Table Of ContentPara Lúcia
Para Vinicius
Há uma agenda dos povos árabes e outra dos governos árabes.
Muamar Kadafi
Sumário
Fim
Renascimento
Primavera
Revolução
Segredo
Risco
Traição
Intervenção
Plano
Queda
Silêncio
Epílogo
Cronologia
Referências bibliográficas
Créditos das imagens
Fim
No momento em que pôs as mãos no coronel, Siraj empunhava uma ak-47.
Estava enfurecido e “fora de controle”, como definiria mais tarde, quando nos
encontramos, impregnado até os ossos da violência dos combates da manhã
sangrenta. Em um intervalo de segundos, pensou em seu amigo Mohamed Jamal,
abatido a tiros instantes antes como um shadid, um mártir, e nos muitos
combatentes que vira morrer no campo de batalha. Pensou na família, em três de
seus seis tios, um morto, um ferido e um preso durante a revolução. Poderia
apontar sua arma para a cara do “guia”, explodir sua cabeça e mandá-lo para o
inferno. Em vez de ser detido como um assassino frio e depois enfrentar a justiça,
ouviria gritos de “Allah Akbar!” e seria coberto de glórias por seus companheiros
de brigada. Encerraria meses de sofrimento e ainda poderia bater no peito e
dizer: “Eu matei Muamar Kadafi!”.
Mas Siraj, jovem esguio e de pele cor de mate, ar circunspecto e olhar firme,
havia recebido a ordem de preservá-lo. Vivia um dilema entre os instintos e a
razão. Tinha diante de si o tirano que havia aprendido a odiar em suas duas
cidades, Misrata e Suq al-Jum’ah — e a escolha de não ser igual a ele.
Amparando-o com o auxílio de Mohamed Alwaib e de Umran Jum’ah Sha’ban,
seus amigos, afastou-se do encanamento de esgoto no qual o encontrara e
caminhou com passos trôpegos em direção aos colegas rebeldes, que corriam a
seu encontro e já se aglomeravam. Então, sem pensar, entregou o “coronel” ao
comandante Umram Alwaib e deixou que outros ativistas o tomassem nos
braços.
Kadafi não estava apenas dominado, mas também ferido e atordoado. Exatos
250 dias tinham se passado desde a eclosão dos primeiros protestos em Benghazi
e 245 do dia em que Siraj, um estudante de 21 anos, decidira sair às ruas de
Trípoli para se juntar a outros insatisfeitos na praça Verde, um dos símbolos do
regime. Nesse ínterim, cerca de 20 mil pessoas, boa parte pós-adolescentes
transformados em guerrilheiros por acaso, inexperientes como ele, haviam
perecido. Outros tantos haviam sofrido as dores da guerra, as perdas, as
deformações, as amputações, os traumas.
Movido pela raiva, mas também pela noção de dever para com seus
comandantes, Siraj não se afastou quando Kadafi, atordoado, foi encurralado por
aqueles que seriam seus algozes. Afinal, sentia-se parte da katiba, a brigada que
aprisionara o “guia”, tinha orgulho de si mesmo e mal controlava a euforia. De
arma em punho, aos gritos de “Alá é grande!”, como os demais, seguiu aos
trancos em meio a um pequeno grupo de rebeldes que agarrava seu inimigo
número um. Passou por corpos de inimigos e parceiros caídos na areia do
deserto e por um rebelde que se separara do grupo e caminhava no sentido
contrário, errático e a passos lentos, fumando e ignorando a prisão do coronel.
Em um instante viu-se cercado não mais por uns poucos combatentes, mas por
dezenas deles. Alguns, como Umram, empenhavam-se no esforço vão de montar
um cordão de isolamento e de fazer do homem que governara a Líbia por 42
anos um prisioneiro a ser julgado. Outros, ao contrário, estavam sedentos de
revanche e se aproximavam na ânsia de lhe acertar um chute, um soco, de lhe
arrancar os cabelos, de agredi-lo como a um carrasco em meio a suas vítimas.
Todos bradavam ao mesmo tempo em meio à desordem absoluta.
— Allah Akbar! Allah Akbar! Allah Akbar! Nós o capturamos! Pega, pega,
pega, tira uma foto! Allah Akbar! Allah Akbar! Allah Akbar! Muamar taghut, nós
o capturamos! Eu quero tirar uma foto! Aaaaaaaaahhhhhhh! Nós o capturamos
vivo! Por favor, eu quero tirar uma foto! Allah Akbar!
Siraj gritava cada vez mais alto e se posicionava ao redor de Kadafi. Sabia que
deveria tentar protegê-lo, mas mesmo assim infligia-lhe os golpes que conseguia
encaixar. Sentia prazer nisso. Batia com a sola do sapato, que tirara dos pés para
humilhá-lo, uma ofensa grave no mundo árabe.
O tumulto era registrado por um rebelde, Ali Algadi. Sua gravação, feita com a
câmera de um celular, rodaria o planeta horas depois pela web e pelas emissoras
de tv, chocando os espectadores mais sensíveis e reforçando a imagem de
“selvagens” que os árabes carregam em alguns lugares do mundo. Nessas
primeiras cenas, Siraj ainda vestia uma gandola camuflada e um capacete militar.
Nas mãos, trazia uma Kalash. Uma profusão de armas aparece na tela no
momento em que Algadi filma um Kadafi esgotado, caído na areia do deserto.
Sangrando em abundância, o ditador tombara porque suas pernas tinham
fraquejado alguns passos depois de ele ter sido apunhalado repetidas vezes por
um sádico, por trás, da pior maneira possível, no pior lugar possível: o cu.
Enquanto Kadafi se esvaía como um animal, Siraj poderia mais uma vez tê-lo
eliminado. Mas percebeu que não estava disposto a ir tão longe. Queria vê-lo
morto, mas não naquele instante, e por isso controlou o desejo de executá-lo.
Apesar da ira e da vontade de se vingar, participar do linchamento que a
multidão parecia preparar não o seduzia. Ao tomar consciência disso, livrou-se
de sua arma e afastou-se um pouco, mas não o suficiente para perder a cena de
vista — não queria perdê-la. Sacou seu telefone celular e pôs-se a fotografar e a
filmar o que se passava. Os rebeldes que o cercavam revelavam diferentes
sentimentos: incredulidade, cólera, vingança pura e simples, expressos de
maneira caótica pelos gritos repetidos de fúria e de excitação que se intercalavam
entre as rajadas de armas automáticas.
— Eu quero filmar, por favor! Allah Akbar! Allah Akbar! Nós o capturamos!
Misrata! Allah Akbar! Misrata! Allah Akbar! Misrata! Nós o capturamos!
Misrata! Bang, bang! Misrata! Misrata! Misrata! Misrata! Allah Akbar! Allah
Akbar! Não há outro deus além de Alá! Alá é grande!
Naquele momento ainda havia confrontos nas imediações da central elétrica,
onde se desenrolavam os últimos combates. As trocas de tiros e as rajadas
continuavam, mas Siraj percebeu que ninguém mais, entre a multidão de
rebeldes que soubera da prisão de Kadafi, parecia prestar atenção, tampouco
temia os riscos do tiroteio. Eufóricos ou ensandecidos, nem todos notaram que,
além de Kadafi, também haviam sido capturadas altas autoridades do regime:
Abu Bakr Yunis Jaber, ministro da Defesa, Mansour Dhao, chefe de Segurança
Pessoal, Ahmed Ibrahim, primo do ditador, chefe do Movimento dos Comitês
Revolucionários (mcr) e espécie de primeiro-ministro informal do país, além de
Mutassim, nada menos do que um dos filhos do coronel.
Concentrados em torno do “guia” — ou contra ele —, os insurgentes o
arrastaram para perto de um veículo, deixando o leito seco do canal onde se
encontravam, e subiram alguns metros de um aclive poeirento, até a estrada.
Siraj não tinha certeza do que se pretendia fazer, mas os gritos recorrentes de
“Misrata! Misrata!” sugeriam que o destino seria a cidade de onde provinha a
maior parte dos rebeldes do cerco a Sirte. Tanto pior para Kadafi e para os
demais: em Misrata não apenas o odiavam, lá o queriam morto.
Cada vez mais ensanguentado e grogue, o coronel subiu o barranco
pedregoso, empurrado pela multidão. Então voltou a cair de modo brusco.
Estava esgotado, humilhado e prostrado. Talvez até já estivesse baleado, mas Siraj
não tinha certeza. Sabia apenas que, ao deixar a tubulação de esgoto com Kadafi
em seu poder, ele não estava ferido a bala. Encontrava-se perturbado, zonzo, mas
não mortalmente ferido. Em meio ao tumulto que se seguiu, porém, algo muito
sério lhe acontecera, porque seu estado se deteriorava. O coronel ainda parecia
consciente ao se aproximar da estrada, mas, ao alcançá-la, fraquejou e caiu. Com
esforço coletivo, foi puxado, de costas, para o capô de uma picape, virado para a
multidão que o cercava.
Siraj gravava o martírio de Kadafi com seu celular. Registrou também quando,
instantes depois, ele foi içado para a carroceria de um veículo. Em nenhuma das
duas situações, percebeu, o ditador esboçara algum sinal de resistência. Seus
gestos revelavam apenas a constatação dos ferimentos — ele passava a mão no
rosto ensanguentado e levava os dedos aos olhos, como quem tenta limpar a
visão —, e sua expressão era de dor profunda, reflexo do imenso flagelo que
atravessava e que, de algum modo, humanizava os últimos instantes de um
tirano conhecido por sua crueldade. Ali os insurgentes perderiam parte de sua
legitimidade, mas qual argumento racional poderia impedir, naquelas
circunstâncias, o martírio de um ditador?
Siraj observou Kadafi com atenção e entendeu que ele fora ferido com
gravidade. Pouco mais de quinze minutos tinham se passado do instante em que
o arrancara do esgoto quando uma ambulância, vinda do front de Sirte, chegou
enfim ao local do combate. O coronel ainda vivia e balbuciava com voz cada vez
mais enfraquecida, implorando por socorro. De torso nu, seria arrastado pelo
asfalto, chutado e pisoteado no caminho até a ambulância que o levaria a
Misrata. Com a calça arriada abaixo dos joelhos, foi puxado pelos braços e
empurrado pelas pernas até ser acomodado no veículo, onde recebeu
atendimento médico. Siraj brigou entre os insurgentes para entrar e contou sete
pessoas. Reconheceu quatro de Misrata e três de Trípoli. Observando seu
inimigo de perto, percebeu dois ferimentos graves: uma perfuração de bala
próxima à têmpora esquerda e outra na altura do ventre, acima do umbigo. A
constatação o sobressaltou e uma frase escapou de seus lábios:
— Alguém atirou nele! Alguém atirou nele! — repetiu, num misto de choque e
de preocupação por não ter conseguido protegê-lo da multidão, como lhe havia
ordenado o comandante da brigada.
Kadafi ainda estava vivo, mas, de tanto ver a morte de perto durante os
combates, Siraj sabia que o tiro na cabeça lhe seria fatal. Ou melhor: já era quase
fatal. Vendo o coronel mergulhar na inconsciência dentro da ambulância parada
na estrada, ainda cercada de insurgentes que gritavam e atiravam para o alto, um
Siraj tenso perguntou ao médico que prestava os primeiros socorros:
— Ele ainda tem pulso, doutor?
Tinha. Mas o corpo ferido expulsava muito sangue por diferentes pontos: na
cabeça, no abdômen, entre as pernas. A situação se agravava a olhos vistos. Siraj
interpelou o médico mais uma vez, instantes depois:
— Doutor, ele ainda tem pulso?
A resposta não mudara. O médico tentava conter os sangramentos, pedindo
ajuda aos demais thowars, os revolucionários que o acompanhavam. Siraj,
elétrico e preocupado em ajudar, estava também muito, muito curioso. Antes
que o veículo arrancasse, repetiu:
— Kadafi ainda tem pulso, doutor?
— Não, ele não tem mais pulso — respondeu o médico.
Apesar de engajado na missão de levá-lo ao hospital, Siraj sentiu que seus
instintos básicos falavam mais alto naquele instante. Ao saber que o coração do
coronel havia parado, pensou o que mais tarde me diria:
— É um orgulho para a Líbia que Kadafi esteja morto.
A constatação da parada cardíaca só agravava a urgência. Mas a multidão que