Table Of ContentO Mobiliário do Antigo Egipto no Império Novo
Análise Material e Simbólica
André Henriques d’Almeida Garrido Patrício
Dissertação
de Mestrado em História – Especialização em Egiptologia
Abril 2014
O Mobiliário do Antigo Egipto no Império Novo
Análise Material e Simbólica
André Henriques d’Almeida Garrido Patrício
Dissertação
de Mestrado em História – Especialização em Egiptologia
Versão corrigida e melhorada após a sua defesa pública
Abril 2014
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à
obtenção do grau de Mestre em História – Especialização em Egiptologia,
realizada sob a orientação científica de Professora Doutora Maria Helena
Trindade Lopes
Em memória da minha sorellina Raquel Patrício e dos meus amados avós, que
reencontrarei no Mundo dos Ocidentais.
Para o Strauss, o meu eterno companheiro!
To B.P.
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Maria Helena Trindade Lopes pela sua enorme paciência, pela
sua constante presença e total disponibilidade. Por nunca me ter deixado parar. Acima
de tudo pelo seu génio e pelo seu amor pelo Egipto, que me inspirou mais do que
quaisquer palavras conseguirão alguma vez exprimir.
Ao Professor Doutor José das Candeias Sales pela sua visão do Egipto. Pelo seu
conhecimento enciclopédico de todo o panteão egípcio e por estar sempre disponível
a partilhá-lo.
À Professora Doutora Victoria Asensi Amorós por me ter ajudado mesmo sem fazer
ideia de quem eu era e por gentilmente me ter facultado acesso à sua Dissertação de
Doutoramento, compilação máxima da madeira do antigo Egipto.
À Senhora D. Lurdes Morgado pela sua disponibilidade e explicações dos aspectos
burocráticos. Foi indispensável.
À Susana Mota por nunca ter parado de “me dar na cabeça”, por ter sempre insistido
que a perfeição era essencial. Por me ter lembrado constantemente das etapas que se
seguem e do quão fascinantes são. Pela ajuda da sua incomparável mente sem
paralelo.
À Regina Carvalho pela paciência que sempre teve para as questões existenciais que
surgem nos momentos menos apropriados.
Ao Bernardo Neves por estar presente há tantos anos que se tornaram incontáveis.
Pela sua enorme paciência em atender os meus pedidos de leitura a horas
inadmissíveis e pela sua frase de assinatura “Só não consegues se não queres!”, algo
que sempre muito me irritou mas que me obrigou a nunca parar. Desde o Técnico.
Aos meus pais. À minha mãe por ter sempre acreditado que se eu amava Egiptologia
devia seguir o “meu coração”. Por ter tido sempre a certeza de que eu completaria
este trabalho e continuaria neste campo que sempre me fascinou. Ao meu pai por se
ter apaixonado pelo Egipto quando eu decidi ir para Egiptologia e por a partir desse
dia nunca mais ter parado de me questionar sobre os mais variados assuntos das Duas
Terras. São os dois o exemplo máximo do que força, dignidade e resistência humana
deve ser.
O Mobiliário do Antigo Egipto no Império Novo
Análise Material e Simbólica
André Henriques d’Almeida Garrido Patrício
A presente dissertação reflecte a compilação de um estudo essencialmente
bibliográfico e iconográfico de doze peças de mobiliário do antigo Egipto, Império
Novo. É primeiramente apresentado um breve estudo sobre materiais usados para a
construção dos diversos objectos produzidos no referido período histórico e
analisados os seus aspectos simbólicos. São também apresentadas sucintamente
algumas técnicas de construção adoptadas durante as dinastias XVIII-XX para a
construção de mobiliário doméstico e ritual. De seguida estes objectos são analisados
material e simbolicamente em dois capítulos tendo como base a investigação
efectuada. Colocam-se ao longo deste trabalho diversas questões, sendo as mais
prementes “se terá havido transferência de mobiliário doméstico para o contexto
funerário” e “Terão tido os espólios funerários mobiliário feito exclusivamente para
esse fim”. As conclusões revelam dados comparativos do universo de peças de
mobiliário recolhidas e apresentam algumas hipóteses explicativas sobre o assunto
abordado.
Palavras-chave: Mobiliário, Império Novo, Simbolismo.
INTRODUÇÃO
“Os antigos conheciam sete ramos do Nilo: como o Pitão mitológico, o Nilo
mergulhava as suas sete cabeças no mar. [...] A vida do Egipto é o Nilo: sem o Nilo, o Egipto
seria apenas a continuação do Deserto Líbico, até ao Mar Vermelho. Assim, é o país mais
fecundo em que ao homem foi dado semear.”
Eça de Queirós1
Egipto!
A terra dos faraós!
Estes são ainda hoje poderosos constructos inscritos na mente colectiva
humana. Estão de tal forma enraizados que usualmente a própria Humanidade não se
apercebe das suas presenças. Para muitos, o Egipto traduz-se num local quase mágico
e repleto de segredos, num passado distante onde homens que eram considerados
deuses reinavam. Para outros será uma realidade que nunca pode ter existido por ser
tão surpreendente. Um facto é constante: o fascínio que o Antigo Egipto exerce sobre
tantos é, cientificamente, inexplicável.
A civilização faraónica surgiu em cerca de três mil antes de Cristo2 tendo-se
mantido viável durante trinta Dinastias3 que se estenderam por mais de dois milénios
e meio4. Foi contudo eventualmente forçada a adormecer por um mundo que
observava o seu extenso oásis habitado por um povo complexo e antigo com olhares
de inveja. Esse mesmo mundo actuou constantemente contra um povo que tinha como
uma das suas centrais preocupações a manutenção de maat. O Egipto foi repetidas
vezes invadido. Manteve-se sempre numa cerrada batalha pelo controlo do isefético e
a sua manutenção fora das suas fronteiras. Todas as grandes civilizações, enfim,
acabam por perceber quando é altura de, quase como se de um plano estratégico se
tratasse, qual dentes de dragão, enterrar-se na profundeza da terra sobre a qual andou
durante milénios. E esperar. Pacientemente esperar que o planeta venha a estar
preparado para a voltar a receber. Há pouco mais de um século e meio esse momento
1 Queirós, E., O Egipto – Notas de Viagem, 43-44.
2 Dinastia I, Faraó Aha. Cf. Shaw, I. (ed), The Oxford History of The Ancient Egypt, 480.
3 Consideram-se os Períodos Intermediários como mantendo o regime faraónico, independentemente
das alterações políticas internas do Egipto nessas alturas. As trinta dinastias estenderam-se,
sensivelmente por cerca 2657 anos, terminando com o início do segundo Período Persa. Cf. Shaw, I.
(ed), Ibidem, 480-482.
4 Foi, até aos dias de hoje a única civilização que se estendeu no tempo por um período tão extenso. A
nossa própria civilização dura há apenas dois milénios.
1
parece ter chegado. A extraordinária história desta civilização começou a ser
conhecida e estudada com um cuidado e interesse inesperados. De certa forma, os
antigos egípcios voltaram a andar uma vez mais no seu mundo. Os seus nomes
recomeçaram a ser pronunciados e a sua eternidade foi, segundo os seus mais
profundos costumes, assegurada.
No século XVIII o Egipto começou a ser então revelado pelos olhos de uma
nova civilização. Nos dias de hoje, em lentos passos vai-se tentando compreender
aquele mistério que foi o mundo do Antigo Egipto. É essencial olhar com humildade e
reverência para um povo cuja existência ainda é tão repleta de perguntas. Muito mais
do que de respostas. É neste ponto que se introduz o presente estudo. Na tentativa de
compreender mais um pequeno detalhe desta civilização que ainda se mantém longe
de ser revelada na sua totalidade. Talvez ainda não confie nos que habitam este
planeta!
De uma forma reducionista pode-se começar a compreender os antigos
egípcios com recurso a três aspectos básicos essenciais da sua cultura. O faraó, o Nilo
e o seu complexo sistema de crenças religiosas e simbólicas.
O Nilo era o coração do Egipto. Literalmente. Sem este rio nunca teria
existido uma civilização. Os antigos egípcios tinham uma clara noção deste facto.
Tudo o que era simbólico desde a fertilidade à cor natural do rio e mesmo à cor negra
dos depósitos de detritos orgânicos das suas cheias tinha uma conotação
extremamente positiva. Seria provavelmente uma forma de agradecimento pela vida
que só este corpo de água tornava possível no meio de dois desertos inóspitos. O rio
Nilo vem da África equatorial e desagua no Mar Mediterrâneo. Percorre um total de
6759.24 quilómetros. A riqueza orgânica deste rio deve o seu agradecimento às
grandes monções na Etiópia que arrastam até ao Egipto um elevado volume de
detritos altamente nutritivos que são depositados nas terras das suas margens5. É
assim facilmente compreendido o papel central e a ligação deste rio a todo o sistema
de crenças do antigo Egipto. Por certo que uma das suas mais importantes associações
é feita ao grande Nun, a água primordial que cobria tudo e de onde surgiu a vida do
primeiro dos deuses egípcios6, em mais do que uma cosmogonia.
O faraó estava inevitavelmente ligado ao Nilo e era desta associação que uma
das suas mais poderosas ferramentas surgia. Para todos os efeitos os seus ancestrais
5 Butzer, K. W., “Nile” in Redford, D. (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, vol. 2, 343.
6 Vd. Sales, J. C., As divindades Egípcias: uma chave para a compreensão do Egipto antigo, 66; 69.
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haviam surgido do Nilo. Esta ligação directa entre o rio, fonte de vida, o faraó e os
egípcios, que dependiam do rio para sobreviver, remetia para uma das eternas bases
da realeza: a ligação única e transcendental de um individuo, o faraó, com todos os
seus súbditos. Ao contrário de todos os outros membros da sociedade que apenas se
ligam a alguns dos seus indivíduos, o faraó estava inquestionavelmente ligado a
todos7. Por outro lado a sua ligação com o divino estava claramente estabelecida
desde os primeiros tempos do Egipto. O faraó era8 divino. Mais, ele era um deus vivo
que governava sobre os egípcios. Ele era Hórus, filho e neto de deuses. Estes dois
pontos estabeleciam amplamente a legitimidade de um faraó como governante em vez
de qualquer outro indivíduo. Este facto ajuda a perceber a aparentemente excessiva
preocupação de tantos faraós usurpadores do trono de Hórus em estabelecer, sem
margem para dúvidas, a sua linhagem divina.
O sistema de crenças religiosas é certamente bastante mais complexo que os
anteriores e acima de tudo, abrange-os. É necessário estabelecer que um sistema de
crenças religiosas se refere a um tipo de informação que inclui qualquer objecto,
ocorrência, gesto ou indivíduo que em determinado momento da história e em
determinado lugar teve um significado fora do comum ou transcendente9. Entraremos
aqui no domínio do simbólico, núcleo vivo da religião egípcia. O simbolismo, que
deriva de uma crença tem como principal objectivo transportar o observador para uma
concepção abstracta10. Muitos dos símbolos têm, na realidade, origem na natureza.
Este é um aspecto central no sistema de crenças religioso-simbólicas de qualquer
civilização11. É exatamente esta ligação ao natural que cria símbolos que não são mais
do que representações das realidades da existência12 e do fundamento das estruturas
religiosas da vida humana e do universo. Contudo o papel mais importante será a
capacidade que retêm de serem reconhecíveis e de assim tornar possível ao indivíduo
não apenas nomear mas também identificar determinados fenómenos cósmicos e
acima de tudo penetrá-los com uma introspecção significativa. Desta forma, o
individuo e a sua sociedade tornam-se capazes de elevar o natural e a si próprios
7 Cf. Quigley, D. (ed), The Character of Kingship, 5.
8 Ou pelo menos foi durante quase toda a duração do Egipto faraónico.
9 Reno, S. J., “Religious Symbolism: A Plea for a Comparative Approach” in Folklore, 76.
10 Reno, S. J., Op. Cit., 77.
11 Ibidem.
12 Sendo estes símbolos representantes das preocupações básicas dos homens: necessidade de
segurança, satisfação, medos... Cf. Ibidem,78.
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acima do quotidiano, passando a pertencer a algo transcendental13. No caso dos
antigos egípcios vê-se este processo na proximidade do individuo ao divino e ao seu
próprio Egipto: as Duas Terras eram governadas por um deus vivo. O ciclo estava
assim fechado e totalmente explicado.
Certamente que uma abordagem possível para levantar o denso véu do antigo
Egipto será compreender o indivíduo Sabe-se que a complexidade do ser humano
apenas é rivalizada por duas questões. Pelo que consegue alcançar partindo de uma
simples ideia abstracta. Por aquilo que escolhe para o acompanhar durante a sua
existência. Desde os primórdios da humanidade até à actualidade, alguns aspectos têm
sido comuns a todas as civilizações e, por correspondência, a todos14 os indivíduos. O
primeiro é sem dúvida o aspecto genético. A sobrevivência da espécie associada à
procriação individual. Está geneticamente determinado que um indivíduo fará tudo ao
seu alcance para garantir o prolongamento da sua existência e na maioria dos casos,
conseguir manter essa mesma existência ad aeternum com novas gerações portadoras
do seu material genético. Um segundo aspecto é uma clara extensão do primeiro. A
manutenção da existência individual, mesmo após a morte física. Neste ponto, o
antigo Egipto e a sua civilização foram mestres. Tornaram uma realidade cruel numa
crença e essa crença numa prática. Estabeleceram um elaborado conjunto de rituais
que foram durante milénios meticulosamente seguidos. Pretendiam garantir a sua
continuidade numa nova dimensão, o seu Mundo dos Ocidentais. Aqui, apenas seriam
abraçados aqueles de coração puro. Os melhores de entre todos.
O terceiro aspecto consistentemente detectado em todas as civilizações é na
realidade aquele que torna possível conhecer os que passaram antes de nós pelo
planeta Terra e permite que o estudo que aqui se apresenta exista: a eterna
necessidade de representação não só do indivíduo como da sua civilização e das suas
crenças, fazendo-o iconográfica e materialmente. Para os habitantes das Duas Terras,
estas representações eram essenciais para a manutenção da sua existência no Egipto e
para activar a eficácia dos seus portais para o Mundo dos Ocidentais. Hoje
chamamos-lhes túmulos. Estes locais de descanso eterno encerraram esses dois
elementos que são de extrema importância e que este estudo abordará. Um primeiro é
a própria riqueza iconográfica que preenche as paredes dos túmulos privados. Esta
13 Ibidem.
14 Ou talvez se deva dizer antes “Ou na maioria dos indivíduos”.
4
Description:forte possibilidade de este banco nunca ter sido usado por Tutankhamon. 427 As sete vacas divinas ou as sete Hathor. Cf. Wilkinson, R. H., The Complete Gods and Goddesses of. Ancient Egypt, 141. 428 O papel de protectora de Hórus, por associação de Hathor ao céu, local onde o falcão reside,