Table Of ContentFriedrich Nietzsche
Coleção ESTÉTI (AS
direção: Roberto Machado
Kallias ou Sobre a Beleza
Ftiedrich Schiller
Ensaio sobre o Trágico
Peter Szondi
Introdução à
Nietzsche e a Polêmica sobre
"O Nascimento da Tragédia" Tragédia de Sófocles
Roberto Machado (org.)
O Nascimento do Trágico
Robetto Machado
Apresentação à edição brasileira,
Introdução àTragédia de Sófocles tradução do alemão e notas:
Friedrich Nietzsche
ERNANI CHAVES
Depto. de Filosofia
da Universidade Federal doPará
,
..;.
d
.j,
Jorge ZAHAR Editor
Rio deJaneiro
'.
~.
SUMÁRIO
\.
Copyright desta edição © 2006: Apresentação à edição brasileira,
Jorge Zahar Editor Lrda,
por Ernani Chaves , . .. .. . . ... . .. 7
rua México 31 sobreloja
20031-144 Rio deJaneiro, RJ
rel.: (21) 2108-0808/ fax: (21) 2108-0800
e-mail: [email protected] Introdução à tragédia de S6fodes
sire:www.zahar.corn.br
Introdução _. . .. 37
Todos os direitos reservados.
A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo §1. A tragédia antiga e a moderna
ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) por meio da consideração de sua origem. . . .. 44
§2. A música na tragédia (o ditirambo) . . . . . . . .. 52
Composição: Victoria Rabello
Capa: Miriam Lerner §3. O público da tragédia _. . .. 56
Ilustração da capa: Édipo eaEsfinge, Jean-Augusre Dominique Ingres, 1808
§4. A estrutura do drama. 60 ..
§5. O coro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
§6. O tema da tragédia antiga. . . . . . 71
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
§7. Imitações da tragédia antiga.
Nierzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900
N581i Introdução à tragédia de Sófocles / Friedrich Nietzsche; apresentação à Atragédia antiga e a ópera . . . . . . . . . . .. 75
edição brasileira, tradução do alemão enotas Ernani Chaves. - Rio deJaneiro:
Jorge Zahar Ed., 2006 §8.A importância dos três poetas trágicos
(Estéticas)
na Antigüidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
Tradução de: Einleitung in dieTragõdie des Sophocles §9. Sófocles e Ésquilo . _. . . . .. 83
ISBN 85-7110-955-9
§10. Sófocles e Eurfpides 90
1.Sófocles, 496 ou 494-406 a.C. 2.OTrágico. 3.Tragédia. 4.Teatro grego
(Tragédia) - História ecrítica. I.Título.
CDO 882
06-3401 COU 821.14'02-2
--------------------------------------------------------------------
APRESENTAÇÃO À EDiÇÃO BRASILEIRA
Nas origens do Nascimento da tragédia
Dentre os chamados trabalhos filológicos de Nietzs-
che, onde se inclui asua atividade como professor de
filologia clássica na Universidade da Basiléia, entre
1869e1879, essaspreleções intituladas "Contribuição
à história da tragédia grega. Introdução àtragédia de
Sófocles" e proferidas no semestre de verão de 1870
ocupam um lugar muito importante. Isto porque
J
constituem - ao lado das conferências "O drama mu-
sical grego" e"Sócrates ea tragédia" edo texto "Avi-
são dionisíaca do mundo" - todos da mesma época,
um dos exemplos mais importantes do modo como
Nietzsche vaiconstruindo seupensamento sobre atra-
gédia. Todos esses trabalhos testemunham a sua con-
frontação crítica com a tradição filológica na qual foi
formado, confrontação que as linhas finais de
"Hornero e a filologia clássica", sua aula inaugural
como professor na Basiléia,já anunciavam. Ali escre-
veu Nietzsche: "Também um filólogo pode condensar
ameta deseus esforços eocaminho que olevaaela,na
breve fórmula de uma profissão de fé;eassim o farei
eu, invertendo uma frase deSêneca:Philosophia Jacta est
1. "Zur Geschichte der griechischen Tragodie. Einleitung in die Tragodie des
Sophocles. 20 Vorlesungen", in Friu Bornman (org.), Nietzsche Werke. Kritische
Gesarntausgabe, fundada por Giorgio Colli und Mazino Montinari, continuada por
Wolfgang Müller-Lauter eKarl Pestalozzi, vol.3, seção 2, Berlim/Nova York, Walter
de Gruyter, 1993, p.7·S7.
7
P-41
8 Friedrich Nietzsche Introdução à tragédia de 5ófocles 9 •.. ''.~,.,.".",:,~,"',
~
quaefilologia fuit."2 Aculminância desse processo, que métodos e técnicas que se propunham a assegurar a
conjuga filosofia efilologia num outro patamar, ésem "verdade" do conhecimento aser alcançado, afastava- \
•
dúvida seu primeiro livro, Onascimento da tragédia. sedo idealdeBildung largamente fomentado em Pforta.
Entretanto, ébom dizer de antemão que Nietzs- Esses dois aspectos, muito mais que as divergên-
che não rompe com a filologia tout court, mas com o ciasacerca da cientificidade, justificariam avirulência
tipo de filologia dominante na universidade alemã e do ataque de Willamowitz-Móllendorf ao Nascimento
no mundo erudito da época.' Vinculada ao empreen- da tragédia: "Nietzsche defende uma filologia de artis-
dimento historicista - cuja crítica será o objeto da Se- ta,deescritor ede filósofo, que não apenas quer consi-
gunda consideração extemporânea -, afilologia, no seu afã derar os documentos escritos eas obras de arte como
documentos históricos, mas que procura restituir ali-
em contribuir para uma reconstrução "científica" do
teratura, aarte eopensamento antigos na sua presen-
passado, acaba por apagar o que para Nietzsche já era
çaviva,estimulante eatual.":'
1 fundamental: aligação entre o passado eo presente, a
Duas expressões deNietzsche, ambas retiradas de
certeza prévia enecessária de que investigar o passado
1 sua correspondência publicada, sintetizam sua visada
só sejustifica tendo em vista o presente do investiga-
1
crítica em relação àfilologia: em carta aPaul Deusseri,
,i dor. Além disso, afilologia acadêmica parecia-lhe des-
" de 4 de abril de 1867, ele afirma o desejo de "vestir ar-
! viar-se do ideal hurnanisra cultivado na Escola de
tisticamente" seu trabalho sobre Diógenes de Laércio;'
Pforta, onde elefizera sua formação fundamental. Esse
a Erwin Rohde, por sua vez, em 4 de agosto de 1871,
idealimplicava reconhecer nos estudos da tradição clás-
confirma a impressão do amigo acerca de sua confe-
sica uma espécie de farol que deveria iluminar asgera-
rência "Sócratese a tragédia", que Rohde chamara de
i ções futuras. Nas palavras da Segunda consideração
"obscuridade púrpura", expressão que Nietzsche mo-
extemporánea, o estudo dos clássicos precisa assegurar
bilizará contra apretensão declareza eobjetividade da
apermanente ligação entre conhecimento evida. Ora,
filologia universitária." Arribasasexpressões ganharam,
nesses dois pontos fundamentais - aligação entre pas-
por sua vez, uma espécie de síntese auant la lettre, em
.i, sado epresente, por um lado, eentre conhecimento e
i vida, por outro - a filologia acadêmica, em nome dos
4.Apud Jacques LeRider, Freud, del'AcropoleauSinâi.Leretour l'Antique desmodernes
à
viennois, Paris, PUF, 2002, p.80. Arespeito das críticas de Willamowitz, cf. Roberto
2. Carl Koch e Karl Schlechta (orgs.), Schriften der letzten Leipzigerund ersten Basler Machado (o'·g.), Nietzsche eapolêmicasobre "O nascimento datragédia", Rio deJanei-
Zeit(1868-1869), Munique, DTV, 1993, p.30S. ro, Jorge Zahar, 2005.
3. Lembremos que nesse momento a filologia era uma disciplina que englobava a 5. Sãmtliche Briefe. KritischeStudienausgabe, Berlirn/Nova York/Munique , Walter de
história, a arte, afilosofia ea literatura antigas, assim como a arqueologia. Épor Gruyter/D'Tv, 1986, vol.Z, p.205. Doravante citada como I<SB,seguido do núrne-
isso que, em se tratando da Antigüidade eda Idade Média, o filólogo será consi- ,'0do volume eda página.
derado como o "especialista" por excelência. 6.1<56,3, p.215·6.
!O Friedrich Nietzsche Introdução à tragédia de Sófocles II
uma carta aRohde, escrita entre ofinal dejaneiro e lS Não se trata, porém, apenas de colar, um ao lado
de fevereiro de 1870: a pretendida junção entre ciên- do outro, dois registros argumencativos, ofilológico e
cia,arte efilosofia significava poder, pelo menos uma ofilosófico, como seeles fossem equivalentes nas suas
única vez,"parir centauros''." pretensões eobjetivos. Mas de, reconhecendo suas es-
Nessa perspectiva, é importante reiterar que pecificidades, pouco arOuco construir uma espécie de
Nierzsche não abandona completamente suas raízes terceiro registro, de terceira possibilidade, qual seja, a
filo16gicas, mas estabelece com elas um permanence de uma reflexão filosófica que tomasse a seu serviço
diálogo e,ao mesmo tempo, uma confrontação. Devi- a filologia, naquilo que esta, segundo Nietzsche, teria
de melhor: aimplosão de todo equalquer significado
do a essas raízes, ele não poderia ignorar os inúmeros
transcendente, que pudesse enfim, servir como um re-
trabalhos publicados sobre o tema da tragédia antiga,
ference último, como verdade absoluta. Isto significa
embora, com freqüência, discorde deles.Não obstanre,
uma atenção paciente ecuidadosa às palavras, sua in-
nessas preleções Nierzsche os cita, parafraseia, trans-
serção no fluxo da história, que acaba por exigir um
crevetrechos inteiros de alguns, alude aoutros. Mobi-
outro tipo de leitor, igualmente paciente ecuidadoso.
liza, igualmente, seu grande conhecimento da litera-
Nietzsche marcava assim sua distância crítica em rela-
cura greco-romana, dos clássicos escudos biográficos
ção às duas grandes figuras de leitor que emergem no
acerca das "vidas ilustres" ou da "vida dos filósofos",
século XIX:o leitor de romances esua ernpatia com o
assim como das compilações de excertos, fragmentos
texto e o leitor do jornal diário, que se contenta em
eescólios, que constituíam, em grande parte, o"tesou-
estar "bem informado". Lembremos, apropósito, acé-
ro" que em.pouco tempo a filologia já havia acumula-
lebre passagem deEcce bomo, tantos anos depois, onde
do. Mas, apesar disso, já deveria causar bastante estra-
exigeser lido "como os bons filólogos de outrora liam
nheza entre seus ouvintes que a recente tradição
o seu Horácio.?"
filológica caminhasse junto, eàsvezesum passo atrás,
Deuma maneira muito geral, este éopano defun-
seja da filosofia, seja dos dramaturgos que, como
do do trabalho deNietzsche como professor de filolo-
.,, Goethe, Lessing e Schiller na Alemanha e Grillparzer gia na Basiléia, uma universidade ainda pequena, se
na Áustria, refletiram sobre suas práticas. Sem esque-
comparada aosgrandes centros universitários onde ele
cer que esses dramaturgos também se perguntaram,
estudara na Alemanha, seja em Bonn, seja em Leipzig?
tal como os filósofos ofarão apartir deSchelling, acer-
. !
cada natureza do trágico. Esseé,especialmente, ocaso
de Schiller, personagem importante nessas preleções.
8.Eecehomo, "Porque escrevo tão bons livros", 5, inKritische Studienausgabe, Berlim/
Nova York/Munique, Walter de Gruyter, vol.6, p.30S. Doravante citada como KSA,
seguido do número do volume e da página.
9. Cf. a respeito Hans Gutzwiller, "Friedrich Nietzsches Lehrtatickeit am Basler
7. Ibid., p.95. Padagogium (1869-1876)", in Beitragezu FriedriehNietzsche, Basiléia, Schwabe &
•
12 Friedrich Nietzsche Introdução à tragédia de Sófocles 13 .,.
(em 1870, ano dessas preleções, aUniversidade da Ba- interpelações";'! Ao mesmo tempo, diversos tipos de
siléia tinha um total de 116 alunos, distribuídos nas referência ao tema - conjecturas, pesquisas acerca de \.
suas quatro faculdades). Mas erauma universidade que determinadas palavras, interpolações em Ésquilo, Só- •
apostava no talento ecapacidade dosjovens, epor isso foeles e Eurípides, anotações específicas sobre peças
não éde espantar o fato de que Nietzsche, tão jovem de Ésquilo - aparecem nos inúmeros esboços que se
ainda, com apenas 24anos, tivessesido admitido como seguem a 1866. Élícito supor que todo esse interesse
professor. Nesse diapasão, as Vorlesungen, ao lado do decorre, em grande parte, das preleções de seu orien-
trabalho de pesquisa, constituíam um dos pontos al- tador Friedrich Ritschl no semestre deinverno de 1865/
tos do exercício do magistério superior no sistema edu- 1866, em Leipzig, acerca da "História da tragédia gre-
cacional "germânico", modelo que a Suíça de língua gaeuma introdução aos 'Sete contra Tebas', deÉsqui-
alemã seguia. Como o próprio nome indica, vorÚsen 10",que eleacompanhara como aluno." Apartir desse
significa ler em voz alta. No caso, em pé, na tribuna e momento, Nietzsche projeta escrever artigos com tí-
vestido acaráter, lerum texto previamente escrito, dian- tulos como "Sobre aculpa na estética daAntigüidade.
te dos alunos, que devem permanecer em silêncio e Tendência da tragédia", "Pessimismo naAntigüidade"
nada perguntar, nem durante e nem depois da prele- e"Tragédia e destino", ou ainda anota: "Aspalavras-
ção.Pode-se imaginar um certo desconforto deNietzs-
chave: 'desenvolvimento da tragédia' e'catarse"'. Não
che em seguir àrisca asregras da tradição universitária. se pode deixar de assinalar ainda que determinadas
O tema "tragédia" passou a ocupá-lo de maneira
questões etemas que essesprojetos anunciam são tam-
mais intensa a partir do outono de 1866. Em carta a
bém conseqüências desua leitura de Omundo como von-
Hermann Mushacke, escrita em novembro de 1866,ele
tade e representação, de Schopenhauer, no outono de
serefere ao projeto de uma palestra na Sociedade Filo-
1865, assim como de seu encontro com Wagner três
lógica deLeipzig, que nunca chegou aserealizar ecujo
anos depois, no outono de 1868.
tema seria a "teoria da interpolação nos poetas trági-
A aproximação de Nietzsche com Wagner se in-
cos gregos", isto é, uma teoria acerca da inserção deli-
tensifica, facilitada em parte pela pequena distância
berada, numa cópia, de elementos estranhos ao origi-
entre Basiléia eTribschen, eaquestão da tragédia pas-
nal;" ao mesmo destinatário, um pouco depois, em 11
sa a ocupar cada vez mais o centro dos interesses co-
de janeiro de 1867, falava de uma "sistemática das
11. lbid., p.191.
Co. Ag, 2002; eCurt PaulJanz, "Friedrich Nietzsches akademische Lehrtatigkeit in
12. Vemos que Nietzsche praticamente copia seu mestre quanto ao título e, em
Basel(1869-1879)", Nietzsche-Studien, BerlimjNova York,Walter deGruyter, vol.3, 1974.
parte, quanto àintenção de sua Vorlesung. Adiferença está no fato de que oobjeto
10. KSB, 2, p.180. de Nietzsche éSófocles, enquanto o de Ritschl era Ésquilo.
Friedrich Nietzsche Introdução à tragédia de Sófocles 15
muns aos dois amigos. Nietzsche se aproveita de suas livro: "Sócrates eoinstinto". 13Um mês antes escrevera
atividades na Universidade para dedicar-se cada vez ao mesmo Rohde: "Tenho agora as melhores expecta-
mais ao estudo da tragédia. Isso era possível também tivas em relação aminha filologia: devo apenas deixar
pelo fato de que oseu contrato de professor previa que para trás muitas estações do ano. Passo apasso eestra-
uma parte da sua carga horária deveria ser utilizada nharnente tímido, aproximo-me de uma visão de con-
no padagogium. O Padagogium era o nível interme- junto da Antigüidade grega."l~ A Carl von Gersdorff,
diário entre os seis anos do zinásio e a universidade em carta de 7de novembro de 1870, comunica que "no
b ,
uma espécie de nível secundário ou médio, diríamos último verão" havia escrito um artigo sobre "a visão
hoje, e consistia, no seu todo, em três anos de curso, dionisíacado mundo"." No começo de 1870, proferiu
divididos semestralmente. Nietzsche dava aula nos úl- duas conferências no auditório do-Museu da Basiléia-
timos semestres do Padagogium, numa média de seis "O drama musical grego", em 18dejaneiro e"Sócrates
horas semanais, epassou também a utilizar essa ativi- e a tragédia", em 1 de fevereiro - com as quais essas
li
dade como uma espécie de preparação para os cursos preleções dialogam com freqüência.
que deveria ministrar na Universidade. Assim, por Mas o momento das preleções é também marca-
exemplo, as preleções sobre Sófocles foram antecipa- do pela tensão entre os deveres e as obrigações para
das, no Pãdagogium, pelo curso intitulado "Desenvol- com Ritschl epela profunda admiração por Wagner. A
vimento do drama grego", ministrado no semestre de este, por exemplo, ele escreve em 21 de maio de 1870:
verão de 1869. E no verão seguinte, enquanto na Uni- "Imerso na cinza névoa da filologia, posso parecer tam-
versidade aconteciam as preleções sobre Sófocles, no bém, temporariamente, um pouco afastado do senhor;
Padagogium Nietzsche lia, com seus alunos, "As mas isso não acontecerá jamais, meus pensamentos
bacantes", deEurípides. Alémdisso, tanto no Padagogium estão sempre asua volta."16 Logo em seguida escreve a
quanto na Universidade, eletratava da poesia lírica gre- Ritschl, no começo dejunho de 1870, para desculpar-
ga eda história da métrica grega. Em outras palavras, se pelo atraso, por excesso de trabalho, no envio dos
os centauros estavam sendo gerados. prometidos artigos a serem publicados nos Estudos da
Não épor acaso, portanto, que durante ~ período Sociedade Filológica deLeipzig: "Quem poderia prever, na
das preleções sobre Sófocles aparecem na correspon- época em que eu prometera, oquanto esse semestre de
dência de Nietzsche inúmeras referências aos outros
textos que hoje são considerados como "preparatórios"
ao Nascimento da tragédia, ou ainda referências explíci-
13.I<SB, 3, p.120.
tas aum livro sobre atragédia, que estava sendo proje-
14. Ibid., p.112.
tado. Assim por exemplo, na carta a Rohde, de 30 de 15. Ibid., p.155.
abril de 1870, Nietzsche anuncia o título de seu futuro 16. Ibid., p.122.
,'1
1'.i...',"•·.l 16 Friedrich Nietzsche Introdução à tragédia de Sófccles 17 • ~.
"I
)1
'I,
verão se tornaria pesado para rnim!'"? Nietzsche refe- creveu se baseiam na natureza imutável do homem e
i
I re-se ao fato de que havia substituído, às pressas, um numa razão sadia."18
professor no Pãdagogiurn eque, por isso,estava traba- Apartir deGottsched funda-se uma interpretação •
lhando 20 horas por semana. Próximo de Wagner, que será decisiva naqueles tempos: aPoética não seres-
mesmo quando imerso na "cinza névoa da filologia"; tringe ao que elacontém de reflexão teórica, mas cons-
cada vez mais distante de Ritschl, num momento em rirui um conjunto de regras que devem orientar aprá-
que O trabalho lhe pesa! tica do dramaturgo. A autoridade de Aristóteles,
cuidadosamente construída desde a redescoberta da
* Poética na Renascença italiana ede suas primeiras tra-
duçõespara olatim epara oitaliano, serviráaGottsched
No seuconjunto, aspreleções sobre Sófocles têm como para criticar sejaosque pretendem selivrar de todas as
fio condutor um tema muito recorrente na época, qual regras, seja os que querem deixar fluir, arbitrariamen-
seja, o da comparação entre a tragédia antiga ea mo- te, aimaginação." Em ambos os casos, diz ele,não há
derna, nos rastros da famosa Querelle des anciens et nenhuma "racionalidade". Asgerações posteriores até
modernes. Poderíamos acrescentar, inclusive, que esseé seposicionaram criticamente diante das "regras", mas
o traço que caracteriza, nesse momento, a reflexão de a autoridade de Aristóteles permaneceu inalterada."
Nietzsche sobre atragédia grega: apresentar aespecifi- Aesserespeito, Chrisrian Heinrich Schmid sepronun-
cidade dela diante da tragédia moderna. Tratava-se, em ciou de maneira significativa, em 1767;na sua Teoria
última instância, deapreciar opapel representado pela poética - ou seja,mais de 30 anos depois da publicação
autoridade de Aristóteles. A Poética, como sabemos, daobra deGottsched, oque pode valer,por conseguin-
transformou-se, desde aRenascença, numa espécie de te, como uma síntese da situação da época: "Aolongo
manual de regras e normas do bom dramaturgo. Na
Alemanha, Johann Christoph Gortsched, no Ensaio de
uma poética crítica, assinalou com clareza aquestão: "En-
18. versucheinerkritischenDichtkunst, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaf,
tre os gregos foiAristóteles, sem dúvida, o melhor crí- 1982, p.97. Esta edição é um fac-símile da 41edição, de 1751; a primeira edição
dessa obra éde 1730.
tico no que diz respeito à oratória e à poesia .... Ele
19. Os alemães utilizavam principalmente atradução latina da Poética, do filólogo
compreendeu, no mais fundamental, anatureza inter-
holandês Daniel Heinsius (1611), ou ainda a tradução de André Dacier (1692),
na da retórica eda poética etodas as regras que pres- publicada também em Amsterdã, com inúmeras "observações críticas" ao texto
de Aristóteles. A primeira tradução completa publicada na Alemanha será a de
Michael Conrad Curtius (1753). Cf a respeito a introdução de Michel Magnien a
Aristóteles, Poétique (Paris, LeLivre de Poche, s/d).
20. Cf. Peter-André Alr, TragodiederAufkliirung, Tübingen/Basiléia, Francke Verlag,
17. lbid., p.123. 1994, p.15.
18 Friedrich Nietzsche
Introdução à tragédia de Sófocles
do tempo Aristóteles foi a única fonte fidedigna das A confrontação com Aristóreles e seus epígonos
regras teatrais. Osprimeiros aperfeiçoamentos da mo-
aparece desde asprimeiras linhas daIntrodução àspre-
derna arte dramática aconteceram, justamente, segun-
leções sobre Sófocles. Ela se mostra, em especial, na
do seus princípios. Os gênios que surgiram depois es-
crítica deNietzsche àrelação entre culpa edestino pre-
tavam agrilhoados a essa regra de honestidade,
sente nos "dramas do destino", versão propriamente
enquanto os críticos de arte, desde então, apenas pen-
alemã da tragédia antiga. Nesses dramas, asnoções de
savam em mostrar, apartir desse modelo, como as re- i falta e punição assumem um papel oposto, segundo
gras aristotélicas haviam sido utilizadas.'?'
Nietzsche, ao representado na tragédia antiga. Nesta
Mas foiLessing, sem dúvida, quem sepronunciou
tratava-se deum ponto devista estético; naquela, sim-
de maneira mais peremptória a esserespeito, não por
plesmente um ponto devista moral ejurídico, susten-
acaso nas partes finais, conclusivas, de sua Dramatur-
tado na idéia de uma "justiça poética". Aparentada a
giade Hamburgo (1769).Segundo ele,qualquer que seja
um tribunal, a tragédia moderna faria do herói trági-
a avaliação de sua época acerca da tragédia, "ela não
co,na linhagem da crítica de Sêneca, um cristão arre-
pode sedistanciar nem um passo da norma aristotéli-
pendido de seus pecados.
ca sem que se distancie na mesma medida de sua per-
Entretanto, seNietzsche pode distinguir com cla-
feição."22Mesmo Schiller, após atrabalhosa conclusão
reza entre aobra deAristóteles eassuas sucessivas in-
de seu drama histórico Wlallenstein, reconheceu a im-
terpretações, que "moralizam" a tragédia e tornam a
portância da Poética. Em uma carta a Goethe, de 5 de
Poética menos uma reflexão e mais um manual pres-
maio de 1797, ele escreve: "Quase em nenhum lugar
critivo, ele segue, na sua interpretação, um caminho
ele[Aristóteles] parte deconceitos, mas sempre do fato
discordante deAristóteles. Esse caminho desemboca-
da arte, do poeta e da representação; e se seus julga-
rá no Nascimento da tragédia, onde podemos perceber
mentos, segundo osprincípios fundamentais, são ver-
uma teoria da tragédia antiaristotélica;" o livro re-
dadeiras leis da arte, então devemos agradecer a este
presentaria, no seu conjunto, "um projeto contrário à
acaso feliz, de que naquela época havia obras de arte
Poética.:" No limite, Onascimento da tragédia "apresen-
que realizaram. uma idéia através,do fato ou tornaram
representav'Ie seu ge'nero em um caso partlc.u Iar."'-3
24. Cf. Enrico Muller, '''Aesthetische Lust' und 'dionysische Weisheit'. Nietzsches
Deutung der griechischen Tragodie", Nietzsche-Studien, BerlimjNova York, Walter
de Gruyter, vot.31, 2002, p.137, nota 10.
21. Citado pOI'Perer-André Alt, Tragiidie der Aufkldrung, op.cit., p.16.
25. Cf. Bárbara von Reibnirz, "Vorn 'Sprachkunst' zur 'Leselireratur'. Nietzsches
22. G.E.Lessing,DramaturgiadeHamburgo, Partes 101-104, Stuttgart, Reclam, 1999, p.511.
Blick auf die griechische Literaturgeschichte ais Gegenentwurf zur aristotelische
23. Schiller, Schillers Werke: Nationalausgabe, vol.29: Briefwechsel: Schillers Brief
Poetik", in Tilman Borsche, Federico Gerratana und Aldo Venturelli (orgs.),
1.11.1796-31.10.1798. Organizado por Norbert Oellers e Frirhoj Swck, Weimar,
"Centauren-Ceburten ",Wissenschaft, Kunst und Philosophie beimjungen Nietzsche, Berlimj
Herman Bohlaus Nachfolger, 1977, p.72-S.
Nova York, Walter de Gruyrer, 1994, p.62.