Table Of ContentPara Rebecca
Tudo é único, nada acontece mais de uma vez na vida. O prazer físico que uma certa mulher
lhe deu num dado momento, o prato extraordinário que você comeu certo dia — nunca mais
você irá encontrar nenhum dos dois. Nada se repete, e tudo é sem paralelo.
Irmãos Goncourt ... e o luar em meio às árvores, e até este momento e eu próprio.
Nietzsche
Sumário
Deriva horizontal
Miss Camboja
A margem infinita
Skunk
Ioga para quem não está nem aí
Declínio e queda
O desespero da art déco
Hotel Esquecimento
Leptis Magna
A chuva interior
A Zona
Notas do autor
Notas do tradutor
Há vários anos fiquei intrigado com alguns versos de Auden — na verdade,
fiquei intrigado com muitos versos de Auden, mas os que me ocorrem são os de
“Detective Story” (1936), onde ele diz:
home, the centre where the three or four things
That happen to a man do happen.*
Acho que tenho um problema de enquadrar em minha cabeça essa idéia de
casa porque não consigo reduzir o número de coisas que me aconteceram a “três
ou quatro” — ou pelo menos ainda não. Pode ser que Auden tenha razão, mas
por enquanto muitas coisas me aconteceram, e em muitos lugares diferentes.
Minha “casa”, pelo contrário, é o lugar onde menos me aconteceu. Na verdade,
nos últimos doze anos, mais ou menos, a idéia de “casa” sempre me transmitiu
uma sensação periférica e, em decorrência disso, mais que um pouco indistinta.
Ou talvez, como Steinbeck, “eu tenha casas em toda parte”, muitas das quais
“ainda nem conheço. Talvez seja por isso que sou inquieto. Ainda não conheci
todas as minhas casas”.
O poema de Auden começa com a pergunta “Who is ever quite without his
landscape...?” [algo como “Quem jamais se livra da sua paisagem...?”]. Ainda na
primeira estrofe ele indaga: “Who cannot draw the map of his life...?” [“Quem não
pode desenhar o mapa de sua própria vida...?]. Eu não (ou pelo menos, ainda
não). Este livro é um mapa rasgado e nada confiável de algumas das paisagens
que formam certa fase da minha vida. Fala de lugares onde coisas aconteceram
ou não aconteceram, lugares onde fiquei e coisas que ficaram comigo, lugares
que eu queria ver ou lugares pelos quais passei ou onde simplesmente fui parar.
De certo modo, são todos o mesmo lugar — a mesma paisagem —, porque a
pessoa com quem essas coisas aconteceram era a mesma, que por sua vez é a
soma de todas as coisas que aconteceram ou não nesses e em outros lugares.
Tudo neste livro realmente aconteceu, mas algumas das coisas que aconteceram
só aconteceram na minha cabeça: da mesma forma, todas as coisas que não
aconteceram também não aconteceram lá.
* A casa, o centro onde as três ou quatro coisas que acontecem a um homem acontecem.
Deriva horizontal
Em 1991 vivi algum tempo em Nova Orleans, num apartamento na Esplanade,
logo depois do Bairro Francês, onde de tempos em tempos turistas ingleses são
assassinados por se recusarem a entregar suas câmeras de vídeo aos assaltantes
enlouquecidos pelo crack que moram ali perto. Eu nunca tive problemas — mas
também nunca possuí uma câmera de vídeo —, embora andasse por toda a
cidade a qualquer hora.
Tinha decidido voltar a Nova Orleans depois que uma namorada e eu
passamos por lá durante uma viagem de Nova York para Los Angeles. Estávamos
indo devolver um carro, e embora geralmente você só possa percorrer algumas
centenas de quilômetros a mais do que o necessário para cruzar o país de costa a
costa em linha reta, a quilometragem original do nosso carro não tinha sido
anotada, de maneira que atravessamos o país em ziguezague, ultrapassando a
distância normal por vários milhares de milhas e ficando totalmente extenuados
no processo. Nesse itinerário frenético, só passamos uma noite em Nova Orleans,
mas o lugar — e me refiro muito mais ao Bairro Francês do que à cidade — me
pareceu o mais perfeito do mundo, e jurei que voltaria no momento em que
tivesse tempo sobrando. Eu sempre fazia esses juramentos sem jamais cumpri-
los, mas nessa ocasião, um ano depois de ter estado lá pela primeira vez, voltei a
Nova Orleans para passar três meses.
Fiquei as primeiras noites na rue Royal Inn, enquanto procurava um
apartamento para alugar. Esperava encontrar alguma coisa em pleno Bairro
Francês, um sobrado com sacadas de ferro, cadeiras de balanço na varanda e
sinos do vento, dando para outras casas com cadeiras de balanço e varandas, mas
acabei na perigosa periferia do Bairro Francês, numa casa com uma varandinha
minúscula que dava para um terreno baldio que fervilhava de ameaças
inespecíficas sempre que eu chegava a pé em casa à noite.
As únicas pessoas que eu conhecia em Nova Orleans eram James e Ian, um
casal gay de cinqüenta e tantos anos, amigos de um conhecido de uma mulher
que eu encontrei em Londres. Os dois eram extremamente hospitaleiros, mas
como eram muito mais velhos do que eu, tinham ambos AIDS e gostavam de uma
vida sossegada, logo me instalei numa rotina de trabalho e solidão. Nos filmes,
sempre que um homem se muda para uma cidade nova — mesmo depois de ter
cumprido uma longa sentença por ter assassinado a esposa —, em pouco tempo
ele já conhece uma mulher na caixa do supermercado ou na lanchonete onde ele
toma seu primeiro café-da-manhã. Passei boa parte da vida, entre meus trinta e
quarenta anos, mudando para cidades novas, cidades onde eu não conhecia
ninguém, mas jamais encontrei mulher nenhuma no supermercado ou no
Croissant d’Or, onde tomei café na minha primeira manhã em Nova Orleans. E
embora eu não tenha encontrado mulher nenhuma no adequadamente batizado
Croissant d’Or, continuei tomando café ali todo dia, porque eles serviam os
melhores croissants de amêndoas que eu já tinha comido e jamais comi desde
então. Alguns dias chovia o dia inteiro, a chuva mais grossa que eu já tinha visto
(depois de lá, vi pior), mas por mais forte que chovesse eu nunca deixava de
tomar café-da-manhã no Croissant d’Or, em parte por causa da excelência dos
croissants e do café, mas principalmente porque tomar café lá tornou-se parte do
ritmo costumeiro dos meus dias.
À noite, eu freqüentava o bar do outro lado da rua, o Port of Call, onde
tentava sem sucesso travar conversa com a garçonete enquanto assistia à Guerra
do Golfo pela CNN. Na noite dos primeiros ataques aéreos a Bagdá, todo o bar
fervia de nervosismo e expectativa. Fitas amarelas foram atadas a várias árvores
da Esplanade, que eu subia todo dia rumo ao Croissant d’Or, onde, enquanto
comia meus croissants de amêndoas, gostava de ler as últimas notícias do Golfo,
fosse no New York Times ou no jornal local, cujo nome — Louisiana alguma
coisa? — esqueci. Depois do café, eu voltava para casa a pé e trabalhava o quanto
podia, e então ia passear pelo Bairro Francês, aparentemente conduzido pelo som
dos sinos de vento que pendiam da porta de quase todas as casas. Era janeiro,
mas o clima estava ameno, e muitas vezes eu me sentava à margem do Mississipi