Table Of Contentlsnara Pereira Ivo
Eduardo França Paiva
Marcia Amantino
Religiões e religiosidades,
escravidão e mestiçagens
lsnara Pereira Ivo
Eduardo França Paiva
Marcia Amantino
(ORGANIZADORES)
Religiões e religiosidades,
escravidão e mestiçagens
a
,
.......
1ntermeios
CASA DE ARTES EL IVROS Governo do Estadod a Bahia
Editora lntenneios Sumário
Rua Cunha Gago, 420 I casa 1 - Pinheiros
CEP 05421-001-São Paulo-SP-Brasil
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RELIGIOES E RELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO E MESTIÇAGENS
© lsnara Pereira Ivo 1 Eduardo França Paiva 1 Marcia Amantino
1" ediçao: outubro de 2016
•
Editoração eletrónica, produção Intermeias-Casa de Artes e Livros
Revisão Guilherme Mazzafera e Silva Vilhena
Imagem da capa Conquista y redución de los índios de las montanas de
Paraca y Pantasma, con la representación de espacios
sagrados indígenas y cristianos. Sigla XVII.
Museo de América, Madrid.
Capa Li via Consentino Lopes Pereira
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CONSELHO EDITORIAL
Vincent M. Colapietro (Penn State University) 7 Apresentação
Daniel Ferrer (ITEMICNRS)
Lucrécia D'Aiessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP) Primeira Parte
Amália Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
13 "Historia de una gran seiiora christiana" - conversões, batismos,
llana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morales (UESCINEPAB) religiosidade no mundo católico e a historicidade dos conceitos
lzabel Ramos de Abreu Kisil
Eduardo França Paiva
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS)-in memoriam
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP) 29 "Catolicismo à Africana": Costumes e vivências religiosas mestiças na
África Ocidental e Centro Ocidental no século XVIII
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação- CIP Suely Creuza Cordeiro de Almeida
1961 Ivo, lsnara Pereira, Org.; Paiva, Eduardo França, Org.; Amantino, Marcia, Org.
Religiões e religiosidades, escravidão e mestiçagens I Organização de
lsnara Pereira Ivo, Eduardo França Paiva e Marcia Amantino-São Paulo: 41 Hechicería colonial, justicia capitular y mestizajes. Santiago dei Estero
Intermeias; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2016.
(gobernación del Tucumán, Virreinato dei Perú) en el sigla XVIII
240 p.; 16 x 23 em. Judith Farberman
Simpósio Internacional do Grupo Escravidão e Mestiçagens,
VI. Vitória da Conquista (BA), 2012.
61 Um "universo" embaraçoso de relações: homens livres, nobreza negra,
ISBN 978-85-8499-067-2
escravas, mulatinhos, crioulos e cabrinhas - Salvador no século XIX
1. História. 2. História do Brasil. 3. História Social. 4. Mobilidade Cultural.
5. Sociabilidade. 6. Dinâmicas de Mestiçagens. 7. Religião. 8. Escravidão. Maria de Deus Manso
9. Religiosidade. 10. Mestiçagem. I. Titulo. 11. Ivo, lsnara Pereira,
Organizadora. 111. Paiva, Eduardo França, Organizador. IV. Amantino, Marcia,
Organizadora. V. Almeida, Suely Creuza Cordeiro de. VI. Faberman, Judith. Segunda parte
VIl. Manso, Maria de Deus. VIII. Sá, Eliane Garcindo de. IX. Almeida, Marcos
Antonio de. X. Engemann, Carlos. XI. Guzmán, Florencia. XII. Freire, Jones.
XIII. Silva, Edivânia Gomes da. XIV. Edições UESB. XV. Intermeias-Casa 77 San Martín de Porres: a construção de um espaço mestiço na sociedade
de Artes e Livros.
CDU 93(81) vice-reinal do Peru através da prática religiosa
CDD 981
Eliane Garcindo de Sá
Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino
97 Ser escravo nos conventos franciscanos
Marcos Antonio de Almeida Apresentação
115 Escravidão, mestiçagens e o projeto cristão dos jesuítas na Argentina
colonial e no Rio de Janeiro, séculos XVI-XVIII
Marcia Amantino
141 Para a Paz e para o Bem: os sacramentos do batismo e do matrimônio
e a população escrava em Fazendas da Companhia de Jesus no Brasil e
na Argentina (século XVIII)
Carlos Engemann
163 Esclavitud, mestizaje y religiosidad en tiempos de reformas. Un análisis
histórico sobre la Visita del Obispo de Tucumán en 1768 (Argentina)
Florencia Guzmán
Cumpriram-se em 2016 onze anos de criação do Simpósio Escravidão:
183 Devoções e Recolhimento feminino nos sertões do Brasil Setecentista
sociedades, culturas, economia e trabalho, sediado no Departamento de
Isnara Pereira Ivo
História da UFMG. Rapidamente o simpósio acabou por ser conhecido
e reconhecido academicamente como Grupo Escravidão e Mestiçagens,
203 Batismos mestiços: mestiçagens na freguesia de Nossa Senhora das
transformado em Rede de Grupos de Pesquisa Escravidão e Mestiçagens
Neves do Sertão do Macaé (RJ), século XIX
RGPEM, em 2015. E é sobre este alicerce que as pesquisas de seus afiliados vêm
Jonis Freire
se desenvolvendo, sempre buscando discutir conceitos que giram em torno da
história da escravidão e das mestiçagens. Isto não significa, entretanto, que os
227 Estereótipo e silenciamento em sites de igrejas cristãs: a interdição da
participantes comunguem da mesma perspectiva teórico-metodológica e se
imagem do mestiço
dediquem ao mesmo recorte espaço-temporal. Pelo contrário, o que atraiu e
Edvânia Gomes da Silva
continua atraindo os pesquisadores para o grupo é exatamente a possibilidade
diversa de diálogo e de trocas acadêmicas a partir dos objetos comuns de
pesquisa.
Além disto, o grupo tem procurado produzir histórias em perspectiva
comparada, entendendo que o fazer histórico necessita de consonância com
outras localidades, temporalidades e, acima de tudo, com outras historiografias.
São as conexões, em maior ou menor escala, que dão sentido às análises
desenvolvidas pelos pesquisadores.
Este quarto livro do grupo é resultado do VI Simpósio, ocorrido em
Vitória da Conquista, Bahia, em 2012. O principal objetivo deste encontro foi
analisar religiôes e religiosidades em ambientes de escravidão e de mestiçagens,
evocando conceitos fundamentais para a verticalização dos estudos sobre esta
temática, tais como trânsitos e trocas culturais, sociabilidades, convivências
e coexistências, superposições, negociações, mundialização e, como nova
perspectiva, o conceito de "dinâmicas de mestiçagens':
8 RELIGIÕES ER ELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EM ESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 9
Assim como nos Simpósios anteriores, o de Vitória da Conquista contou maneira de vivenciar a fé foi levada por estes cristãos europeus para o Velho
com a participação de pesquisadores que, mesmo não sendo especialistas da continente e mesmo para outras partes do império lusitano.
temática central, aceitaram (re)pensar seus tradicionais objetos de pesquisa a Já a historiadora argentina Judith Farberman analisa a sociedade já
partir da escravidão, das mestiçagens, das religiões e/ou das religiosidades em bastante mestiçada da cidade de Santiago dei Estero, na Argentina, e os
perspectiva comparada. Novamente, tivemos a oportunidade de estabelecer contatos mantidos com os pueblos de indios ao longo dos séculos XVII e XVIII,
diálogos inovadores e instigantes. A nosso juízo, alcançamos plenamente os demonstrando, ainda, o acentuado declínio econômico vivenciado na região.
objetivos do encontro e do grupo e o leitor poderá encontrar os resultados Talvez por isto, pela grande dependência do trabalho de indígenas aldeados
dessas reflexões compartilhadas já incorporados aos textos aqui incluídos. e pela crise de valores que vivia a população, inúmeros foram os casos de
Diferentemente dos livros anteriores, nos quais os capítulos foram feitiçaria arrolados na documentação colonial, quase sempre ligados às
ordenados por períodos históricos, aqui eles foram organizados de outra mulheres índias. Onze desses processos são tratados pela autora como veículos
maneira. Optamos por agrupá-los a partir das abordagens dos objetos de para se chegar ao entendimento sobre a maneira como aquela sociedade lidava
estudo realizadas pelos autores, considerando o uso dos conceitos, bem como com essas práticas, sobre o que acreditavam ser feitiçaria e sobre o que faziam
os olhares de cada um sobre as relações entre sociedades e práticas religiosas. com as acusadas desse delito. Fechando esta parte do livro, a portuguesa
Assim, a primeira parte do livro engloba os textos que remetem às diferentes Maria de Deus Beites Manso, ao analisar um testamento da família Kopke,
maneiras encontradas pelas populações coloniais, tanto das Américas quanto originariamente produtora de vinho do Porto e, posteriormente, traficante de
noutros lugares, para conviver com dogmas cristãos, fomentando, muitas escravos e senhora de engenho na Bahia do século XIX, retrata trajetórias de
vezes, sociabilidades específicas e dinâmicas de mestiçagens. vida de livres e escravos e as relações daí advindas.
Utilizando conceitos de trânsito e mobilidade culturais, sociabilidade e A segunda parte do livro abarca discussões sobre algumas práticas
dinâmicas de mestiçagens - biológicas e culturais - e demonstrando por que católicas vivenciadas nas Américas. Em todos os textos se podem perceber
o conceito de sincretismo não responde mais aos impasses colocados pelas os limites destas mesmas doutrinas, o quanto foi necessária a realização de
recentes pesquisas que envolvem as relações religiosas na época moderna, adaptações locais e como se deram as relações entre os diferentes agentes
Eduardo França Paiva propõe pensar o universo religioso em perspectiva católicos e as sociedades coloniais.
comparada, associando uma rainha do Rosário das Minas Gerais setecentistas Analisando depoimentos presentes no Proceso Diocesano e em parte do
a uma senhora chinesa do século XVII, convertida ao catolicismo pelos jesuítas. Proceso de Beatificação de San Martín de Porres, um santo mulato nascido em
Os conceitos empregados nesta análise, de acordo com o autor, podem trazer Lima, no Peru, no século XVI, Eliane Garcindo de Sá apresenta um retrato
aportes inovadores aos estudos sobre as práticas cotidianas dos diversos agentes daquela sociedade e de como ela se relacionava com a ideia da existência de
que produziram essas histórias. Ele propõe, ainda, o regate na documentação um santo mestiço. A mestiçagem estava marcada não somente pela cor de
coeva de conceitos que foram empregados pelas próprias populações (tais sua pele, mas também por suas práticas curativas oriundas do conhecimento
como mistura, mestiço e híbrido), que, em alguns casos, caíram em desuso ao de barbeiro e de herbolário, assim como do conhecimento adquirido pelos
longo do tempo. A partir daí, Paiva indica a possibilidade de conversões plenas contatos com negros e índios.
ao catolicismo entre populações que tinham outras origens religiosas e revê, Utilizando duas fontes produzidas pela necessidade de controle do
sob outros conceitos, a corriqueira adoção simultânea de práticas religiosas de cotidiano nos conventos franciscanos, as Atas Capitulares e o Livro dos
distintas matrizes. Guardiães, Marcos Antonio de Almeida analisa a presença de escravos
Os textos que seguem procuram analisar questões muito próximas à (oriundos de doações, compras e mesmo de negociações ilícitas) no convento
temática das religiosidades mestiças, enfocando áreas da África e da América de Salvador, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX. O autor demonstra, ainda,
espanhola. Suely Creusa Cordeiro de Almeida apresenta casos de cristãos o convívio entre os religiosos e seus escravos, bem como as redefinições sociais
europeus, moradores de terras africanas e que, em virtude de variados tipos surgidas a partir do que ele identifica como contradições entre a Fraternidade
de contato com aquelas populações, acabaram por absorver formas locais de Universal pregada pelos franciscanos e a escravidão.
manifestações religiosas, inclusive o cristianismo aí praticado. A autora sugere O texto seguinte, de Marcia Amantino, analisa as questões que se referem
que houve uma "mestiçagem às avessas': na medida em que parte desta nova à formação da mão de obra cativa dos jesuítas, entre os séculos XVI e XVIII, e
10
RELIGIÕES ER ELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EM ESTIÇAGENS
I I
lsnara Pereira Ivo Eduardo França Paiva Marcia Amantino (orgs.) 11
aos mecanismos utilizados para manterem elevados contingentes de escravos
em suas propriedades no Rio de Janeiro e em três colégios da Província Jesuítica Jonis Freire analisa os registros de batismos da Freguesia de Nossa
~o Paraguai, a saber, Santiago dei Estero, Tucumán e La Rioja. A partir das Senhora das Neves do Sertão de Macaé, situada na Província do Rio de Janeiro,
ao longo do século XIX, procurando identificar as diferentes mestiçagens
listagens de escravos sequestrados nos momentos das expulsões dos inacianos
das Américas portuguesa e espanhola, a autora constata que a maior parte ocorridas entre aquela população. Curiosamente, demonstrou que as cores e/
ou qualidades dos batizandos não eram sempre as mesmas de seus pais e que
desta população era formada por mestiços. A mestiçagem foi, portanto, uma
d~ s ~as~s .para que a Companhia de Jesus conseguisse manter seus projetos estas estavam ligadas a questões de identidades culturais, sociais e jurídicas
ImssiOnanos. dos envolvidos. Desta forma, conclui o autor, o mosaico de cores/qualidades
apresentadas marcava o lugar social daqueles indivíduos.
Dando continuidade às análises sobre a Companhia de Jesus, Carlos
~ngemann reflete acerca do conteúdo da pregação dos jesuítas e do possível Finalizando o quarto livro do Grupo Escravidão e Mestiçagem,
Edvania Gomes da Silva analisa três sites de igrejas e/ou movimentos que se
Impacto desta pregação sobre comportamentos e práticas cotidianas de
autodenominam cristãos pentecostais: a Igreja Universal do Reino de Deus, a
senhores e de escravos. Analisa especificamente os sacramentos do batismo
e d~ cas am e ~~o , utilizando documentos produzidos para a normatização da Igreja Internacional da Graça de Deus e a Renovação Carismática Católica. Seu
objetivo é o de identificar elementos usados pelos discursos dessas igrejas ou
IgreJa (ConCiho de Trento, Catecismo Romano, concílios provinciais de Lima,
Mé ~ico e Bahia, além de textos de clérigos da Companhia) e os registros de movimentos religiosos, a fim de verificar de que forma a imagem do mestiço é
(re)construída pelo movimento pentecostal.
batismo de escravos da estância Caroya, na Argentina. Para os sacramentos de
Assim, apresentamos com orgulho este quarto livro do Grupo Escravidão
matrimônios, utiliza, também, as listas de escravos apresentadas nos autos de
sequestras de bens dos jesuítas no Brasil e na Argentina. e Mestiçagens e convidamos os interessados a conhecerem um pouco mais sobre
Flore~cia Guzmán, outra historiadora argentina, utiliza as visitas do bispo o trabalho que vimos realizando. Esperamos que as reflexões aqui apresentadas
se multipliquem sob a forma de novos desafios, de novas pesquisas e de novas
de Tucuman, Don Manuel Abad Illana, às cidades da Governação de Tucumán
respostas a uma temática que tem, cada vez mais, conquistado a atenção dos
e às reduções indígenas situadas nas fronteiras orientais desta região, em 1765
pesquisadores.
e em 1768. Esta documentação permitiu à autora identificar uma sociedade
que vivenciava naqueles anos uma grande transformação causada, dentre
Eduardo França Paiva
outros fatores, pela expulsão dos jesuítas, ocorrida em 1767, e pela aplicação
Isnara Pereira Ivo
das reformas burbônicas, motivos de distúrbios sociais. Por meio dos relatos
re a li ~ ados pelo bispo, Florencia Guszmán identifica, também, alguns casos de Marcia Amantino
mestiçagens entre as populações livres e/ou escravas.
Isnara Pereira Ivo analisa, para os sertões da Bahia e do norte de Minas
Gerais, as devoções à Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens e à Nossa
Senhora da Vitória, assim como a criação do Recolhimento de Mulheres Casa
de Oração Vale de Lágrimas, vinculando-as às trajetórias de três homens -
um romano, um pardo e um negro português -, responsáveis pelas conquistas
e controle administrativo destas localidades, durante o século XVIII. A
~utora de_monst~a co~o a trajetória de vida destas personagens estava ligada
a ocupaçao da area, a abertura dos caminhos, ao aprisionamento de índios
~ à b~ sca e exploração de metais e pedras preciosas às margens dos rios que
mterhgavam as capitanias da Bahia e de Minas Gerais. Ainda assim, esses
ho~~n s e suas famílias mestiças foram reprodutores dos dogmas e crenças
cato.hcas e foram responsáveis pela criação de igrejas e recolhimentos
femminos na região.
"Historio de una gran senora christiana"
conversões, batismos, religiosidade no
mundo católico e a historicidade
dos conceitos
EDUARDO FRANÇA PAIVA
SINCRETISMO: O CONCEITO
O universo religioso de escravos, libertos e não brancos nascidos livres
nas Minas Gerais (estenda-se a indagação às áreas escravistas americanas
e, talvez, ao mundo ibero-americano) pode ser devidamente estudado e
compreendido se permanece inscrito na perspectiva dualista, polarizada e
antagônica do esquema imposição da religião do colonizador x sincretismo
religioso e resistente dos dominados? A resposta, já de certa forma prenunciada
na pergunta, é não! A religiosidade construída, vivenciada e expressada por
esses grupos foi algo muito mais complexo do que essa equação simplificadora
e já algo "caduca" pode suscitar.
O conceito de sincretismo inscreve-se, a meu ver, nesse quadro
antigo e precisa ser revisado. Fruto de uma "leitura" particular do anterior
racialismo que decretara a degenerescência cultural brasileira e das jovens
nações americanas e das mestiçagens, que a partir de Casa Grande & Senzala
(FREYRE, 1" EDIÇÃO, 1933) foram positivadas, o sincretismo aparece como
conceito que evoca reinterpretação, amálgama, superposição, mescla, fusão
e resistência, usado por distintos autores e em épocas diferentes, afastando
se de suas origens (misturas culturais, aculturações), mas, ao mesmo tempo,
continuando vinculado a elas.'
I Serge Gruzinski, em 1999, já expressava sua desconfiança com relação à continuidade do uso
do conceito de "sincretismo". Ver as críticas feitas pelo autor em GRUZINSKI, Serge. La pansée
métisse. Paris: Fayard, 1999, p. 40-42.
14 RELIGIÕES ER ELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EM ESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IM arcia Amantino (orgs.) 15
Melville Herskovits (que foi aluno de Franz Boas) associou o conceito à corriqueiramente até hoje e na problemática perspectiva descrita acima. Isso
reinterpretação e à aculturação em The Myth of the Negro Past. 2 O sincretismo ocorre nos livros didáticos de História dos ensinos Fundamental e Médio
também apareceu aplicado ao universo da religião (que sumariava, na até a produção universitária, além de ser termo usual de jornalistas, artistas,
verdade, as dinâmicas sociais dessas jovens nações) em Artur Ramos3 e em religiosos, políticos e militantes de movimentos sociais.
Roger Bastide, em 1939,4 para, em seguida, ser genericamente aplicado por O emprego do conceito, no entanto, gera problemas que precisam ser mais
estudiosos das religiões e das culturas, voltando, inclusive, com o passar dos bem observados pelos historiadores e, a meu juízo, evitados. Primeiramente,
anos, a ser tomado como sinônimo de mestiçagem.s deve-se atentar para o fato de, ao usá-lo, imprimir uma racionalidade e um
No sentido de resistência dos "negros", o conceito foi apropriado por pragmatismo às religiões, crenças e práticas ditas sincréticas, que nem sempre
antropólogos, sociólogos e historiadores que adotavam perspectiva marxista, tiveram essas características, nem se constituíram com objetivo único ou
que o colocaram em oposição ao racialismo geneticista e à miscigenação/ mesmo principal de ocultar dos "dominantes" sua verdadeira fé. Em paralelo,
mestiçagem culturalista de Freyre (BoAs, 2010;6 HERSKOVITS, 1941), o que atribui-se às religiões tradicionais africanas pureza, unicidade e imutabilidade
se encaixava bem nos esquemas explicativos que dominaram o pensamento que historicamente não existiram. Mais ainda: generalizar o conceito aos
brasileiro entre os anos 40 e 80 do século XX. Sincretismo, então, nomeava o "negros" do Brasil escravista significa acreditar que esse enorme e, na verdade,
fenômeno no seio do qual os "negros" "enganavam" os brancos (visão simplista plural contingente humano se converteu falsamente à religião dos "opressores",
das sociedades escravistas), "fingindo" se converterem à religião dos senhores/ o que não se passou, pelo menos de maneira absoluta, enganando esses
dominantes/brancos, quando, na verdade, a usavam como fachada para cultuar "brancos"/proprietários (desconhecendo-se a enorme quantidade de senhores
seus antigos deuses africanos (visão simplista de cultura: estanque, imutável, ex-escravos e não brancos nascidos livres existentes a partir do século XVIII)
inflexível, isto é, pura x mestiça), estabelecendo correspondências entre eles e e missionários, tomados como ingênuos, parvos e ignorantes. Claro que esse
os santos do panteão católico. juízo de valor subjaz muito mais nos discursos antropológicos, sociológicos e
Há enorme diferença entre constatar essa ocorrência e generalizar a atitude historiográficos elaborados a posteriori que no discurso de negros, crioulos e
para todos os "negros': exclusivamente (não se precisando o envolvimento de mestiços de todas as "qualidades" que viveram nessa época e que os deixaram
crioulos, de mestiços e da enorme população forra e não branca nascida livre), registrados em grande quantidade de documentos. Mas isso importou pouco
como se todos esses "negros" fossem africanos e tivessem a mesma religião. quando se pretendeu transformar o sincretismo religioso em uma forma
Não obstante todos esses limites e imprecisões, o conceito é empregado de resistência dos "negros" ao sistema escravista como um todo. Foi essa a
perspectiva política que preponderou até os anos 1980 do século passado,
marcando boa parte dos estudos sobre escravidão realizados até esse período,
2. HERSKOVITS, Melville J. The Myth of the Negro Past. New York: Harper & Brothers Publishers, incluindo alguns realizados por mim.
1941. http:// archive.org/stream/mythofthenegropa0335 15mbp#page/n5/mode/2up
3. Apêndice publicado na 2• edição (1940) de RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. Etnografia
ÜUTRAS FORMAS DE VER, NOVAS PERGUNTAS
religiosa. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951. [!• edição de 1934, na Civilização
Brasileira, e 2• edição de 1940, na Coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional]
Se, por um lado, "sincretismo" tem caído em desuso, por outro, conceitos
4. Segundo Arhur Ramos, no apêndice publicado na 2• edição de 1940, p. 367, o quadro de
sincretismo religioso que ele elaborara é o que havia sido reproduzido em 1939 por Roger Bastide, como os de trânsito e mobilidade culturais, sociabilidade e dinâmicas de
então professor na Universidade de São Paulo. mestiçagens (biológicas e culturais) podem ajudar a pensar melhor essas
S. Para o tema do sincretismo em geral e em particular na bibliografia brasileira ver FERRETTI,
crenças e práticas do passado.7 De uma forma geral, todos eles enfocam
Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
São Luis: FAPEMA, 1995. [http://books.google.es/books?id=VO I LzDo6Vh8C&pg=PAS3&lpg=P
A53&dq=roger+bastide+sincretismo&source=bl&ots=FretsBhsWi&sig=nihixMSVumTWUuNv
IV siBT _kH9k&sa=X&ei=zsQwUPvFHY-JhQe Vs YDJCg&redir_esc=y#v=onepage&q=roger%20 7. Defini e explorei esses conceitos em PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma
bastide%20sincretismo&f=false] história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de
6. BOAS, Franz. A mente do ser humano primitivo. (trad.) Petrópolis: Vozes, 2010. [ 1• edição de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do Brasil apresentada
1938) Ver também CASTRO, Celso. (org.) Franz Boas. Antropologia Cultural. (trad.) 6 ed. Rio de ao Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012 e
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. Idem, "Histórias comparadas, histórias conectadas: escravidão e mestiçagem no mundo ibérico".
16 RELIGIÕES ER ELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EM ESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IE duardo França Paiva IM arcia Amantino (orgs.) 17
privilegiadamente não o produto final mestiço ou pretensamente sincrético, católicos fervorosos. Muitos outros já nasceram no seio de famílias católicas.
mas o processo de conformação das práticas, a atuação dos diversos agentes Outros tantos, sem qualquer problema de cunho moral e religioso, adotaram
históricos (as negociações e os conflitos produzidos por eles), que tinham simultaneamente o catolicismo e outras práticas religiosas (aliás, isso continua
origens, "qualidades" (índio, branco, preto, negro, crioulo, mestiço, mulato, comum hoje). É importante lembrar que muitos "brancos" (europeus, filhos de
pardo, cabra, caboclo, curiboca etc.), "condições" (livre, escravo e liberto) casais europeus e descendentes de europeus), a priori católicos, incorporaram
distintas e as historicidades do ocorrido, assim como das leituras desse crenças e práticas religiosas indígenas, africanas e americanas no seu dia a dia,
ocorrido realizadas posteriormente, incluindo as historiográficas. invertendo o sentido de uma imposição católica de cima para baixo, como
Além desses conceitos modernos, mesmo que muito operativos, geralmente se imagina e se projeta sobre as sociedades do passado escravista e
definições produzidas no passado e empregadas por autoridades e pela mestiço nas Américas, particularmente no Brasil.
população precisam também ser consideradas e retomadas. Entre elas, algumas Não houve impedimentos culturais e políticos intransponíveis entre a
são particularmente importantes aqui, justamente porque se contrapõem população não branca para que se passasse a acreditar e a praticar a fé católica,
ao que, posteriormente, entendeu-se como sincretismo. Neste caso estão as não obstante, claro, a obstinada resistência de aceitar parcial ou completamente
definições coevas de "mistura': "mestiço" e "híbrido': Mesmo que tenham a religião pregada por missionários, padres e autoridades régias. Diante desse
estado muito mais vinculadas aos tipos humanos resultados das mesclas quadro, que já foi muitas vezes chamado de "alienação" ou associado à ausência
biológicas intensamente processadas, elas também podem ser esclarecedoras de "consciência de classe", deve-se indagar: a pretensa impossibilidade de os
sobre os universos culturais produzidos por eles. Portanto, mais que o "oprimidos" aceitarem a religião dos "opressores': perspectiva que deu base
conceito de sincretismo, esses outros conceitos e definições me parecem ser ao emprego do conceito de sincretismo, não estaria muito mais associada a
mais adequados para serem operados hoje pelos que se dedicam a estudar entendimentos antropológicos, sociológicos e historiográficos posteriores do
aquelas sociedades do passado e, particularmente, as práticas religiosas ou que às práticas adotadas pelas populações no passado?
religiosidades daí surgidas. Pensar em dinâmicas de mestiçagens pode nos auxiliar na melhor
Nos domínios católicos portugueses e espanhóis na América e em outras compreensão dessa complexa história, em toda sua longa extensão e
regiões onde missionários de Roma intervieram forte e profundamente, diversidade. Além de permitir, como já expliquei, a análise sobre os agentes que
a evangelização das populações locais - nativos e migrados - foi objetivo jamais foram definidos como "mestiços" (poderíamos chamá-los de agentes
constante, que perpassou as políticas de ocupação, povoamento e exploração ou de grupos "matrizes"), o conceito permite-nos falar das religiões "matrizes"
desses territórios. Visto desde hoje, pode-se dizer que eles foram alcançados, ou pretensamente "puras" - as dimensões dos discursos e representações, vale
ainda que nuançados pela manutenção de velhas crenças e pelo surgimento lembrar, compõem a própria realidade histórica. Refiro-me, neste caso, ao
de outras, frutos das intersecções culturais fortemente ocorridas, gerando catolicismo, ao islamismo, às religiões tradicionais africanas e indígenas, que
misturas, mas, também, coexistências, superposições, convivências, tudo ao se opunham às religiões e às religiosidades misturadas ou mestiças ou, ainda,
.
mesmo tempo. ((a mencanas).)
Em contextos que produziram essas dinâmicas de mestiçagens - que O conceito de dinâmicas de mestiçagens nos ajuda, também, a mergulhar
englobaram todas as dimensões já mencionadas - cabe perguntar se houve nesse universo complexo, móvel, multifacetado, polissêmico e mesclado das
conversões plenas ao catolicismo entre a população não branca (índios, religiões e das religiosidades nas Américas e, particularmente, no Brasil,
negros, crioulos, mestiços), escravos, libertos e nascidos livres, tanto os formado entre os séculos XVI e XIX. Ele pode, ainda, nos impulsionar a
nascidos nas conquistas, quanto os trazidos de fora, como, por exemplo, da estabelecer conexões com territórios mais longínquos e aparentemente muito
África? A resposta é positiva. Houve e foram muitos os casos, isto é, nem todos diferentes, como a China dos missionários jesuítas, e a comparar as mesclas
os não brancos fingiram a conversão; muitos se tornaram exclusivamente de culturas processadas, as formas de evangelização, seus triunfos e malogros
ocorridos nesses mundos. Vejamos um caso exemplar de conversão ao
catolicismo de uma família chinesa do século XVII e as conexões possíveis
com o caso de uma ex-escrava, proveniente de Angola, que se transformou em
In: Idem & IVO, Isnara Pereira. (Orgs.) Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas. São Paulo:
Minas Gerais em devota dos santos católicos e rainha de Nossa Senhora do
Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2008, p. 13-25.