Table Of ContentMercado e Utopia
Fábio Wanderley Reis
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REIS, FW. Mercado e Utopia [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009.
460 p. ISBN: 978-85-99662-79-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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BIBLIOTECA VIRTUAL DE CIÊNCIAS HUMANAS
MERCADO E UTOPIA
Fábio Wanderley Reis
Fábio Wanderley Reis
Mercado e Utopia
Rio de Janeiro
2009
SUMÁRIO
PREFÁCIO................................................................................................1
Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro PRIMEIRA PARTE: TEORIA E EPISTEMOLOGIA
Edelstein de Pesquisas Sociais - www.bvce.org Mudança, Racionalidade e Política...........................................................6
Política e Políticas: a Ciência Política e o Estudo de Políticas Públicas.40
Copyright © 2009, Fábio Wanderley Reis Identidade, Política e a Teoria da Escolha Racional................................60
Copyright © 2009 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Racionalidade, “Sociologia” e a Consolidação da Democracia..............84
SEGUNDA PARTE: DE VOLTA AO DESENVOLVIMENTO POLÍTICO
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por Solidariedade, interesses e Desenvolvimento Político..........................129
qualquer meio de comunicação para uso comercial sem a permissão escrita Para Pensar Transições: Democracia, Mercado, Estado........................173
dos proprietários dos direitos autorais. A publicação ou partes dela podem ser Teoria, Transições e Crises....................................................................207
reproduzidas para propósito não-comercial na medida em que a origem da
publicação, assim como seus autores, seja reconhecida. Cidadania, Mercado e Sociedade Civil..................................................229
TERCEIRA PARTE: TEMAS BRASILEIROS
ISBN 978-85-99662-79-3 Brasil: “Estado e Sociedade” em Perspectiva .......................................247
O Eleitorado, os Partidos e o Regime Autoritário Brasileiro................279
Regiões, Classe e Ideologia no Processo Eleitoral Brasileiro ..............306
Cidadania Democrática, CorporaTivismo e Política Social no Brasil...359
Governabilidade, Instituições e Partidos...............................................387
Estado Liberal, Projeto Nacional, Questão Social.................................418
O Mito e o Valor da Democracia Racial...............................................445
PÓS-ESCRITO (1998)..........................................................................459
Centro Edelstein de Pesquisas Sociais
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Contato: [email protected]
I
PREFÁCIO abundante produção que se devotou até há pouco (e se devota ainda, com
menor ímpeto, nos dias que correm) à questão geral das oscilações entre
autoritarismo e democracia pelo mundo afora, especialmente na periferia
dos países de capitalismo avançado e de mais firmes tradições liberal-
Este volume contém textos escritos ao longo de muitos anos. O
democráticas do Ocidente. O problema básico a que se dirige essa literatura,
reclamo usual nessas circunstâncias é o de que os textos esparsos que se
ou seja, o de como assegurar perspectivas institucionalizadas e estáveis de
reúnem apresentam, na verdade, unidade e coerência. Longe de refugar esse
convívio democrático, é nitidamente, no fundo, o mesmo em torno do qual
reclamo, sustento-o com força no caso presente.
giravam as preocupações dos trabalhos anteriores sobre desenvolvimento
Duas das três partes de que consta o volume, a primeira e a terceira, político. Mas a literatura sobre as idas e vindas dos experimentos
são aqui rotuladas respectivamente de “Teoria e epistemologia” e de autoritários, na qualidade de moda nova e “quente”, ignorou
“Temas brasileiros”. Na verdade, há também Brasil na primeira parte e sobranceiramente a produção relacionada com desenvolvimento político,
teoria na terceira. Mas o que importa é que, tal como os percebo, os textos supostamente anacrônica e, como tal, sem interesse. O alto preço analítico
incluídos em cada uma dessas partes representam, em alguma medida, quer que lhe coube pagar em consequência é bem claro: privada do atrevimento
a aplicação à realidade brasileira, quer a elaboração teórica adicional de teórico que caracterizou a produção anterior, com seu empenho de pensar
intuições e ideias inicialmente esboçadas no artigo intitulado processos complexos, a “transitologia”, como a chamou Philippe Schmitter,
“Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Político” (aqui reproduzido dedicou-se, ao contrário, à perseguição míope e resfolegante das
como capítulo 5), redigido em 1973, em que tratava de haver-me de conjunturas cambiantes – e, da descrição do colapso das democracias, passa
maneira construtiva, motivado pelo empenho de diagnóstico do regime rapidamente para a da dinâmica dos regimes autoritários, em seguida a dos
brasileiro de 1964, com as deficiências e dificuldades deparadas na processos de “abertura”, transmuda-se adiante no estudo propriamente das
literatura sobre desenvolvimento político, florescente nos anos 60 e início “transições” democráticas (rótulo sob o qual pega carona nos
dos 70. Continuo convencido de que, apesar de tais deficiências, não cabe surpreendentes eventos da derrocada dos países socialistas e ganha
abrir mão da aposta teórica fundamental envolvida naquela literatura – e de sobrevida), para nos falar finalmente da “consolidação” (será?) da
que a maneira em que o tema é tomado no artigo destacado representa democracia...
abordagem adequada e proveitosa. Desdobrando-se numa concepção da
Desnecessário destacar que esse estado de coisas não exalta a ciência
própria política e em fundamentos epistemológicos que reputo sólidos
política contemporânea, com a fluidez de modismos substituindo-se ao
(aspectos retomados aqui nos capítulos da primeira parte e nos demais
esforço de reflexão eventualmente cumulativa sobre os problemas centrais
capítulos da segunda, além de explorados mais longamente em volume que
da disciplina e sua possível aplicação consistente ao diagnóstico dos
publiquei em 1984, Política e Racionalidade, a reaparecer em nova edição
desafios práticos que defrontamos. Mal refeitos da surpresa da queda do
da Editora da Universidade Federal de Minas Gerais), essa abordagem não
socialismo, a intensificação dos fenômenos ligados à globalização faz
só vai além da miopia teórica e pobreza analítica de muito da literatura
rapidamente surgir aos nossos olhos como anacrônica, a seu turno, a
sobre “transições”, que sucedeu ao surto do desenvolvimento político, como
discussão mesma das “transições” à democracia. Pois a globalização enseja
também permite colocar em perspectiva alguns dos desafios trazidos pelas
o questionamento do próprio estado nacional como parâmetro natural e
novidades da globalização que recentemente passaram a preocupar-nos
aponta a necessidade de ampliação da perspectiva analítica para dar conta
tanto.
da lógica geral do processo em que o estado nacional passa a aparecer como
A literatura dedicada a “transições” merece realce, com efeito, como momento relativamente fugaz, a ser superado, se tivermos sorte, por formas
exemplo de distorção acadêmica crucialmente relevante do ponto de vista de organização capazes de se alçarem de maneira efetiva à escala
do interesse do desenvolvimento político como tema. Refiro-me à transnacional e virtualmente planetária que se torna crescentemente a escala
1 2
de operação dos mecanismos de mercado, com suas promessas e seus recursos analíticos que brotam de orientações como as indicadas, ou de seu
efeitos perversos. Espero que os textos pertinentes aqui incluídos sejam reexame crítico.
convincentes em mostrar que a abordagem abstrata e ambiciosa em termos
Em segundo lugar, algo mais singelo. Apesar de alterações
de desenvolvimento político, possibilitando a crítica a miopias e
estilísticas e de certos ajustes a que submeti vários dos textos para a
etnocentrismos vários, permite também plantear os problemas de forma a
presente publicação, não houve o empenho de “atualizá-los”, seja no
lhes dar tratamento adequado nas diversas fases do processo geral e
sentido de ocultar o que quer que revele o momento em que foram escritos
eventualmente capturar a lógica em que se articulam os desafios da
ou em qualquer sentido mais substancial, em especial no de elaborar as
convivência em diferentes escalas, incluídas a nacional e a transnacional.
interconexões e “reconstruir” o volume como um todo orgânico. Assim, não
Daí que tenha parecido apropriado fazer da segunda parte, obstante o reclamo de unidade latente, o volume pretende inequivocamente
explicitamente, a “volta ao desenvolvimento político”. Ao velho texto justificar-se sobretudo como reunião de textos esparsos. Com respeito a
dedicado a esse tema, junto aí três outros de reflexão teórico-metodológica, discussões em que não chego a considerar certos eventos mais recentes em
mais recentes, onde a inspiração do artigo inicial é mais direta e claramente que os temas tratados se desdobram e ganham novos matizes, a indagação
retomada. A ele remete também diretamente o trabalho que abre a terceira é, naturalmente, a de se a perspectiva que traria a unidade reclamada para o
parte do volume, em que o problema clássico das relações entre estado e volume seria apta a dar conta de tais desdobramentos. Presumo que a
sociedade no Brasil é rediscutido na perspectiva analítica por ele proposta. resposta positiva à indagação se justifique, por razões que, acredito, os
Reclamando assim abertamente a recuperação do desenvolvimento político textos em seu estado atual deixam ver com bastante clareza. De qualquer
como tema e perspectiva, confronto-me com o risco, do qual estou bem forma, um pós-escrito colocado ao final da terceira parte, onde estão os
consciente, de que parte do livro venha a ser vista como démodée por quem textos que mais poderiam parecer afetados por eventos recentes, procura
se contenta com índices e orelhas, ou acha que ciência social é questão de lidar brevemente com as indagações mais importantes que parecem surgir.
modas. Naturalmente, por detrás da disposição de correr esse risco está a
Como quer que seja, ouso crer que os trabalhos, em seu conjunto,
esperança de vir também a ser lido de fato, e poder eventualmente entreter
merecem melhor sorte do que a que lhes coube até agora, publicados
com o leitor verdadeiro o jogo das ideias em forma consequente.
esparsamente e, na maioria dos casos, apenas em periódicos acadêmicos,
Cabe destacar ainda dois pontos. Em primeiro lugar, uma advertência donde resulta que não tenham sido lidos senão por alguns amigos solícitos e
que seria, a rigor, supérflua, mas que se justifica em função de cobranças estudantes que não podiam escapar da obrigação. Divulgá-los reunidos no
pouco lúcidas com que de fato deparei. Rechaço com vigor a visão, presente volume permite a expectativa de que seu interesse seja avaliado
proposta em certas leituras dos trabalhos aqui publicados, na qual por um público mais amplo.
“desenvolvimento político” aparece como abordagem teórico-metodológica
peculiar que se poderia tomar como “alternativa” a perspectivas que discuto
em vários textos da primeira parte, supostamente situando-se no mesmo
nível delas e exigindo que a opção pela ótica do desenvolvimento político
fosse justificada contra elas: a chamada teoria da “escolha racional”,
abordagens como as que se encontram nas obras de Habermas ou de Piaget,
talvez uma perspectiva de cunho historicista etc. O uso que faço daquela
categoria pretende antes designar uma forma particular de lidar com
problemas específicos de mudança política, forma esta que eventualmente
se valerá, para fundamentar-se nos planos teórico e epistemológico, de
3 4
MUDANÇA, RACIONALIDADE E POLÍTICA1
I
Alguns dos mais importantes problemas de teoria e método a
exigirem nossa atenção são ainda problemas comumente deparados na
confrontação entre o marxismo e outras orientações no campo das ciências
sociais. Não pretendo, com isso, negar a chamada crise do marxismo, que a
proliferação de “escolas” torna bastante evidente, como notou Norberto
Bobbio em intervenção particularmente efetiva nos debates
correspondentes2. Minha intenção é antes assinalar que algumas das
questões discutidas pelos marxistas, hoje como ontem, são certamente
questões a serem consideradas pelas ciências sociais como tal. Os
problemas metodológicos associados com a história e a mudança ocupam
lugar de destaque entre elas.
Perry Anderson, estudioso marxista reputado e pouco ortodoxo,
fornece um ponto de partida interessante para a discussão de tais problemas
em trabalho conhecido. Refiro-me a Lineages of the Absolutist State,
PRIMEIRA PARTE publicado pela primeira vez em 19743. Anderson discute com brilho e
erudição a natureza e o desenvolvimento do estado absolutista na Europa.
TEORIA E EPISTEMOLOGIA Um dos subtemas associados é o do processo global de transição do
feudalismo para o capitalismo (bem como, na verdade, o problema geral da
transição de um modo de produção a outro), e Anderson dedica numerosas
páginas de suas conclusões a refletir sobre ele. A proposição central que aí
se sustenta, nas palavras do próprio autor, é a de que “a concatenação dos
modos de produção antigo e feudal foi necessária para engendrar o modo de
produção capitalista na Europa – uma relação que não foi meramente de
1 Trabalho originalmente apresentado ao simpósio “A Ciência Política nos Anos 80”
(IDESP, São Paulo, 3 a 6 de novembro de 1981) e publicado em Bolivar Lamounier (org.), A
Ciência Política nos Anos 80, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1982. Publicou-
se também, em inglês, sob o título “Change, Rationality and Politics”, como Working Paper
no. 10, Kellogg Institute, janeiro de 1984.
2 Norberto Bobbio, “Existe uma Doutrina Marxista do Estado?” e “Quais as Alternativas
para a Democracia Representativa”, ambos em Norberto Bobbio et al., O Marxismo e o
Estado (Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979; tradução para o português de Frederica L.
Boccardo e René Levie).
3 Perry Anderson, Lineages of the Absolutist State (Londres, Verso Editions, 1979; primeira
edição de NLB, 1974).
5 6
sequência diacrônica, mas também, a certa altura [o Renascimento], de tal necessidade por parte de um estudioso marxista possa talvez ganhar
articulação sincrônica”4. O processo em que se dá essa concatenação é matizes novos à luz da crise do marxismo acima mencionada.
repetidamente descrito em termos tais como “a especificidade da história
Não obstante, certas questões surgem se examinamos com mais
européia” e “a passagem única ao capitalismo [que foi] possível na
cuidado o texto de Anderson e refletimos por um momento. Para começar, a
Europa”, sendo posto em correspondência com a “singularidade” que o
despeito dos protestos contra determinismos “mecânicos” ou “orgânicos”
sistema de estados europeu veio a adquirir5. Ademais, Anderson é enfático
ou contra “impulsos intrínsecos”, Anderson não se abstém de proposições
ao tratar de dissociar sua interpretação de diversos modelos explicativos ou
como a de que “o Império Romano [...] era [...] naturalmente incapaz de
analíticos mais ou menos frequentemente usados em conexão com tais
uma transição ao capitalismo”, ou a de que “o próprio avanço do universo
temas: “[...] para se captar o segredo da emergência do modo de produção
clássico fazia que ele estivesse fadado a uma regressão catastrófica”7 –
capitalista na Europa, é necessário descartar da maneira mais radical
proposições que implicam precisamente, como é óbvio, a noção de alguma
possível qualquer concepção em que ela apareça como a simples absorção
espécie de determinação intrínseca ou orgânica. Além disso, trata-se, para
evolucionária de um modo de produção inferior por um modo de produção
Anderson, de tentar explicar certo processo (a emergência do capitalismo
superior, sendo este gerado automaticamente e por inteiro no bojo daquele
na Europa) e não apenas de contar uma história, mesmo se aquele processo
através de uma sucessão interna do tipo orgânico [...]”; “[...] o advento do
é visto como correspondendo a uma experiência ou “evento” único – e essa
modo de produção capitalista na Europa só pode ser entendido rompendo-se
tentativa é feita através do recurso à ideia de que um elemento de
com qualquer noção puramente linear do tempo histórico [...]”;
necessidade se afirma no processo. Com efeito, Anderson diz
“contrariamente a todos os supostos historicistas, o tempo como que se
explicitamente não apenas que a concatenação do universo clássico e do
inverte em certos níveis [de novo, uma alusão ao Renascimento] entre [a
feudalismo foi necessária para produzir a passagem para o capitalismo na
antiguidade clássica e o feudalismo], de forma a possibilitar a mudança
Europa, mas também que ela foi necessária para produzir tal passagem no
crítica em direção ao [capitalismo]”; “contrariamente a todos os supostos
que teve de único8. A indagação que surge, naturalmente, é a de qual pode
estruturalistas, não houve qualquer mecanismo automático de
ser o significado da ideia de necessidade – particularmente se aplicada para
deslocamento do modo de produção feudal para o modo de produção
dar conta de uma experiência julgada singular ou única – quando se põe de
capitalista, tomados como sistemas contíguos e fechados”. Especificamente
lado, de um só golpe, os modelos de inspiração mecanicista e organicista,
com respeito ao contraste entre os destinos do feudalismo europeu e do
“todos os supostos historicistas” e noções “lineares”, bem como “todos os
feudalismo japonês, já que este último “não engendra por si mesmo um
supostos estruturalistas”: restará algo, com efeito?
capitalismo autóctone”, Anderson assinala que “não havia, portanto,
qualquer impulso intrínseco ao modo de produção feudal que o compelisse Minha resposta a essa pergunta é decididamente negativa. Por certo,
inevitavelmente a desdobrar-se no modo de produção capitalista”6. é claramente possível tomar de maneira polêmica todas as noções acima
destacadas (mecanicismo, organicismo, historicismo, “linearismo”,
A primeira vista, além da plausibilidade “substantiva” da tese da
estruturalismo), identificando-as com distorções ou excessos de abordagens
“concatenação”, as reservas assim formuladas por Anderson não parecem
ou “escolas” específicas nas ciências sociais e fazendo delas, assim, alvos
ser senão a louvável manifestação de uma postura metodológica flexível.
óbvios e fáceis de crítica. Mas a capacidade de estruturar analiticamente
Alguns provavelmente verão mesmo com certo tédio a reiteração da
nosso objeto de estudo exige o recurso a modelos analíticos que por força
necessidade de evitar erros bem conhecidos, embora o reconhecimento de
terão algo a ver com pelo menos algumas dessas noções – ou talvez, se se
entende de maneira adequada a tarefa do cientista social, em alguma
4 Ibid, p. 422.
5 Ibid., pp.420-22; grifos de FWR. 7 Ibid., p. 420; grifos de FWR.
6 Ibid., pp. 420-22; grifos de FWR. 8 Ibid.; veja-se especialmente p. 420.
7 8
medida com todas elas. E o rechaço puro e simples das posições todo o problema geral. Pois ela faz da concatenação em si mesma uma
supostamente expressas por todas elas evidencia antes confusão necessidade em sentido distinto, ou seja, no sentido de algo que
metodológica do que louvável flexibilidade. necessariamente se dá: uma vez que se tenha a antiguidade clássica, está-se
“fadado” a ter o feudalismo – nessa ordem. Não resta, então, senão a
Um pequeno exercício 1ógico com respeito às conclusões de
questão de saber se a memória da antiguidade clássica se perderá durante o
Anderson ajudará a esclarecer minha posição. Sem dúvida, Anderson tem
feudalismo ou se manterá viva para ser retomada num momento crucial de
fatalmente de levar a cabo certos “experimentos mentais” para poder
Renascimento. Não me parece haver qualquer razão para que tal questão
pretender fundamentar a tese da concatenação da antiguidade clássica e do
seja vista como mais apropriada a argumentos contrafatuais do que a que se
feudalismo como condição necessária para o surgimento do capitalismo na
refere à possibilidade de produção do capitalismo pelo universo clássico na
Europa. Assim, ele considera o caso da ocorrência do feudalismo sem a do
ausência do feudalismo.
universo clássico, caso este explicitamente tratado por meio da discussão do
feudalismo japonês – o qual, por si mesmo, não produz o capitalismo. Ele Se raciocinamos nesses termos, torna-se logo claro que uma posição
teria também de considerar, naturalmente, a possibilidade da ocorrência do metodológica como a de Anderson não pode ser mantida de maneira
universo clássico sem a do feudalismo. Isso não é feito de qualquer forma consistente. Pois a tarefa que ele mesmo se propõe tem a ver
que pudesse ser considerada minimamente adequada, de sorte que não fica inequivocamente com a apreensão das determinações internas de um
claro por que, afinal de contas, o capitalismo não poderia derivar processo de longo prazo, graças às quais podemos ver seu resultado “final”
diretamente da antiguidade clássica. O que a análise de Anderson como algo distinto de um mero produto do acaso. Em outras palavras, o
efetivamente permite dizer sobre a questão gira em torno de dois pontos. problema para o analista é o de reconstruir a lógica do processo, o que se
Em primeiro lugar, há, certamente, sugestões persuasivas sobre a maneira pode traduzir em termos de recuperar aquela “linearidade” que o processo
pela qual o próprio feudalismo foi “instrumental” em produzir o tenha efetivamente exibido. Afinal de contas, apesar da ênfase na ideia da
capitalismo, tais como a que diz respeito à oposição particularmente concatenação entre a antiguidade e o feudalismo, bem como no aspecto de
dinâmica entre a cidade e o campo a ser encontrada no modo de produção sua articulação “sincrônica” durante o Renascimento, Anderson não chega a
feudal9. Mas tais sugestões não redundam por si mesmas no argumento considerar a possibilidade de que tal concatenação viesse a produzir-se
(possível pelo menos em termos contrafatuais) que seria necessário a numa sequência em que o feudalismo precedesse o universo clássico e o
Anderson para sustentar que a emergência do capitalismo teria sido engendrasse. Mesmo se tomamos sua asserção de que “o tempo como que
impossível se o feudalismo não tivesse existido, de acordo com a se inverte em certos níveis”, vemos, em primeiro lugar, que ela não pode
proposição da necessidade da “concatenação” para produzi-lo. Em segundo ser lida senão como alusão metafórica ao Renascimento e à retomada da
lugar, há a afirmação, anteriormente mencionada, segundo a qual o universo herança clássica que aí ocorre; em segundo lugar, que essa asserção implica
clássico estava “fadado” à regressão catastrófica ao feudalismo – mas essa ela própria a ideia de que o tempo tem uma direção, ou de que há uma
afirmação, por sua vez, além de ser uma formulação alternativa da própria “vecção” no processo de longo prazo. Torna-se claramente secundária,
posição cujos fundamentos são aqui questionados, na verdade torna circular nesse contexto, a questão de saber se as determinações que operam de
molde a engendrar essa vecção ou lógica poderiam ser adequadamente
9 “0 feudalismo como modo de produção... foi o primeiro na história a tornar possível uma descritas por meio de expressões tais como “mecânico” ou “orgânico”.
oposição dinâmica entre a cidade e o campo; o parcelamento da soberania inerente a sua Pois, ainda que se admita existirem aspectos da história ou das ações
estrutura permitiu que núcleos urbanos crescessem como centros de produção no interior de
humanas (tais como a dimensão subjetiva ou intencional destas) que não
uma economia quase totalmente rural, em vez de se constituírem como centros privilegiados
são captadas natural ou prontamente por aquelas expressões ou outras
ou parasíticos de consumo ou administração – o padrão que Marx acreditava ser tipicamente
asiático. A ordem feudal promoveu, assim, um tipo de vitalidade urbana sem paralelo em similares, não é certamente o mero fato de se tomar o feudalismo quer
qualquer outra civilização e cujos produtos comuns podem ser vistos tanto no Japão quanto como entidade “fechada” e à parte da antiguidade clássica quer como
na Europa”. Lineages, p. 422 (grifo de Anderson).
9 10
articulando-se com esta na produção do capitalismo europeu que fará a frequentemente inexiste a possibilidade de comparar uma série mais ou
explicação mais ou menos “orgânica” ou “automática”. Naturalmente, tanto menos numerosa de casos ou instâncias e assim inferir pelo menos
os organismos quanto os mecanismos podem ser, por exemplo, grandes ou conjecturalmente a ocorrência de uma regularidade. Na verdade, em muitos
pequenos – ou mais ou menos complexos. casos o problema é precisamente o de estabelecer, como vimos com
Anderson, a explicação de um evento concebido como singular ou único.
Claramente, o ponto crucial do problema da explicação histórica (ou
Nosso especialista é assim forçado a recorrer à comparação de apenas uns
da explicação de eventos históricos) reside em separar o necessário do
poucos casos (feudalismos europeu e japonês), ou às vezes mesmo a
contingente ou “peculiar” (“único” etc.)10. Poder-se-ia talvez pretender que
produzir artificialmente, por meio de argumentos contrafatuais, casos
este é o problema da explicação científica em geral, envolvendo os
contrastantes que efetivamente não existem (ou não existiram) para serem
problemas da causação e da indução de Hume, tal como discutidos, por
observados. Diante de tal situação, o que pretendo propor pode ser
exemplo, em Objective Knowledge, de Karl Popper: o que é que permite
enunciado em alguns itens:
tratar uma relação entre eventos como sendo uma conexão necessária?11
Dois elementos parecem estar presentes aqui, ambos considerados por 1) Esse estado de coisas encerra, para o historiador ou, em
Popper: (a) a ideia de alguma espécie de nexo “necessário” (“mecânico”, geral, para o cientista social que se depara com essa situação
“orgânico” ou o que seja) entre os eventos, a qual diria respeito ao paradigmal, a necessidade de recorrer ao outro elemento da ideia
problema da causação propriamente; e (b) um elemento nomológico, isto é, de explicação científica, isto é, a noção de alguma espécie de nexo
a ideia de que os eventos se encontram regularmente associados, ou de que “interno” que “ata” os eventos uns aos outros.
sua associação corresponde a uma regularidade. Este último elemento teria
2) A tendência – em moda nas ciências sociais
a ver com o problema da indução, encerrando a ideia de que, se a
contemporâneas – de questionar a validade de uma concepção
regularidade observada expressa uma necessidade, então ela terá de ocorrer
supostamente “linear” da temporalidade histórica, vista como
entre as instâncias não observadas da mesma forma que entre as
envolvendo determinismos “orgânicos” ou similares, além de ser
observadas.
inconsistente, redunda em negar a possibilidade de tal recurso.
É certamente supérfluo destacar quão complicado é o problema de
3) Finalmente, cumpre destacar o que há de problemático
filosofia da ciência que aí se defronta. Quando nos voltamos para a esfera
no contraste entre os dois elementos ou “lados” da explicação
dos fenômenos históricos e sociais, esse problema não faz senão tornar-se
científica: será efetivamente adequado opor esses dois elementos
mais complicado. Não pretendo com isso referir-me necessária ou
um ao outro? Será possível estabelecer a ocorrência de nexos
exclusivamente a questões tais como a da relação entre explicação e
necessários sem recorrer ao modelo da explicação nomológica?
compreensão (Verstehen), embora esta seja, por certo, uma das dimensões
Inversamente, a ideia de regularidade como fonte de explicação
relevantes do problema geral. O que tenho em mente a esta altura é antes
terá qualquer sentido se desvinculada da ideia de um nexo?
algo que se revela muito claramente no texto de Anderson que estivemos
Qualquer manual de metodologia nos dará resposta negativa a esta
examinando. A saber, o especialista que procura explicar eventos históricos
última indagação, apontando a possibilidade da “correlação
com frequência enfrenta uma situação que se mostra precária do ponto de
espúria”.
vista das exigências nomológicas da explicação científica, pois
Considerando tais questões do ponto de vista da ciência social e
política, os recursos de que esta dispõe presentemente me parecem apoiar
10 Note-se que o próprio Anderson, em certa passagem, formula o problema geral em termos duas proposições: (a) a de que a busca de “nexos” internos, conduzida
muito semelhantes. Veja-se Lineages, p.8.
adequadamente, não só não é incompatível com a estrutura nomológica da
11 Veja-se Karl R. Popper, Conhecimento Objetivo (Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1975,
ciência empírico-analítica, como na verdade lhe é afim; (b) a de que essa
tradução para o português de Milton Amado), pp. 88 e seguintes.
11 12