do quadriculamento do Sambaqui da Ilha da Boa Vista I, com localização das quadrículas amostradas e do
perfil antracológico ((cid:9632)) em escala exagerada. A elipse cinza escuro representa a superfície do sítio; o círculo cinza claro
representa a área de maior concentração dos vestígios de habitação (adaptado de BARBOSA, GASPAR & BARBOSA, 1994).
3 Uma discussão sobre o número mínimo de carvões da amostra antracológica e sobre a validade amostrai será apresentada em um artigo posterior desta série.
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346 R. SCHEEL-YBERT
No caso do Abrigo Santa Elina (Estado de Mato neste tipo de amostragem. Por isso, foi concebido
Grosso), sítio que se caracteriza pelo excelente um “guia de amostragem”, muito simples de
estado de conservação dos macro-restos vegetais e construção e de utilização, que facilita a realização
pela grande abundância de carvões (SCHEEL- das amostragens em níveis regulares (YBERT,
YBERT & SOLARI, no prelo), a malha definida SCHEEL & GASPAR, 1997).
durante a escavação arqueológica foi de 1 metro Por outro lado, deve-se sempre evitar “raspar” o
de lado. A amostragem antracológica foi sedimento com a colher durante a coleta para
inicialmente feita em todas as quadrículas, nas amostragem antracológica, a fim de não esmagar
quais foi coletado sedimento em seções os carvões. Preferencialmente, deve-se retirar
correspondentes a V* de cada metro quadrado, em pequenos blocos de sedimento e colocá-los no
cada decapagem. Este material foi peneirado a seco balde. O mesmo deve ser observado durante a
com malha de 4mm e os carvões foram recuperados peneiragem; a utilização da pazinha para “ajudar”
por triagem manual diretamente no campo. A o sedimento a passar pela peneira destrói os
quantidade excessiva de carvões obtida levou a uma carvões e impossibilita sua análise, ainda mais
redução da amostragem em campanhas quando o sedimento está molhado. Deve-se evitar
posteriores, que continuou sendo feita em seções inclusive esmagar o sedimento contra a peneira,
de Vi de metro quadrado, mas em quadrículas mesmo com as mãos, a fim de não destruir os
alternadas. Ainda assim, uma grande quantidade carvões que se pretende analisar.
de carvões foi coletada.
Na arqueologia brasileira, limitações de tempo e 3. Concentração do material
dinheiro freqüentemente conduziram os
De um modo geral, três métodos de recuperação
arqueólogos a realizar escavações em pequenas
dos carvões podem ser utilizados: coleta manual,
trincheiras, baseadas em decapagens artificiais e
peneiragem ou flotação (BADAL et al, 1989;
com recuperação parcial dos vestígios. Embora esta
FIGUEIRAL, 1992).
tendência esteja sendo revertida, escavações em
A coleta manual dos carvões só é indicada para os
superfícies amplas ainda são relativamente raras,
carvões concentrados. Ela é útil no caso da
de modo que a amostragem antracológica deve
identificação de estruturas no campo, por exemplo
sempre ser feita de acordo com o modo de escavação
fogueiras ou estacas queimadas, para dar
escolhido e as condições encontradas pela equipe
informações sobre a associação de restos botânicos
que estuda o sítio. Nos casos em que uma
com outros tipos de vestígios, e também para
amostragem por superfícies amplas não é possível,
datação. No entanto, este método não deve ser
ou em sítios nos quais as escavações tenham sido
utilizado como único modo de amostragem
realizadas previamente, sem recuperação dos
antracológica, pois geralmente só leva em conta os
carvões, pode-se proceder à amostragem
fragmentos maiores, resultando inevitavelmente
antracológica pelo método de perfis. Este método
numa amostra distorcida.
também pode ser utilizado em associação ao
método de amostragem sistemática. A utilização da peneira garante uma melhor
No caso de amostragem de solos, a coleta é feita amostragem, sendo importante para revelar os
exclusivamente ao longo de perfis, por decapagem carvões dispersos contidos no sedimento
de camadas sucessivas em níveis artificiais. arqueológico. No entanto, é fundamental que todos
os fragmentos de carvão retidos pela peneira sejam
A amostragem em perfil padronizada por nossa
coletados, pois a seleção das peças maiores ou mais
equipe segue seções de 2m de largura por 50cm de
bem conservadas introduz um elemento de escolha
profundidade (ou seja, lm2); a decapagem é feita
subjetiva que acarretará erros de interpretação.
em níveis artificiais de lOcm de espessura. Nos
casos em que a estratificação natural da camada Em regiões tropicais, a concentração do material
arqueológica estiver em discordância com os níveis arqueológico deve ser feita utilizando-se peneiras
artificiais, é importante sempre proceder de modo de malha de 4mm (vide “Dimensão dos fragmentos
a não misturar o material proveniente de identificados”). Podem-se usar peneiras de malha
sedimentos diferentes. Deve-se também sempre inferior, mas nunca superior.
coletar as amostras de carvões concentrados Tanto no caso de amostragem sistemática em
separadamente. superfícies amplas, quanto de coletas em perfil, o
Freqüentemente é difícil manter-se constantes a sedimento deve ser coletado em baldes. Deve-se
horizontalidade e a espessura dos níveis artificiais sempre anotar a quantidade de baldes retirada em
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cada unidade, a fim de se ter uma estimativa mais numa cuba, em uma corrente de água
precisa do volume de sedimento amostrado. Sempre turbilhonante. Os carvões, liberados do sedimento,
que possível, deve-se pesar o sedimento contido são levados à superfície da água e em direção à
nos baldes. Estes dados são importantes para se periferia da cuba, caindo sobre uma peneira de
comparar a abundância relativa de carvões entre malha fina onde os elementos sólidos são
as diversas camadas de um sítio ou entre sítios recuperados (YBERT, SCHEEL & GASPAR, 1997;
diferentes, o que só é possível quando se conhece PEARSALL, 2000). Esta técnica é baseada na
o tamanho exato da amostra (superfície amostrada, diferença de densidade dos resíduos orgânicos e
volume, peso do sedimento amostrado etc.). inorgânicos. Fragmentos carbonizados de madeira,
A peneiragem a seco, relativamente fácil, pois sementes ou tubérculos em geral flutuam,
normalmente faz parte da cadeia operatória da enquanto restos de moluscos, ossos e cerâmica,
escavação arqueológica, em geral é insuficiente são depositados na peneira.
para uma concentração eficaz da amostra Existem vários modelos de células de flotação,
antracológica. Embora o ideal seja peneirar o desde o artesanal, baseado na imersão de um balde
sedimento uma única vez, isto nem sempre é numa cuba maior contendo água, até os mais
possível, devido a limitações técnicas. Por isso pode- elaborados, com assistência mecânica. O modelo
se, por exemplo, peneirar o sedimento a seco no de uma célula de flotação desenvolvido no Brasil
campo, a fim de diminuir a quantidade a ser foi apresentado por YBERT, SCHEEL & GASPAR
transportada, e fazer a flotação posteriormente. (1997); vários modelos utilizados nos Estados
A peneiragem com água pode ser feita por imersão Unidos e na Europa foram apresentados por
parcial das peneiras num tanque, piscina ou PEARSALL (2000).
equivalente, ou lavando-se o sedimento da peneira Se existir uma fonte de água nas proximidades do
com uma mangueira. A peneiragem com mangueira, sítio, a flotação pode ser feita diretamente no campo.
muito útil para outras disciplinas, principalmente Quando possível, deve-se esvaziar sistematicamente
a zooarqueologia, costuma ser inadequada para a a cuba da célula de flotação após o tratamento de
recuperação dos restos vegetais, que podem ser cada amostra, a fim de evitar contaminação entre
pulverizados pelo jato de água ou pelos instrumentos amostras diferentes, especialmente quando existe
utilizados para revolver o material. a possibilidade de se fazer uma datação
O maior problema envolvido na utilização de radiocarbônica posterior (vide “Análise e identificação
peneiras para a amostragem antracológica decorre dos carvões”). No campo ou no laboratório, o
do enorme volume de material a ser triado, em sedimento que permanece sobre a peneira (refugo
particular para os níveis ricos em conchas (no caso de peneira) deve ser sistematicamente triado, a fim
de sambaquis) ou em cascalho, tornando este de recuperar os fragmentos de carvão que não
método, em geral, lento e pouco produtivo. flutuaram (vide “Amostras flotadas: fragmentos
flutuantes e refugo de peneira’).
A flotação é o método ideal para recuperação dos
restos vegetais, pois implica em menor esforço O material peneirado com água ou submetido a
metodológico e maior eficiência, além de ser o flotação deve ser seco longe de uma fonte de calor
menos agressivo para o material. A flotação permite intensa para evitar sua fragmentação e deterioração
a recuperação de material botânico de todas as da estrutura anatômica. A utilização de cones de
classes de tamanho preservadas no sedimento. Os papel jornal é muito prática para secar os
fragmentos de carvão sendo de pequenas fragmentos, que em seguida devem ser
dimensões e muito leves, sua capacidade de acondicionados em sacos plásticos, mas deve ser
flutuação pode ser aproveitada para separá-los do evitada quando se intenciona fazer a datação dos
material mais pesado. Além disso, na medida em carvões. Os carvões não devem ser manipulados
que uma parte do material flutua e a outra até sua secagem completa, a fim de evitar uma
permanece retida pela peneira da célula de flotação, quebra acidental.
este método facilita a separação de numerosos
outros restos, úteis a outras disciplinas (sementes, 4. Amostras flotadas: fragmentos flutuantes e refugo
moluscos, ossos de peixe, cerâmica, fauna etc.). DE PENEIRA
O princípio de funcionamento de uma “célula de Num estudo feito em diferentes frações resultantes
flotação” é bastante simples. Consiste em lavar o da flotação de uma amostra do sítio de Lattara, na
sedimento, depositado em uma peneira submersa região mediterrânea da França, foi observado que
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o refugo da peneira contém tantos fragmentos a ílotação de amostras de fornos de carvoeiros, os
quanto a fração flotada (que bóia), mas que a fragmentos vitrificados afundam sistematicamente,
riqueza taxonômica é muito mais elevada nesta ao contrário dos não vitrificados (P.OGEREAU,
última (CHABAL, 1989b, 1997). A autora considera com.pes., 1998). A vitrificação, que provoca a fusão
esse fato como uma regra geral, e acredita que a das paredes celulares, diminui os espaços vazios
ílotação provoque uma triagem desigual em função no interior do carvão, o que resulta num aumento
do peso dos fragmentos: apenas os maiores de densidade do carvão.
fragmentos seriam retidos na peneira (o que Apesar de discordar de suas hipóteses, há
explicaria a menor riqueza taxonômica do refugo concordância com CHABAL (1989b, 1997) quanto
da peneira) e somente eles sofreriam uma à necessidade de se triar sistematicamente o
refragmentação posterior (o que explicaria o mesmo refugo de peneira após a ílotação e de se analisar
número de fragmentos nas duas frações). os fragmentos das duas frações, a fim de obter
No estudo antracológico do Sambaqui do Forte uma imagem mais representativa da composição
(Cabo Frio, Estado do Rio de Janeiro), a fração taxonômica da amostra antracológica.
flotada e o refugo da peneira de 32 amostras
foram coletados e analisados separadamente
TÉCNICAS DE LABORATÓRIO
(SCHEEL-YBERT, 1998). A quantidade de
fragmentos em cada uma destas frações é muito
1. Análise e identificação dos carvões
variável de um nível a outro, mas os carvões
A determinação taxonômica dos carvões fósseis é
flotados são em geral predominantes. No plano
feita pela comparação de sua estrutura anatômica,
qualitativo, observou-se que certos taxa se
que se conserva perfeitamente após carbonização,
encontram sempre preferencialmente no refugo
com aquela do lenho de espécies atuais
da peneira (p.ex. Condalia sp) ou nos carvões
conhecidas, seja diretamente a partir de amostras
flotados (p.ex. Maytenus sp, Pachystroma sp),
carbonizadas contidas numa coleção de referência,
enquanto outros podem ser, de acordo com as
seja através de descrições e/ou fotografias de
amostras, mais abundantes em uma fração ou
obras da literatura.
em outra (p.ex. Myrtaceae tipo 1 e tipo 5). A
Existe um grande número de atlas de anatomia da
riqueza taxonômica das duas frações é, em geral,
madeira relativos às espécies mediterrâneas e
comparável (Fig.2). Além disso, não foi notada
temperadas (GREGUSS, 1959; SCHWEINGRUBER,
nenhuma diferença de repartição de tamanho
entre os carvões flotados e os que permaneceram 1978, 1990; VERNET et al, 2001 etc.), mas eles
na peneira, e nós consideramos que não existe são raros nas zonas tropicais e, quando existentes,
nenhuma razão que possa explicar que uma se referem mais especificamente à região amazônica
refragmentação posterior afete os fragmentos de (DÉTIENNE & JACQUET, 1983; DECHAMPS, 1979,
somente uma das duas frações. 1980, 1985), ou são especializados em madeiras
comerciais (MAINIERI & CHIMELO, 1989), com
A melhor forma de explicar as variações observadas
raras exceções (BARROS & CALLADO, 1997).
são as diferenças de características físicas entre
Existem também livros gerais de anatomia que,
os taxa, especialmente a densidade, mas também
embora bastante completos, não têm vocação para
a presença eventual de impregnações calcárias, que
“atlas” (METCALFE & CHALK, 1950).
tendem a aumentar a densidade dos fragmentos e,
logo, a impedi-los de flutuar. Nos casos em que o Uma importante série de trabalhos referentes às
sedimento arqueológico está molhado, os carvões madeiras americanas foi publicada por RECORD e
também ficam encharcados, o que aumenta sua HESS (RECORD, 1942, 1943a, b, 1944a, b, c, d, e;
densidade e impede a flutuação. Por outro lado, é HESS, 1946, 1948; RECORD & HESS, 1943, entre
provável que o fenômeno de vitrificação4 também outros). Suas chaves de determinação são muito
esteja relacionado. De fato, os fragmentos de úteis, mas a raridade das ilustrações torna difícil a
Condalia sp, encontrados principalmente na fração utilização destes trabalhos para a determinação
não-flotada, estavam sempre vitrificados. Durante antracológica. Este é o caso também das obras de
4 Fenômeno de fusão e de homogeneização das paredes celulares do carvão, que adquire um aspecto vitrificado e muito refringente. Apesar do nome, este
fenômeno não tem relação com a fusão do silício, que só ocorre em temperaturas muito altas (ca. 1300 a 1400°C). Corpos silicosos intactos são freqüentemente
encontrados no interior de células carbonizadas, e servem como critério de determinação.
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TEORIA E MÉTODOS EM ANTRACOLOGIA. 2 - TÉCNICAS DE CAMPO E DE LABORATÓRIO 349
nível 200-2lOcm
(cid:9633) flotados (Ni: 61; Nsp: 23)
(cid:9632) não flotados (Ni: 93; Nsp: 28)
nível 230-240cm
<
Fig.2- Proporção entre carvões flotados e não flotados em três níveis diferentes do Sambaqui do Forte (RJ), em número de
fragmentos; (-») taxa mencionados no texto.
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350 R.SCHEEL-YBERT
DECHAMPS (1979, 1980, 1985). Pode-se utilizar A utilização de técnicas de microscopia mais
também um grande número de artigos especializados avançadas, como por exemplo o contraste
na anatomia de espécies atuais, que é impossível citar interferencial (DIC), pode ser muito útil para uma
por extenso. Para uma excelente compilação das melhor visualização dos caracteres anatômicos, em
referências bibliográficas sobre a anatomia particular detalhes observados em maior aumento,
sistemática da madeira de espécies atuais publicadas como por exemplo as características das pontuações.
de 1900 até 1993, ver GREGORY (1994).
Observações em microscopia eletrônica de
A análise dos fragmentos de carvão a serem
varredura (MEV) também podem ser feitas, a fim
identificados é feita em microscópio óptico de luz
de confirmar as determinações ou para
refletida com campo claro e campo escuro, a partir
representação fotográfica das amostras. Embora
da quebra manual dos fragmentos segundo os três
BLANKENHORN, JENKINS 8& KLINE (1972) e
planos fundamentais da madeira: transversal,
CUTTER, CUMBIE 86 MCGINNES (1980) façam
longitudinal tangencial e longitudinal radial (Fig.3).
referência à boa condutividade dos carvões, que
Para as identificações, uma grande importância deve
tornaria inútil qualquer preparação antes da
ser dada aos caracteres qualitativos (disposição dos
observação em MEV, nós obtivemos melhores
poros e do parênquima, seriação dos raios, ornamento
resultados com uma metalização prévia com
das pontuações intervasculares, tamanho e forma
platina.
das pontuações radiovasculares, presença de canais,
corpos silicosos etc.), mas deve-se levar em conta Note que, como nenhum tratamento químico é
também as medidas dos caracteres anatômicos. efetuado, é possível obter-se, após a determinação
Informações sobre o estudo da anatomia da madeira anatômica no microscópio óptico, uma datação de
podem ser encontradas na literatura especializada 14C no mesmo fragmento (VERNET, BAZILE 8& EVIN,
(BURGER 86 RICHTER, 1991; IAWA COMMITTEE, 1979), o que é muito interessante quando a
1989; METCALFE 86 CHALK, 1950; etc.). quantidade de carvões coletada é pequena.
Plano transversal
Fig.3- Os três planos fundamentais da madeira: relação com o eixo do lenho e imagens em microscopia eletrônica de
varredura (Leguminosae Caesalpinoideae: Cassia speciosa Schrad.).
Arq. Mus. Nac., Rio de Janeiro, v.62, n.4, p.343-356, out./dez.2004
TEORIA E MÉTODOS EM ANTRACOLOGIA. 2 - TÉCNICAS DE CAMPO E DE LABORATÓRIO 351
2. Dimensão dos fragmentos identificados outra deve ser carbonizada visando sua inclusão
na coleção de referência. As amostras carbonizadas
Fragmentos de carvão de apenas 0,5mm de lado
não devem medir menos de lcm de lado.
podem ser identificados, especialmente no caso das
Idealmente, a carbonização é feita em um forno a
gimnospermas de regiões temperadas (VERNET,
mufla, no qual as amostras são carbonizadas a 400°C
BAZILE & EVIN, 1979), mas em fragmentos tão
durante 40 minutos. Cada amostra de madeira deve
pequenos a determinação é em geral longa, difícil
ser embrulhada em papel alumínio, com o número
e imprecisa (CHABAL, 1988; SCHEEL-YBERT,
de referência escrito a lápis, na madeira, e com caneta
2000). Quanto menor 0 fragmento, mais difícil será
permanente, no papel alumínio.
sua determinação, e mais elevado será o nível
taxonômico alcançado. O estudo de fragmentos Quando não se dispõe de um forno, as amostras
muito pequenos, além de aumentar o esforço de de madeira podem ser queimadas em uma
determinação, tem como conseqüência diminuir a fogueira (G.WILLCOX, com.pes., 1996),
precisão da determinação taxonômica. embrulhadas em papel alumínio e com as
referências de cada amostra marcadas, por
Em regiões tropicais, fragmentos cujo lado maior é
exemplo, em etiquetas de alumínio escritas em
inferior a 4mm são muito dificilmente identificáveis,
baixo-relevo. Embora o grafite seja resistente à
pois eles não costumam reunir um conjunto de
queima, não se deve confiar exclusivamente na
caracteres anatômicos suficientemente amplo para
referência escrita a lápis sobre a madeira, pois
permitir sua determinação, sequer no nível de
pode ocorrer uma deposição de óleos e graxas
família (SCHEEL-YBERT, 2000, 2001).
que cobre a superfície da amostra.
A precisão de determinação possível em regiões
Após carbonização, as amostras devem ser
onde a diversidade florística é menor não será
organizadas de forma a facilitar seu acesso e
provavelmente jamais alcançada em estudos nos
consulta. A melhor solução que encontramos é a
trópicos. Contudo, uma diminuição no grau de
utilização de organizadores com pequenas gavetas
incerteza das determinações pode ser obtida
(Fig.4). Cada gaveta é etiquetada com o nome da
levando-se em consideração sistematicamente um
espécie e o número de referência, mas um arquivo
grande número de caracteres anatômicos em cada
completo contendo todas as informações de coleta
amostra, o que impõe um tamanho mínimo para
também deve ser feito.
os fragmentos estudados e torna necessária a
utilização de um máximo de dados da literatura,
de uma boa coleção de referência e de um banco 4. Características da madeira carbonizada
de dados o mais completo possível.
A constituição de coleções de referência de madeira
carbonizada é fundamental, em particular devido
3. Constituição de uma coleção de referência às eventuais modificações estruturais do lenho
De modo geral, a anatomia de madeiras tropicais após combustão.
é muito pouco conhecida, especialmente no Embora não afete a organização dos tecidos do
Brasil. Na maioria dos casos, os trabalhos lenho, o processo de carbonização pode resultar
existentes na literatura são insuficientes para a em variações dos caracteres morfométricos
determinação da maioria das espécies lenhosas (tamanho das células), as quais são devidas a
encontradas nas análises antracológicas. Em uma importante reorganização estrutural da
conseqüência, a elaboração de coleções de madeira submetida a fortes temperaturas. O
referência de madeiras e de carvões atuais para aumento da temperatura provoca a degradação
as diferentes associações vegetais encontradas da celulose e da hemicelulose e o rearranjo do
na região de estudo é indispensável. carbono numa estrutura semelhante à grafite,
As amostras podem ser obtidas a partir de coletas acompanhados da destruição da estrutura
de campo ou de doações de xilotecas. Quando se microfibrilar da madeira (MCGINNES, KANDEEL
faz amostragem no campo, é indispensável coletar & SZOPA, 1971). Experimentos de carbonização
também material fértil (flores e frutos), a fim de de amostras de Quercus alba mostraram que as
produzir exsicatas que permitam a identificação alterações mais significativas concernem as
taxonômica do material por especialistas. dimensões das amostras, com uma retração que
Todas as amostras de madeira atual obtidas devem variou de cerca de -12% a -25% e que é mais
ser, na medida do possível, divididas em duas elevada no plano tangencial longitudinal
partes: uma parte deve ser conservada intacta e a (MCGINNES, KANDEEL & SZOPA, 1971).
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352 R.SCHEEL-YBERT
Fig.4- Aspecto dos organizadores contendo a coleção de referência de madeiras carbonizadas (antracoteca) do Laboratório
de Antracologia do Museu Nacional.
A análise das respostas à carbonização de seis deveremos utilizar os dados anatômicos
espécies africanas pertencentes a diversas famílias quantitativos com muita prudência, especialmente
demonstrou que a natureza e a magnitude das quando compararmos carvões a amostras de
modificações são muito variáveis, e em grande parte madeira não-carbonizadas. Em todo caso, o grau
dependentes da natureza das fibras da madeira de incerteza nas determinações será sempre
(PRIOR & GASSON, 1993). As variações nos minimizado pela utilização de uma coleção de
caracteres morfológicos e anatômicos medidos são referência de amostras carbonizadas.
tão mais importantes quanto a temperatura de
carbonização é mais elevada. Segundo estes 5. Banco de dados antracológico
resultados houve, após carbonização, uma dilatação
A imensa riqueza da vegetação brasileira tem por
das células de parênquima axial e uma diminuição
conseqüência uma maior dificuldade de
significativa da altura dos raios lenhosos em todas
identificação das espécies que no caso de regiões
as espécies, enquanto que as variações do diâmetro
onde a diversidade florística é menor. Para facilitar
tangencial dos poros variou entre uma diminuição
o processo de determinação dos fragmentos
de -41% até uma dilatação de +28%.
antracológicos, foi elaborado um programa que
Em consequência, tanto que nosso conhecimento permitiu a constituição de um banco de dados
dos processos de carbonização e das mudanças informatizado (SCHEEL-YBERT, SCHEEL &
anatômicas que intervém em sua estrutura durante YBERT, 1998). Esse programa funciona em
sua transformação em carvão não serão completas, Windows, foi escrito em Microsoft Access 2.0 e
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