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LUCIEN FEBVRE
o
problema da
incredulidade no século
XVI
A religião de Rabelais
Tradução
Maria Lúcia Machado
Tradução dostrechosemlatim
José Eduardo dos Santos
Lohner
_ltriMl_
COMPANHIA DAS LETRAS
Copyríght ©2003byEditions A1binMichel
Estelivro,publicado no âmbito doprograma departicipação àpublicação Carlos Orummond deAndrade da
Embaixada daFrança noBrasil,contou com oapoio doMinistério francês dasRelações Exteriores eEuropéias.
Cetouvrage, publiédanslecadreduProgramme d'AídeàIaPublication CarlosOrummond deAndrade deI'Am-
bassade deFrance auBrésil,bénéficie dusoutien duMinistêre françaís desAffairesEtrangêres etEuropéennes.
Título original
Leproblêrne deJ'incroyance auXVI'siêcle:Iareligion deRabelais
Capa
RitadaCosta Aguiar
Fotodecapa
Peixegrande comepeixe pequeno, PieterBruegel. Gravura, 22,9x29,8 em.BritishMuseum, Londres
Preparação
MaysaMonção
CéliaEuvaldo
Índice remissivo
Luciano Marchiori
Revisão
Arlete Sousa
AnaLuizaCouto
DadosInternacionais deCatalogação naPublicação (CIP)
(CâmaraBrasileiradoLivro,SP.Brasil)
Jebvre, Lucien. 1878-1956
O problema da incredulidade DO século XVI : a religião de
Rabelaís ILucíen Febvre;tradução MariaLúciaMachado; tradução
dostrechos emlatimJoséEduardodosSantosLohner- SãoPaulo:
Companhia dasLetras,2009.
Título original: Leproblême deI'incroyance auXVI·slêcle :Ia
relígion deRabelais
ISBN978-85-359-1328-6
I.Ensaios franceses -Século 162.França.História religiosa -
Século 163.Rabelais,Prançois, (31494-15534. RabeJais,Prançois.
ca1494-l553 -Críticaeinterpretação I.Titulo. 11.Título:Areligião
deRabelais
08·08990 CDD-843.3
índiceparacatálogo sistemático:
1.Rabelais, Prançois :Apreciação crítica 843.3
9J
[200
Todos osdireitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista 702 cj.32
04532-002 - SãoPaulo - Sp
Telefone (11) 3707 3500
Fax(11) 3707 3501
www.companhiadasletras.com.br
Sumário
Apresentação - Hilário Franco]unior ................................. 9
Prefácio ...................................................... 15
Introdução geral ..................................................... 29
PARTE I- RABELAlS, ATEÍSTA? 37
Nota liminar: Oproblema dométodo. ................................. 39
LIVRO PRIMEIRO: OTESTEMUNHO DOS CONTEMPORÂNEOS .... 45
1.Osbons camaradas. ................................................ 47
2.Teólogos econtroversistas .......................................... 109
3.Conclusão: Testemunhos emaneiras depensar. ...................... 141
LIVRO SEGUNDO: ESCÂNDALOS EQUEIXAS. .................•............... 145
1.Asinfantilidades deRabelais 147
2.Acarta deGargântua eaimortalidade daalma. ....................... 163
3.Aressurreição deEpistemon eomilagre. ............................ 191
PARTE 11- CRENÇA OU INCREDULIDADE 213
LIVRO PRIMEIRO: OCRISTIANISMO DERABELAIS ............................. 215
1.Ocredo dosgigantes .... ........................................... 2I7
2. Rabelais, aReforma eLutero ........................................ 241
3.Rabelais, Erasmo eafilosofia doCristo 267
LIVROSEGUNDO:OSLIMITESDAINCREDULIDADE NOSÉCULOXVI .............. 289
1.Influências dareligião sobre avida. .................................. 291
2. Osapoios dairreligião: afilosofia? ................................... 307
3.Osapoios dairreligião: asciências? 328
4.Osapoios dairreligião: oocultismo? ................................. 360
5.Conclusão: Um século que quer acreditar ............................ 386
Posfácio ............................................................. 395
Bibliografia .......................................................... 421
Notas............................................................... 451
lndice remissivo 499
Apresentação
Em 1929,como se sabe, os franceses Lucien Febvre e Marc Bloch criaram
uma nova corrente historiográfica com acorrespondente tribuna, arevista Anna-
lesd'histoire économique etsociale (alargada para um terceiro campo e rebatizada,
em 1946,Annales: économies, sociétés, civilisations). Aidéia era combater ahistória
meramente descritiva dos positivistas, que de certa forma limitavam-se aparafra-
sear os documentos de maneira acrítica. Febvre eBloch propunham, de seu lado,
novas reflexões metodológicas: aconscientização de que osdocumentos não exis-
tem perseesim por serem definidos enquanto tal pelos historiadores; ainstaura-
ção de uma escrita da história que sefaça apartir de questões concretas colocadas
àdocumentação; oreconhecimento de que tais questões dirigidas ao passado par-
tem do presente esão, portanto, inevitavelmente influenciadas por ele; aadoção
de instrumentos intelectuais de áreas afins para aconstrução dessa nova história
ampliada earejada. Asíntese disso tudo seria feita por Febvre na sua aula inaugu-
ral no Collêge de France, em 1933,com afórmula" senão há problema, há apenas
ovazio", transformada em 1941na célebre expressão "história-problema". Nessa
linha, a Encyclopédie Française, cuja presidência assume em 1935, foi concebida
como "uma enciclopédia de problemas, não de referências".
Toda essa reflexão seria exercitada por Lucien Febvre (1878-1956) não ape-
nas nos seus livros - esobretudo nesse Oproblema daincredulidade noséculoXVI:
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AreligiãodeRabelais - mas ainda numa grande quantidade de estimulantes rese-
nhas, notas, artigos de crítica historiográfica.' Textos cujo objetivo era dialogar,
levantar questões, abrir possibilidades. Tratava-se de leituras para instigar novos
escritos efazer avançar ahistoriografia. Aquelas pequenas peças foram centrais
na obra de Febvre, construída muitas vezes apartir de resenhas, como acontece
com o livro que o leitor tem em mãos, surgido para discutir a Introdução feita
pelo historiador Abel Lefranc aos textos de François Rabelais (1483-1553), aquem
taxa de adepto da "fé racionalista". Aintenção de Febvre foi, ao criticar tal defini-
ção, mostrar osproblemas de seaplicar oconceito de incredulidade ao século XVI.
Para ele, a história das idéias deve estar articulada àhistória social, e é preciso
levar em conta ascondições da produção das idéias easmodalidades da sua difu-
são erecepção. À história positivista, centrada nos fatos, na política eno indiví-
duo, Febvre contrapunha uma história das interações, do social, do coletivo. Se
Rabelais parece àprimeira vista ocupar amaior parte das páginas do livro, não se
deve esquecer que ele surge apenas no subtítulo. O verdadeiro objeto de estudo
éaincredulidade.
Febvre examina Rabelais não por ele mesmo, mas como veículo para alcan-
çar opensamento da época. O indivíduo éjanela para asociedade. Asociedade é
influenciada por certos indivíduos, sobretudo no "domínio do espírito". O que o
historiador pretende alcançar é a "maneira de querer, sentir, pensar e crer" da
época. Rabelais era ateu? Para desmontar aresposta afirmativa de Lefranc, Febvre
demonstra que o outillage mental do século XVI não tinha o conceito de ateísmo, e
que falar nele em relação àquela época éanacronismo. Éverdade que Rabelais nas
suas obras descreve situações e tece comentários que nos parecem irreverentes,
mas que arigor apenas manifestavam, na expressão de Mikhail Bakhtin, a "cons-
ciência paródica" do cristianismo medieval erenascentista esua prática, tanto laica
quanto clerical, de satirizar cerimônias etextos religiosos quando de certas festas.'
Rabelais, ex-franciscano ainda impregnado de religião - como todo o Ocidente
do século XVI -, não poderia negar a existência dela, que lhe parecia evidente e
natural. Como amaior parte dos humanistas, seu intento era reformar aIgreja,
não destruir a religião. Era para preservar esta, aliás, que seria preciso renovar
aquela. Não setratava, portanto, de ateísmo, esim de crítica auma certa vivência
do cristianismo. Como já havia sido feita algumas vezes nos séculos anteriores,
embora não nos mesmos moldes.
Assim, reagindo contra atendência amodernizar excessivamente o século
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XVI, Febvre chama a atenção - outro mérito de seu trabalho - para o fato de a
Renascença não ter sido urna ruptura, não ter iluminado as pretensas trevas da
Idade Média. Esta, aliás, "prolongou-se pelo menos até o século XVI, e mesmo
além".' Quando se atribui aos renascentistas o reaparecimento do espírito de
observação e de inovação, "podemos responder: não ... Ele jamais desapareceu.
Ele somente assume, talvez, formas novas". Pesquisas posteriores confirmaram
essa interpretação.
Bartolomé Bennassar eJeanJacquart, por exemplo, falam de "revolução"
espiritual eestética do século XVI, para logo reconhecerem que ela "continua pri-
sioneira das conquistas dos séculos anteriores", que seus protagonistas" estão car-
regados de passado medieval". No prefácio ao livro daqueles autores, Pierre Gou-
bert afirma que no século XVI "as paisagens, as técnicas e as 'almas' pouco
evoluíram [...].As rupturas decisivas situar-se-iam antes do século XIII, depois no
século xx". Vitorino Magalhães Godinho, de seu lado, observa que o século XVI
"não éainda oséculo da Razão, mas o da sombra eo da luz interpenetrando-se".
Jacques Le Goff, em entrevista recente, émais enfático: "se eu tivesse apossibili-
dade de corrigir aperiodização dos programas escolares, avítima seria o século
XVI. Minha convicção éque esse século não marca, como secrê, uma ruptura nem
um despertar da modernidade" .Amaior novidade da época, ele continua, foram
os Descobrimentos, que, contudo, não modificaram profundamente avida dos
europeus. O Renascimento do século XIIintroduziu mais mudanças do que o do
XVI, que foi apenas "um conjunto de acelerações ede inflexões".'
Logo, opresente livro propõe um método fecundo esugestões estimulantes,
embora atualmente algumas não estejam asalvo de reavaliações. Inclusive um
ponto central como ofundamento da inexistência de incredulidade no século XVI.
Para Febvre, oshomens daquela época não recuavam diante da contradição, como
ocorreria apartir do cartesianismo. Eles desconheciam osenso doimpossível. Não
tinham anoção de natural oposto asobrenatural, as duas instâncias estando em
constante comunicação. Fossem camponeses ou intelectuais, eles viam ouniverso
povoado de demônios. Estavam culturalmente habituados apensar segundo cate-
gorias enraizadas há muito, ainda que as evidências apontassem noutra direção.
Eram desprovidos de espírito crítico. Encontravam-se preparados para ver o que
tinham ouvido. Pesquisas posteriores matizam, porém, esse quadro.
De um lado, se éverdade que oléxico usado por qualquer sociedade reflete,
mesmo que com algum atraso temporal, tanto sua realidade objetiva quanto sub-
II
jetiva, épreciso levar em conta que alíngua francesa manejada por Rabelais dispu-
nha desde oséculo XIII dos verbos descroire (não crer em Deus) emescroire (recusar
acrer em Deus ou na doutrina), desde o século XIV com o adjetivo increable (algo
no qual não sepode crer) transformado em 1513 no moderno incroyable.' De outro
lado, desde aIdade Média avisão, enão aaudição, ao contrário do que afirma Feb-
vre, era considerada o mais importante dos sentidos. Mesmo qualificando Opro-
blema da incredulidade ... de "livro maravilhoso", Pierre Francastellembra que "a
Idade Média reservou ao ensino visual um papel importante", que "todo oRenas-
cimento seexplica pelo desejo de visualizar um saber emitos", que" oséculo XVI e
sobretudo oXVII vêem aparecer uma nova forma de utilização davista". 6De outro
lado ainda, o peso do empirismo aumentou com as viagens ultramarinas e a
expansão do comércio. O número eaprecisão descritiva entraram no dia-a-dia de
uma parcela crescente, embora ainda pequena, da população. SeColombo, até o
fim de seus dias, pensou ter chegado àsÍndias, seus contemporâneos portugueses
jamais confundiram aAmérica com elas. Tanto que levaram muitos anos para
designarem os nativos do Brasil como "índios" .Este termo não aparece na Carta
de Pero Vaz de Caminha e continuaria pouco comum nos escritos do padre
Manuel da Nóbrega, transcorrido mais de meio século. Arealidade objetiva iadei-
xando de ser concebida como aberta a todas as possibilidades e passava a ser
apreendida por "critérios cada vez mais estritos para criar aprópria noção de
impossibilidade". Epor conseqüência, ade incredulidade.-
Também merece nova reflexão aafirmativa, que acabaria por se tornar pos-
tulado, segundo aqual para todo historiador oanacronismo é"opecado dos peca-
dos, entre todos os pecados o irremissível". Entretanto, o próprio Febvre parece
reconhecer que nenhum historiador pode escapar daquele "pecado", tanto que,
constata, cada época constrói mentalmente sua representação do passado, "sua
Roma esua Atenas, sua Idade Média eseu Renascimento", Ede fato, ele mesmo
não consegue ficar isento de seu quadro histórico. Quando pensa que anacro-
nismo não éapenas algo que não existiu em determinada época, esim algo que não
podia existir naquela época, ele traça o perfil de um período apartir do de um
outro. O Rabelais que Febvre apresenta é agente histórico que age em um puro
presente, totalmente contemporâneo asimesmo, uma eucronia ideal" criada pelo
historiador eque se revela anacronismo.
Se anacronismo é uma deformação cronológica, uma mistura de épocas,
escrever história ésempre exercício de anacronia, já que - diziam Bloch eFebvre
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- é mesclar consciente ou inconscientemente elementos do presente e do pas-
sado. Prova-o até mesmo oelemento básico do discurso do historiador, ovocabu-
lário. Ao longo do tempo as palavras, ainda que sob amesma forma, vão reco-
brindo novas realidades, ganhando outras acepções. Substituir em passagens mais
dificeis afala do historiador pela da época estudada não significa necessariamente
evitar aarmadilha do anacronismo: ao lermos acitação de um filósofo grego, de
um cronista medieval ou deum literato moderno, atribuimos àssuas palavras sen-
tidos que com freqüência não correspondem ao entendimento que delas tinham
os contemporâneos.
Abem da verdade, aescrita da história não pode escapar dos anacronismos
porque aHistória em simesma éanacronia, no sentido de que não existe período
temporalmente homogêneo. São desiguais os ritmos e as durações das variadas
conjunturas eestruturas - políticas, econômicas, sociais, culturais, religiosas, psi-
cológicas - que compõem uma sociedade. O ato aparentemente simples de esco-
lher o período a ser estudado significa superpor camadas temporais diferentes.
Um recorte estreito, um ano, uma década ou mesmo uma geração, pode ocultar
temporalidades mais lentas, caso de certos comportamentos demográficos, reli-
giosos ou culturais. Oatual processo de globalização, ao aproximar sociedades em
estágios civilizacionais diversos, exemplifica bem talsituação. Recortes temporais
mais largos, como os séculos, tornam otrabalho do historiador ainda mais vulne-
rável àanacronia.
Oanacronismo não deve, todavia, pensam muitos estudiosos hoje em dia, ser
diabolizado. Deve mesmo ser utilizado como fator de compreensão da realidade
abordada. Seele era prática corrente na historiografia medieval, que projetava no
passado objetos, costumes evalores do seu presente, tal dado não deve ser simples-
mente criticado - o que, em simesmo, seria anacronismo - e sim levado em
conta na análise do período. Pode-se entender melhor avisão de história da Idade
Média seincluirmos na análise os tipos de anacronismos praticados pelo período.
O fato de as cortes monárquicas hebraicas do Antigo Testamento serem retrata-
das pelos renascentistas como se fossem cortes senhoriais italianas ajuda no
entendimento da vida cotidiana nobiliárquica dos séculos XV-XVI. Justamente por-
que aliteratura romântica descreve omundo medieval de maneira pouco fiel, ela
nos transmite informações preciosas sobre o século XIX. O filósofo Jacques Ran-
ciêre, em análise arguta, pondera que, se os homens sempre tivessem sentido,
agido epensado de acordo com o seu tempo, amutação histórica estaria conde-
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