Table Of ContentFicha Técnica
Copyright © 2013 by Tom Doyle
Todos os direitos reservados.
Esta edição de Man on the Run foi publicada em acordo com Polygon, um selo de Birlinn Limited.
Tradução para a Língua Portuguesa © Texto Editores Ltda., 2014.
Título original: Man on the run: Paul McCartney in the 1970s.
Diretor editorial: Pascoal Soto
Editora executiva: Tainã Bispo
Produtoras editoriais: Renata Alves, Maitê Zickuhr e Pamela Oliveira
Tradução: Paulo Polzonoff
Copidesque: Fernanda Mello
Revisão: Iracy Borges
Design da capa original: Mark Swan
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Doyle, Tom
Man on the run : Paul McCartney nos anos 1970 / Tom Doyle; tradução de Paulo Polzonoff – São Paulo : LeYa, 2014.
ISBN 9788580449891
Título original: Man on the run: Paul McCartney in the 1970s
1. Músicos – Biografia 2. McCartney, Paul 3. Música – anos 70 I. Título. II. Polzonoff, Paulo
14-0124 CDD 920
Índices para catálogo sistemático:
1. Músicos : Biografia
2014
TEXTO EDITORES LTDA.
[Uma editora do grupo LeYa]
Rua Desembargador Paulo Passaláqua, 86
01248-010 – Pacaembu – São Paulo – SP
www.leya.com.br
Para Thomas Corrigan Doyle, por colocar a agulha naquele primeiro disco
e me colocar no caminho certo
INTRODUÇÃO
NA PRIMEIRA VEZ QUE ENCONTREI E ENTREVISTEI PAUL MCCARTNEY, ELE, DE
FORMA perturbadora, não parava de lançar olhares distraídos para seu
relógio.
Entrevistar o músico mais famoso do planeta, alguém que respondeu
perguntas de outros jornalistas antes mesmo de você nascer, já é bastante
difícil, mas se torna ainda mais desconcertante quando você percebe que
não está conseguindo prender a atenção do ex-Beatle e, como diz a velha
canção, impedir que sua mente vagueie.1
Era segunda-feira, 15 de maio de 2006, e o local era um estúdio
fotográfico em Kentish Town, no norte de Londres, onde McCartney estava
sendo fotografado pela filha Mary, que tinha os olhos arregalados como os
seus. As fotos seriam para uma série de capas da revista Q, que celebraria o
vigésimo aniversário da publicação. Eu estava ali para conversar com ele
sobre suas experiências nos últimos vinte anos, os acontecimentos e
inovações.
Durante a conversa de meia hora, consegui mantê-lo atento o suficiente
para falar sobre tudo, desde seu relato como testemunha ocular dos efeitos
imediatos do 11 de setembro (parado na pista do aeroporto JFK num jato
comercial que de repente não estava indo a lugar algum) até o fato de não
conseguir usar iPod porque fones de ouvido o lembravam de trabalho e de
estar no estúdio. Depois ele revelou as surpreendentes lacunas em seu
conhecimento sobre a história dos Beatles.
— Sou o pior analista do mundo quando o assunto sou eu — justificou de
modo brilhante. — Os fãs dos Beatles podem lhe dizer exatamente o que
estava acontecendo nos anos 1960 e eu meio que digo: “ah, sim, isso
mesmo”. Sei que Sgt. Pepper é de 1967. Isso eu sei.
Sob vários aspectos ele se mostrou tão afável, à vontade e disposto
quanto eu imaginava que pudesse ser. Quando cheguei, pareceu
instantaneamente simpático ao fato de o entrevistador do dia ser escocês
(claro, após ter cultivado uma relação de décadas com o país e seu povo), e
me levou à mesa de bufê do estúdio, com sua típica cordialidade, para que
eu experimentasse os legumes caramelizados. Ainda assim, sua cabeça
estava claramente em outro lugar, e um ar pesado de alguma coisa pairava
sobre ele.
Apenas quando mencionou brevemente a segunda esposa, Heather Mills,
dizendo seu primeiro nome quase num sussurro e admitindo que ela não
gostava muito de sua queda pelos ocasionais “baseados” (“Ela é totalmente
contra isso”), é que tive uma suspeita de que os rumores talvez fossem
verdadeiros e que o casal estivesse passando por problemas. No dia anterior,
um dos tabloides tinha publicado fotos de Paul passeando sozinho na
França durante uma folga. Dois dias depois de nossa conversa, seu assessor
de imprensa anunciou que o casal se separaria.
Já tendo bastante experiência nesta coisa de entrevista, tinha sido uma
espécie de falha de minha parte não ter percebido seu jeito meio distante
naquele dia, e agora estava claro o que o incomodava. Mas isso me deixou
determinado a tentar atrair toda a sua atenção, a perguntar e dizer coisas que
outros jornalistas talvez não ousassem, se e quando nos encontrássemos
novamente. Nos últimos anos, entrevistas impressas com Paul McCartney
tendiam a ser um pouco rígidas, com muitos jornalistas intimidados demais
– o que é inteiramente compreensível, já que eu mesmo senti um pouco de
nervosismo – para lhe perguntar algo além do banal, ou envolvê-lo em um
bate-papo animado, ou mesmo apenas tentar dar umas boas risadas com
ele.
Da próxima vez, pensei.
*
A próxima vez aconteceu 16 meses mais tarde, quando tive a
oportunidade de encontrá-lo em seu refúgio, dois andares acima da
recepção da Soho Square, nº 1, na sede da MPL, McCartney Productions
Limited. É a zona de conforto de Paul, o lugar que ele geralmente escolhe
para ser entrevistado – o recanto escuro, revestido de madeira, no estilo art
déco, é o centro de suas operações desde 1975. Nesse ambiente, logo
pareceu mais relaxado, mais focado, mais no controle, quase imperturbável,
mesmo quando se tratava de falar sobre uma das épocas mais difíceis de sua
vida.
Do lado de fora do escritório havia um clima agitado de negociações
sendo feitas por sua equipe, reuniões sendo marcadas e compromissos
sendo definidos. Não é coincidência, você sente, esse homem é um
multimilionário.
Lá dentro, McCartney, sentado num sofá, estava cercado por pinturas
originais de Willem de Kooning e iluminado por trás pela luz neon da sua
jukebox Wurlitzer, que continha os velhos discos de rock’n’roll de 45
rotações que eram seus textos sagrados quando adolescente. Enquanto
conversávamos, ele comia lentamente um sanduíche de queijo e picles, cuja
metade que sobrara ele me ofereceu repetidas vezes durante a entrevista.
Pareceu decepcionado com o fato de eu realmente não estar com vontade de
comer.
— Vamos lá — ofereceu-me pela terceira vez. Eu cedi e comi um
pedaço.
— Então este queijo é vegetariano, certo? — perguntei.
— É apenas queijo — disse ele, dando de ombros para sua fama de
ativista dos direitos dos animais e ignorando o fato de eu estar surpreso por
ele não defender queijos sem quimosina.
De perto, considerando a absoluta intensidade de seu passado, McCartney
tinha envelhecido muito bem. Apenas uma ruga em volta dos lábios e as
bochechas ligeiramente caídas denunciavam sua idade, com seus cabelos
mais bem pintados agora do que quando estava na casa dos 50 anos, em que
– sendo ele apenas um homem simples – se suspeitava de que pintasse os
cabelos sozinho. Seus olhos castanhos brilhavam com um tom esverdeado
sob determinada luz. Parecia em forma, mas reclamou de estar com uma
barriguinha.
— Você não tem barriga — eu disse.
— Estou encolhendo porque tem um jornalista aqui — ele sorriu. Suas
bochechas se avolumaram quando riu e os anos saíram de seu rosto,
trazendo de volta o Beatle espirituoso do passado.
A maioria das pessoas, com base nos filmes dos Beatles e nas incontáveis
entrevistas para a TV, tem alguma ideia de como Paul McCartney fala. Cara
a cara, contudo, seu tom é mais objetivo, mais scouse,2 sua fala pontuada
por palavrões adoravelmente proferidos.
Mas entrevistar McCartney é meio como garimpar ouro. Ele pode ser
escorregadio como um político, esquivando-se com habilidade de uma
pergunta e às vezes fazendo-o voltar a ela três vezes antes de realmente
respondê-la. Em outros momentos, começa a desviar para velhas histórias
sobre as quais você já ouviu ou leu dezenas de vezes. Nesses momentos,
você é obrigado a interrompê-lo para tentar guiá-lo cuidadosamente a um
terreno menos familiar.
Às vezes, principalmente quando divaga, você sente que ele está ficando
um pouco entediado, seja pela pergunta ou por sua resposta a ela, e ele diz
“que seja”, quase definitivamente, motivando-o a continuar. Outras vezes
você suspeita que isso é um habilidoso mecanismo de defesa quando ele
está achando a linha de questionamento intrusiva demais.
Como um entrevistado experiente, ele conhece bem a arte de falar
bastante revelando muito pouco. John Lennon certa vez elogiou com ironia
o ex-colega de banda por ser “um bom relações-públicas... praticamente o
melhor do mundo”. Há bastante verdade nisso e, em última análise, essa
característica o obriga a insistir para conseguir que McCartney revele mais
do que seu discurso ensaiado. Você sabe que está chegando a algum lugar
quando ele emite um suspiro quase exasperado e diz:
— Olha, para ser honesto.
Ao mesmo tempo, talvez por estar quase sempre cercado por reverência,
parece apreciar tiradas espirituosas e gostar de uma pequena provocação.
Claro, ele é um homem a quem poucos ousam dizer não, quanto mais
debochar levemente dele. Mas é evidente que ele adora voltar a ter contato
com o Macca3 mais áspero, ex-operário, e que nunca está distante demais.
Nessa ocasião, com um segundo encontro marcado para seis dias depois
no mesmo local, falaríamos sobre os anos 1970, uma época muitas vezes
tumultuada e incerta para McCartney. Durante nossa conversa, ele começou
a se abrir cada vez mais, falando com uma honestidade cuidadosamente
controlada sobre seus problemas no período: o choque emocional pelo qual
passou após o colapso dos Beatles; a impetuosa briga pública travada entre
ele e Lennon; a difamação perpetrada pela imprensa e por fãs contra Linda;
a controversa ditadura benigna do Wings, uma banda que parecia sofrer de
uma política de adesão confusa, na qual ninguém ficava por muito tempo.
— Não se pode nunca obrigar músicos a fazerem certas coisas — ressalta
ele —, mas você tem de sugerir com ênfase.
— Imagino que você seja bastante... persuasivo em suas discussões — eu
disse.
— Houve algumas discussões — admitiu ele.— Mas havia discussões
nos Beatles também. É desagradável. Mas no fundo é uma coisa boa.
— Foi difícil encontrar músicos que não se sentissem intimidados por
trabalhar com “Paul McCartney, ex-Beatle?” — perguntei.
— Não os culpo — respondeu ele friamente. — Eu fico intimidado
comigo mesmo, Tom. Sério, cara. Não estou brincando! — Houve uma
longa pausa. — Não, não, não, estou brincando — disse, sorrindo.
Em determinado momento toquei no assunto das várias revistas policiais
que ele havia sofrido como um entusiasmado usuário de maconha. Ele se
sentia vitimado pela polícia em algum sentido?
— Um pouco, sim — admitiu.
— Deve ter sido como se os policiais estivessem sentados, pensando
“Nosso dia está chato, caras, vamos incomodar o Macca” — falei.
— Bem, teve muito disso — ele riu.
— Eles encontraram plantas na sua casa na Escócia, pegaram você em
Los Angeles com um baseado no chão do carro — continuei.
— Isso mesmo — ele assentiu com a cabeça. — Isso foi plantado. A
coisa em Los Angeles foi plantada. Acontece que, por engano, passei por
um sinal vermelho porque pensei “Você pode fazer isso nos Estados
Unidos”. E pode. Geralmente pode virar à direita num sinal vermelho. Mas
esse tinha uma placa, “Proibido virar à direita”, e eu a ignorei.
— Porque estava chapado? — arrisquei.
Ele hesitou, até que seu rosto se transformou num sorriso largo.
— Devia estar.
No fim, percebi que ele não tinha olhado para o relógio nenhuma vez.
*
Cerca de uma semana depois, nos encontramos novamente. McCartney, à
porta, mexendo em um contrabaixo, me convidou para entrar no escritório
com um aceno de cabeça.
— Olha só meu novo baixo, cara — disse ele, os dedos subindo e
descendo com facilidade o braço do instrumento. Parecia cansado, os anos
se revelando em seu rosto. Era o fim de um longo dia.
Voltamos a nos acomodar em seu sofá, nas mesmas posições que
ocupamos uma semana antes. Ele obviamente tinha parado para pensar em
nossas conversas anteriores e parecia disposto a atenuar a imagem de
usuário de drogas leves, principalmente porque achava que os jornais se
apropriariam da história e a distorceriam fora de um contexto .
— Isso será usado pelos tabloides — disse. — Macca exposto. Não quero
passar por isso.
Argumentei que Paul McCartney numa nuvem de maconha não era
nenhuma revelação.
— Tudo tem mais força ultimamente, então não quero ser uma dessas
pessoas que defendem isso — rebateu. — Não quero dar aos garotos a ideia
de que “Bem, que ótimo, cara, vamos fazer isso”.
— Na verdade foram os Beatles que me fizeram experimentar drogas —
confessei.
— Está vendo, é isso — disse ele. — Mas hoje em dia há pessoas que não
conseguem lidar com isso, e não quero ser o responsável por nada.
Com determinação, e sendo gravado, ele afirmou ter parado
completamente de fumar maconha, em parte por causa da idade mais
avançada.
— Confunde um pouco as ideias — riu. — E é mais importante, neste
estágio da vida, estar sóbrio.
Ele disse que os amigos notaram que seu vocabulário melhorou depois
que parou de fumar maconha.
— Eles disseram: “Uau, suas escolhas de palavras realmente melhoraram.
Antes eu dizia “É tipo... sei lá... tipo... sei lá... bom”. E agora eu digo: “É
meio que excepcional”. Na verdade, você escolhe as palavras mais
adequadas, que eu conheço, mas nunca conseguia lembrar.
*
A opinião pública sobre Paul McCartney é praticamente gravada em
pedra, mas ele às vezes parece em total conflito com isso. Em um momento,
mencionei a imagem do “Fab44 Macca” como o irrepreensivelmente alegre
scouser,55 fazendo pose de valentão para as câmeras com os polegares
erguidos. Para minha surpresa, isso o fez perder a calma e despertou uma
explosão de raiva apenas parcialmente cômica.
— Fui repreendido pela opinião pública mundial sobre isso — disse ele,
começando a ficar irritado. — Você não vai mesmo me ver fazendo isso.
— Sério? — perguntei, sem acreditar totalmente.
— Bem, você me viu fazendo isso nos últimos dez anos? — rebateu.
Admiti que não.
— Porque estou o tempo todo sendo repreendido por pessoas dizendo:
“Você não deveria fazer isso”. É como na porra da escola! “Uma coisa que
você não deve fazer é apontar os malditos dedos para cima, seu imbecil!”
Muito do que acontece me faz lembrar da escola. E acho que minha atitude
é a mesma de sempre. “Sim, senhor”. E esperar que a autoridade saia da
sala e então dizer: “Foda-se!” Quer saber, é isso o que pensamos realmente.
Qualquer pessoa que ouse nos dizer que somos... escrotos... é um filho da
puta... Desculpe, não contive os palavrões. Você disse que eu era o louco
dos polegares para cima, entende?
— Ainda assim — argumentei —, é uma imagem pública bidimensional
um tanto conveniente para se ter, não é? Ela meio que esconde o cara que se
incomoda ou que fica com raiva ou que diz às pessoas o que elas devem
fazer.
McCartney pareceu temporariamente deconcertado.
— Ah, sabe de uma coisa... sei lá — disse ele. — Talvez seja. Como eu
disse, cara, realmente não sei. Parece natural para mim, entende? Não estou
sempre com aquele humor. Mas sou otimista e quero continuar otimista.
Foi em momentos assim que percebi que Paul não era tão autoconsciente
quanto era de se esperar. Pergunte como ele imagina que é sua imagem
pública, o louco Macca de lado, e ele vai parecer da mesma forma, e talvez
surpreendentemente, confuso.
— Ah... não sei, cara... não sei... não, não sei.
De muitas maneiras, parece que é essa falta de autoanálise que o impede
de ficar totalmente louco. Talvez, se pensasse demais sobre o fato de ser
“Paul McCartney”, ele não soubesse como agir.
Um de seus traços mais peculiares é que ele constantemente se refere aos
Beatles como “eles” (“eles eram a maior bandinha de rock do momento”), e
até a si mesmo em terceira pessoa (“Se alguém fosse tomar uma decisão”,