Table Of ContentUNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DÁRIO RIBEIRO DE SALES JÚNIOR
SOBRE OLHAR E APRENDER:
UM ESTUDO SOBRE O PROCESSO DE APRENDIZADO RELIGIOSO
DE CRIANÇAS CANDOMBLECISTAS
SALVADOR
2013
Dário Ribeiro de Sales Júnior
Sobre olhar e aprender: um estudo sobre o processo de aprendizado religioso das
crianças candomblecistas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal da Bahia, como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Miriam Cristina Marcilio Rabelo
Salvador
2013
_____________________________________________________________________________
Sales Júnior, Dário Ribeiro de
S163 Sobre olhar e aprender: um estudo sobre o processo de aprendizado religioso das
crianças candomblecistas / Dário Ribeiro de Sales Júnior. – Salvador, 2013.
84f.: il.
Orientadora: Profª Drª Miriam Cristina Marcilio Rabelo
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, 2013.
1. Cultos afro-brasileiros – Aprendizagem. 2. Crianças – Educação. 3. Candomblé.
4. Percepção. I. Rabelo, Hita, Miriam Cristina Marcilio. II. Universidade Federal da
Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
CDD – 299.67
_____________________________________________________________________________
“Anthropology is philosophy with the people in.”
Tim Ingold
“É preciso ir longe para voltar às coisas mesmas.”
Eduardo Viveiros de Castro
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço ao meu pai, Dário e à minha mãe, Fátima (em
memória), se os afetos e os esforços deles não estivessem coadunados aos meus esta
realização seria impossível.
A minha orientadora, Miriam Rabelo, por quem tenho enorme admiração, agredeço
por ter se dedicado junto comigo à realização deste trabalho, por sua disponibilidade para
ouvir minhas inquietações e por seu luxuoso suporte intelectual.
A Cláudia Moura, a quem amo muito, sou grato por seu companherismo durante
todo o processo de feitura desta dissertação e por sua leitura atenciosa da mesma.
Sou grato ao Tata Ricardo de Lembá, a Mãe Beata e a todos os seus filhos e filhas de
santo por serem sempre tão solicitos e atenciosos comigo.
Agredeço às crianças, Yuri, Zaion, Ricardo, Rodrigo, Renato, Mayara, Taymara,
Alisson e Vitor, por terem aceitado fazer esta pesquisa junto comigo. Agradeço também às
suas respectivas mães, em especial a Ticiana e Mara.
Agradeço a Ritinha, com quem pude contar desde o início deste trabalho, por ter sido
minha primeira entrevistada e por ter me apresentado a diversos dos interlocutores desta
pesquisa. Sou grato também a Clara Lourido, Elisia Santos, Marcos Paulo, Naira Gomes e
Zeza Barral pelo interesse demonstrado nesta dissertação.
Agradeço aos membros do Núcleo de Estudos em Corporalidades, Sociabilidades e
Ambientes (ECSAS), em geral, e a Paulo César Alves, em particular, com quem tive o
privilégio de discutir as minhas opções metodológicas.
Agradeço a Iara Souza e a Luis Nicolau Páres, que aceitaram o convite para
participar de minha banca e que muito contribuíram com suas observações.
Sou grato aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e aos
funciónarios da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, em especial a Dôra.
Agradeço também à Fapesb pelo financiamento desta pesquisa.
RESUMO
O objetivo geral desta dissertação é propor uma alternativa teórica para a
compreensão dos processos de aprendizagem, tendo como ponto de partida a observação e
análise de como as crianças candomblecistas aprendem a lidar com as demandas implicadas
no pertencimento religioso. Entenda-se por demandas: (1) as habilidades que as suas posições
na hierarquia sacerdotal solicitam, bem como (2) as relações que são estabelecidas com as
entidades espirituais e com outros membros do grupo religioso e (3) o enfrentamento de
episódios de intolerância religiosa. Durante aproximadamente quatorze meses eu desenvolvi
pesquisa etnográfica junto a nove crianças em dois terreiros de Candomblé da região
metropolitana de Salvador, Bahia. A partir da análise das relações que as crianças estabelecem
com outros membros mais habilidosos e com o ambiente no qual elas habitam, busquei
compreender o que as crianças querem dizer quando afirmam que aprendem olhando.
Defendo que, para elas, obervar alguém é o mesmo que participar de uma atividade. Observar
é o mesmo que seguir os passos de outros seres humanos e não-humanos e, portanto, não pode
ser definido como uma atitude meramente passiva. Aponto que as brincadeiras infantis que
envolvem aspectos religiosos são fundamentais para o desenvolvimento de um habitus. Além
disso, as cerimônias públicas do Candomblé constituem excelentes oportunidades para que as
crianças possam desenvolver e refinar algumas de suas habilidades. Conclui que as crianças
aprendem a partir de seu envolvimento diário nas dinâmicas do terreiro e o que elas aprendem
são disposições corporificadas para agir e não representações acerca do mundo. Esse tipo de
aprendizado está assentado em um senso de familiaridade que precede o processo formal de
iniciação religiosa. Por fim, procuro evidenciar como o engajamento religoso e sua
consequente objetificação do sujeito implica ter que lidar com episódios de intolerância
religiosa na infância. Dados etnográficos e o paradigma da corporeidade neo-fenomenológico
alicerçam e guiam as reflexões aqui esboçadas.
Palavras-chave: aprendizado, crianças, Candomblé, habilidades e percepção.
ABSTRACT
This thesis’ main aim is to propose an theorical alternative for understanding the
religious learning processes, taking as its starting point the observation and analysis of how
children who follow the Candomblé, an Afro-Brazilian religion, handle the demands of their
religion. By demands I mean: (1) the skills that are required by their positions in the
sacerdotal hierarchy of that religion, (2) the relationships that are established with spiritual
entities and other members of the religious group and (3) dealing with episodes of religious
intolerance. During almost fourteen months I carried on an ethnographic research in two
terreiros (cult house) of Candomblé in the metropolitan area of Salvador, the capital of the
State of Bahia, Brazil. Based on analysis of the relations that the children establish with others
more skilled Candomblé practitioners and the environment they dwell in, I sought to
understand what the children mean when they say that they learn by observing other people’s
actions. I claim that for them to look at someone is a synonym for taking part in an activity, it
means to follow other (human and non-human) beings’ paths and, therefore, cannot be
defined as a simple passive attitude. I point out that the children’s games which involve some
religious aspect are fundamental to the development of a habitus. Besides, the public rituals of
Candomblé are notably opportunities for kids to develop and refine some of their skills. I
conclude that the children learn through their daily engagement in the terreiros’ dynamic and
what they learn are embodied dispositions to act and not representations about the world. This
kind of learning is grounded on a sense of familiarity which precedes the formal process of
initiation in the religion. Finally, I intend to demonstrate how the religious engagement and its
consequent objectivizing of the subject implies learning how to struggle against religious
intolerance in the childhood. Ethnographic data, the theory of practice and a neo-
phenomenological embodiment paradigm ground and guide the reflections here outlined.
Keywords: learning, children, orisha religion, perception and abilities.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 8
1 CAPÍTULO 1: APRENDENDO A PESQUISAR COM CRIANÇAS................ 21
1.1 SOBRE DESENHOS QUE SE DOBRAM E SE DESDOBRAM ........................... 22
1.2 UMA ENTREVISTA CONTROVERSA.................................................................. 29
2 CAPÍTULO 2: CULTURA E PERCEPÇÃO........................................................ 40
3 CAPÍTULO 3: SOBRE O APRENDIZADO NO CANDOMBLÉ COMO
PROCESSO DE EDUCAÇÃO DA ATENÇÃO.................................................... 52
3.1 O CORPO E SEU AGIR HABITUAL...................................................................... 52
3.2 DESENVOLVENDO HABILIDADES..................................................................... 56
3.2.1 Os rituais públicos do Candomblé.......................................................................... 58
3.2.2 A possessão............................................................................................................... 62
4 CAPÍTULO 4: INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E RELAÇÕES DE
PODER...................................................................................................................... 67
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 76
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 80
INTRODUÇÃO
O objetivo geral desta dissertação é propor uma alternativa teórica para a
compreensão dos processos de aprendizagem, tendo como ponto de partida a observação e
análise de como as crianças candomblecistas aprendem a lidar com as demandas implicadas
no pertencimento religioso. Entenda-se por demandas: (1) as habilidades que as suas posições
na hierarquia sacerdotal solicitam, bem como (2) as relações que são estabelecidas com as
entidades espirituais e com outros membros do grupo religioso e (3) o enfrentamento de
episódios de intolerância religiosa. Tal questão tornou-se interessante para mim a partir do
momento em que notei a relativa escassez1 de pesquisas no âmbito da antropologia das
religiões afro-brasileiras que tivessem as crianças como suas principais interlocutoras. Isto se
deu quando da minha inserção no grupo de pesquisa orientado pela antropóloga Miriam
Rabelo, em 2007, tive meu primeiro contato com a literatura sobre as religiões de matriz
africana e passei a freqüentar alguns terreiros de Candomblé na companhia de outros
membros do grupo. Desde então, pude observar que as crianças estão sempre presentes nas
festas nos terreiros de Candomblé. Não apenas as crianças que são membros do grupo
religioso e que participam efetivamente das cerimônias, mas também aquelas que não se
submeteram aos ritos de iniciação e que foram acompanhar algum familiar candomblecista;
além de outras que assim como as pessoas que as levaram estavam lá apenas para compor a
audiência; bem como as crianças da vizinhança atraídas pela curiosidade, pela música, pela
amizade das crianças do terreiro ou pelo festim que caracteriza essas celebrações. Tendo em
vista a presença constante das crianças nos terreiros é de se estranhar que a condição das
mesmas naquela ambiência não tenha despertado o interesse de um maior número de
pesquisadores. Esse desinteresse se deve, talvez, ao estatuto de “seres incompletos a serem
formados e socializados” (COHN, 2005, p. 7) – cujas experiências, portanto, nada mais eram
do que um treinamento para a vida adulta (COHN, 2002) – que as crianças, durante um bom
tempo, assumiram dentro da antropologia.
Vendo-as como reprodutoras do mundo adulto, os antropólogos não perceberiam
que os pequenos são atores sociais ativos e produtores de cultura. E, finalmente,
tratando crianças como seres ‘incompletos’, ou ‘parcialmente culturais’, limitar-se-
1 Recentemente, foi lançado o livro Educação nos terreiros (2010), da jornalista Stela Caputo. Nesta obra, as
vivências das crianças do candomblé são o ponto de partida para as reflexões sobre intolerância religiosa.
Entretanto, embora a pesquisa de campo seja bastante instigante, os diálogos com a antropologia são parcos.
9
iam a afirmar que elas sabem menos que os adultos, em oposição a saber outras
coisas. (COHN, 2002, p. 230)
É bem verdade que a concepção sobre as crianças descrita acima vem sendo
contestada há bastante tempo, tornando, a meu ver, o desinteresse dos pesquisadores com
relação à participação delas no universo do Candomblé um tanto injustificado.
Esta dissertação defende que, nos processos de aprendizado, mais do que
simplesmente transmitir informações, o que os adeptos mais habilidosos do Candomblé fazem
é criar contextos nos quais, através da prática, os neófitos poderão refinar suas habilidades de
percepção e ação. Quando questionadas sobre como haviam aprendido a desempenhar suas
atividades de filhos-de-santo, as crianças me respondiam: “olhando pro povo dançar”
(Taymara, iaô, 9 anos), “vendo os homens tocando nas festas” (Ricardo, ogã, 10 anos), ‘é...
assim... meu pai me ensina. Também fico olhando, aí...” (Yuri, ogã, 7 anos). Comecemos pela
constatação óbvia de que há nesses discursos uma ênfase clara no olhar. Admitamos, em
seguida, que a despeito da primazia do olhar na epistemologia ocidental, este verbo, em sua
acepção prosaica – isto é, como o inverso de agir – não é exatamente adequado para descrever
a atitude de conhecimento. Permitam-me ilustrar este ponto com duas singelas analogias. É
comum, por exemplo, ouvir pessoas afirmando que aprenderam a cozinhar observando
cozinheiros experientes. Contudo, antes que pudessem afirmar “eu aprendi”, ao invés de
simplesmente “eu suponho que aprendi”, elas precisaram executar a refeição, talvez até sob a
orientação do cozinheiro experiente, mas sempre de modo autônomo; testá-la, por vezes de
modo exaustivo, e aprová-la ou ter a refeição aprovada por outros. Do mesmo modo, nas
aulas de matemática, enquanto observava a minha professora resolver problemas na lousa,
pedindo que prestássemos atenção para aprender, nunca tinha total certeza se saberia eu
mesmo resolver aqueles problemas, eram as soluções que encontrava por conta própria que
me davam esta certeza, que perdurava até o momento em que um problema mais difícil se
apresentava. Note-se que, diante da abstração matemática ou da aventura experimental na
cozinha, observar é, certamente, fundamental. Tamanha é a importância do verbo olhar e seus
correlatos para nós, aprendizes, que recorremos constantemente a eles para sintetizar todo o
processo de aprendizado, embora não negligenciemos a amplitude das ações envolvidas no
processo. Neste trabalho, não tenho a pretensão absurda de desvelar como as crianças
realmente aprendem ou apontar para algo que elas não reconheceriam como parte do seu
cotidiano. Antes, o meu objetivo é seguir as pistas das próprias crianças e por em questão o
uso ordinário do verbo olhar. O que pude observar em campo é que olhar, para elas, raramente
Description:sacerdotal hierarchy of that religion, (2) the relationships that are established with spiritual defined as a simple passive attitude. I point out that the