Table Of ContentUniversidade de Brasília – UnB
Instituto de Letras
Departamento de Teoria Literária e Literaturas – TEL
Programa de Pós-Graduação em Literatura
Doutorado em Literatura e Práticas Sociais
TESE DE DOUTORADO
OLHANDO SOBRE O MURO:
REPRESENTAÇÕES DE LOUCOS NA LITERATURA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva
Orientadora: Profª. Drª. Regina Dalcastagnè
Brasília-DF
Dezembro de 2008
Universidade de Brasília
Instituto de Letras
Departamento de Teoria Literária e Literaturas
Tese de Doutorado em Literatura e Práticas Sociais
OLHANDO SOBRE O MURO:
REPRESENTAÇÕES DE LOUCOS NA LITERATURA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva
Tese de Doutorado em Literatura e Práticas
Sociais, apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura do Departamento de
Teoria Literária e Literaturas, do Instituto de
Letras, da Universidade de Brasília, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Doutora em Literatura e Práticas Sociais.
Orientadora: Profª. Drª. Regina Dalcastagnè
Brasília-DF
Dezembro de 2008
TESE DE DOUTORADO
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof.ª Dr.ª Regina Dalcastagnè (TEL/IL/UnB)
(Presidente)
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Norma Abreu Telles (PUC-SP)
(Membro externo)
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Angela Maria de Oliveira Almeida (Instituto de Psicologia – UnB)
(Membro externo)
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cíntia Carla Moreira Schwantes (TEL/IL/UnB)
(Membro interno)
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Maria Teixeira Stevens (TEL/IL/UnB)
(Membro interno)
______________________________________________
Prof. Dr. João Vianney Cavalcanti Nuto (TEL/IL/UnB)
(Membro suplente)
RESUMO: O objetivo desta tese é contribuir com a reflexão acerca das formas de
representação de grupos marginalizados na literatura brasileira, especificamente no que se
refere aos indivíduos psiquicamente perturbados – referidos como loucos. Tomada como
objeto social, a loucura é construída por uma rede de discursos que circulam socialmente em
relação ao ser do louco e da especificidade da loucura. Se o fenômeno pode ser tratado sob
diferentes perspectivas, também o discurso literário, como fonte e espaço de representações,
contradições e tensões, pode expressar um saber sobre esse objeto, possibilitando uma
compreensão do louco enquanto alteridade, e mesmo como uma identidade social, considerado
sujeito da diferença. Partindo do estudo de obras ficcionais literárias relativamente recentes,
esta tese aponta a seguinte constatação: conforme o modo de representação da personagem
louca, o texto literário estaria operando uma visão emancipatória em relação a esse grupo
marginalizado, ou, por outro lado, reforçaria os estereótipos e os preconceitos existentes no
espaço social, ao passo que as auto-representações centram-se na linguagem e na escrita como
estratégias para revelação de novas identidades sociais. Mediante uma análise estrutural da
composição da personagem, examina-se o modo de representação na construção da identidade
e da alteridade, apontando elementos usados nos textos que configuram identidades
deterioradas pelo estigma de loucas. Este estudo contempla obras narrativas ficcionais da
literatura brasileira publicadas no período compreendido entre 1951 e 2001. Enquanto as
representações da alteridade são colhidas dos textos literários ―A doida‖ (1951), de Carlos
Drummond de Andrade; ―Sorôco, sua mãe, sua filha‖ (1962), de Guimarães Rosa; ―As voltas
do filho pródigo‖ (1970), de Autran Dourado; Armadilha para Lamartine (1976), de Carlos
Sussekind; O exército de um homem só, (1973), de Moacyr Scliar; e O grande mentecapto
(1979), de Fernando Sabino; as auto-representações são obtidas das obras Hospício é Deus
(1965), de Maura Lopes Cançado, e Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001), de
Stela do Patrocínio. Para fundamentar teoricamente a discussão sobre o problema, toma-se
como base a teoria da narrativa, com uma abordagem em que se cruzam pressupostos das
teorias da identidade e da Teoria das Representações Sociais com o pensamento filosófico de
Michel Foucault. No desenvolvimento da análise, considera-se ainda a contribuição das
pesquisas da antropologia social, de Erving Goffman, em diálogo com a visão política dos
estudos culturais, além de textos de antipsiquiatras, como Thomas Szasz e David Cooper, que
debatem o estatuto da loucura no mundo contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: literatura brasileira, grupos marginalizados, personagem,
representação, loucura, identidade, alteridade.
RÉSUMÉ: L‘objectif de cette thèse est de réfléchir sur les formes de représentation de groupes
marginalisés dans la littérature brésilienne, spécifiquement en ce qui concerne les personnes
psychiquement aliénées – considérées comme des fous. Prise comme objet social, la folie est
construite par un réseau de discours qui circulent socialement concernant l‘être du fou et de la
spécificité de la folie. Si le phénomène peut être traitée sous différentes perspectives, le
discours littéraire, source et espace de représentations, contradictions et tensions, peut lui aussi
exprimer un savoir sur cet objet, rendant possible une compréhension du fou en tant
qu‘altérité, et même comme une identité sociale, en tant que sujet de différence. En partant de
l‘étude d‘oeuvres de fiction littéraires relativement récents, cette thèse vérifie la suivante
hypothèse: selon le mode de représentation du personnage fou, le texte littéraire opérerait une
vision emancipatrice concernant ce groupe marginalisé, ou, par ailleurs, renforcerait les
stéréotypes et les préjugés existants dans l‘espace social, tandis que les auto-représentations se
centrent dans la langue et dans l‘écriture comme stratégies pour la manifestation de nouvelles
identités sociales. Moyennant une analyse structurelle de la composition du personnage, on
examine la forme des représentations dans la construction de l‘identité et de l‘alterité, indiquant
des éléments utilisés dans les textes qui configurent des identités détériorées par le préjugé
qu‘elles sont folles. Cette étude envisage des oeuvres narratives de fiction de la littérature
brésilienne publiées entre 1951 et 2001. Tandis que les représentations de altérité sont choisies
dans des textes littéraires ―A doida‖ (1951), de Carlos Drummond de Andrade; ―Sorôco, sua
mãe, sua filha‖ (1962), de Guimarães Rosa; ―As voltas do filho pródigo‖ (1970), de Autran
Dourado; Armadilha para Lamartine (1976), de Carlos Sussekind; O exército de um homem
só, (1973), de Moacyr Scliar; et O grande mentecapto (1979), de Fernando Sabino; les auto-
représentations sont choisies dans les oeuvres Hospício é Deus (1965), de Maura Lopes
Cançado, et Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001), de Stela do Patrocínio.
Pour fonder théoriquement le débat du problème, on choisit comme base la théorie du récit,
avec un abordage dans lequel se croisent des préssuposés des théories de l‘identité et de la
Théorie des Représentations Sociales et la pensée philosophique de Michel Foucault. Au cours
de l‘analyse, on considère encore la contribution des recherches de l‘anthropologie sociale,
d‘Erving Goffman, en dialogue avec la vision politique des études culturelles, et des textes
d‘antipsiquiatres, comme Thomas Szasz et David Cooper, qui discutent le statut de la folie
dans le monde contemporain.
MOTS-CLÉ: littérature brésilienne, groupes marginalisés, personnage, représentation, folie,
identité, altérité.
Àqueles que transpuseram o muro.
O intelectual [...] é aquele que, depois de saber
o que sabe, deve saber o que o seu saber
recalca. A escrita é muitas vezes a ocasião para
se articular uma lacuna do saber com o próprio
saber, é a atenção dada à palavra do Outro.
Silviano Santiago
Agradecimentos
À professora Regina Dalcastagnè, orientadora deste trabalho, pelo acompanhamento e
diretrizes em todas as suas etapas, pela dedicação, pelo encorajamento, pelo tempo dispensado
e pelo convívio acadêmico de tantos anos;
Aos professores Hermenegildo Bastos, Rogério Lima, Gilberto Figueiredo Martins e
Sylvia Cyntrão, por terem me proporcionado compartilhar de seus conhecimentos ao longo do
curso;
Às professoras Norma Abreu Telles, Angela Maria de Oliveira Almeida, Cíntia Carla
Moreira Schwantes, Cristina Maria Teixeira Stevens, Rita de Cassi Pereira dos Santos e
professor João Vianney Cavalcanti Nuto, por terem se disponibilizado a participar da banca
examinadora final;
Às professoras Denise Jodelet e Cíntia Schwantes, por suas valiosas opiniões e
sugestões ao participarem da banca de qualificação deste trabalho;
Às funcionárias do Departamento de Teoria Literária e Literaturas Dora e Jaqueline,
pela pronta disposição em facilitar os trâmites burocráticos da vida acadêmica;
A meus pais, Gércina e Lázaro, que, à distância, torcem pelo meu êxito; aos irmãos,
Geraldo, Gilberto, Jeremias e Gerson, pelo carinho de sempre;
A meus filhos, Guilherme e Sofia, por me darem tanto e exigirem tão pouco; ao neto
Caetano e à nora Natália, que chegaram ao meu coração para ficar;
Ao Guilherme, pelas décadas de amor, companheirismo, generosidade e pelo
compartilhar contínuo de todos os planos da vida;
Aos colegas da UnB, especialmente aos do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira
Contemporânea, por tudo que foi possível trocar e compartilhar, principalmente Susana,
Virgínia, Adelaide, Anderson e Liana;
Aos demais colegas de curso, muitos agora também amigos, presenças companheiras
em algum momento da caminhada, principalmente Ana Cristina Sá, Carlos Magno Gomes,
Donatella Natili, Josué Mendes, Leonardo Almeida, Lucie de Lannoy, Stella Montalvão,
Terezinha Goretti, que acabam participando do meu dia-a-dia, mesmo que à distância.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 6
CAPÍTULO I ....................................................................................................................... 25
Representações de loucuras grupais: do contato ao contágio ............................................ 25
―A doida‖: o contato que desequilibra ........................................................................... 26
―Sorôco, sua mãe, sua filha‖: o perigo do contágio ....................................................... 42
CAPÍTULO II ...................................................................................................................... 57
Representações de loucuras familiares: os filhos pródigos ................................................. 57
―As voltas do filho pródigo‖: o retorno dos surtos ........................................................ 60
Armadilha para Lamartine: em nome do filho .............................................................. 83
CAPÍTULO III .................................................................................................................. 109
Ideologias e representações: visionários da utopia ........................................................... 109
O exército de um homem só: o quixote de uma nova sociedade ................................... 112
O grande mentecapto: um pária da liberdade .............................................................. 134
CAPÍTULO IV .................................................................................................................. 156
Obras da loucura: auto-representações de identidades deterioradas ................................. 156
A auto-representação dos excluídos: a escritora louca ................................................. 159
O ―falatório‖: a palavra como resistência ou a linguagem marginal da loucura ............. 184
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 198
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 206
INTRODUÇÃO
E como seria possível aceitar sem reticências esses seres
estranhos, que escapam à compreensão e cujos
comportamentos não seguem os mesmos ritmos, não
têm a mesma previsibilidade?
Serge Moscovici
Assim como o nascimento, o amor e a morte, a loucura revela-se um tema grave
da existência e, por isso, também da criação artística, pois a arte busca na experiência humana
seus motivos de interesse. Ao representar os conflitos humanos, o escritor acaba apresentando
também a própria vida social, que é a matéria-prima da criação artística: os fenômenos da
existência em sociedade, da mesma forma que os modos como o autor dá sentido a eles,
constituem, dessa maneira, a substância do conteúdo e da forma literária.
Em razão das recorrentes associações da loucura a elemento de resistência, estado
de desregramento ou comportamento transgressivo, entre tantas outras, o louco é visto nos
horizontes sociais como uma excentricidade, uma aberração, um fora-de-lugar, cuja presença
na sociedade causa mal-estar e ameaça. No entanto, sua figura é artisticamente relevante
porque traz, em sua contralinguagem e contraconduta, o questionamento de leis e valores,
fazendo emergir crises, frustrações e alienações que ―embora pareçam existenciais ou relativas
ao caráter, remetem sempre a crises e a aporias na realidade sócio-histórica‖1.
Além disso, confrontada com o perigo da lucidez extrema e, às vezes, com ela se
confundindo, a loucura é um fenômeno que adquiriu, com o advento da valorização da
racionalidade moderna, grande força como motivo artístico e possui toda uma simbologia
própria. Alcançou, entre outras, a condição de metáfora ou estratégia de denúncia social e
ideológica. Por sua complexidade semântica, pela impossibilidade de se fixar um sentido
objetivo e uma interpretação consensual para o fenômeno da loucura e por sua
inesgotabilidade intrínseca, o conceito de louco torna-se maleável, manipulável e o próprio
debate sobre o que é ser louco e o estatuto da loucura está sempre aberto à investigação.
Nesse sentido, a forma como o escritor lida discursivamente com a alteridade do
louco e o fenômeno da loucura dão a ver como a sociedade representada se comporta em
1 Barbéris, ―A sociocrítica‖, p. 167.
Description:narrativas cujas personagens representam homens visionários e defensores Imaginar que fez os ‗paninhos' de crochet para mim, pensando.