Table Of Content100
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
INTERIORIDADE E EXPRESSIVIDADE: CRÍTICA
À LEITURA ADORNIANA DA ESTÉTICA DE
KIERKEGAARD
INWARDNESS AND EXPRESSIVENESS: CRITIQUE TO
ADORNO´S READING OF KIERKEGAARD´S
AESTHETIC
Jasson da Silva Martins
RESUMO
Com esse texto, pretendo fazer uma crítica às críticas de Adorno endereçadas à concepção
estética de Kierkegaard. A experiência musical é a melhor forma de compreender a
interioridade? A expressão da interioridade pode ser realizada de modo lógico ou apenas
metafórico, através de figuras arquetípicas? Para atingir tal propósito, apoiarei-me-ei no texto
intitulado Os estádios eróticos imediatos do Eros ou o erotismo musical, um texto
pseudonímico de Kierkegaard, consagrado à música e na Tese de Adorno, recentemente
publicada no Brasil.
Palavras-chave: Interioridade; Estética; Música; Crítica.
ABSTRACT
With this text I intend to do a critique to Adorno´s critical of Kierkegaard´s concept of the
aesthetic. The musical experience is the best way to understand the interiority? The
expression of interiority can be accomplished logically or only through an archetypal figure
metaphorical? To achieve this purpose I will concentrate to the text entitled Os estádios
eróticos imediatos do Eros ou o erotismo musical, a Kierkegaard´s pseudonymous text
devoted to music and Adorno´s thesis recently published in Brazil.
Keywords: Interiority; Aesthetic; Music; Critical.
Professor Assistente A do DFCH da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Licenciado em
Filosofia pelo Centro Universitário La Salle (UNILASALLE). Mestre em filosofia pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente, como bolsista PROSUP/CAPAES, desenvolve pesquisa em nível de
Doutorado nessa mesma Universidade. Coordena a Coleção Pólemoi, da Editora Nova Harmonia. E-mail:
[email protected].
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
101
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
1. Introdução topologia existencial que ele construiu, para
não cair no canto de sereia da interpretação
adorniana. Meu propósito é mostrar que,
O leitor habituado aos textos de antes mesmo do projeto de “desconstrução”
Kierkegaard fica, geralmente, perturbado de Adorno, Kierkegaard já havia proposto
com a leitura da Tese de T. W. Adorno, uma estética devotada à sua própria ruína,
consagrada nos idos dos anos 1930, à uma estética desenvolvida enquanto meio
estética kierkegaardiana. Por que Adorno, para atingir a ética, uma estética ancilae
infiel às recomendações de Kierkegaard, sciencia.
não leva em consideração os autores
pseudonímicos na leitura da sua obra? 2. Em busca de uma unidade
Como Adorno, que jamais definiu seus
conceitos, lê um autor extremamente Na primeira parte de Enten-Eller (A
lógico, um escritor extremamente musical, alternativa), publicado em 1843,
que se apóia sobre a existência, para Kierkegaard não caracteriza a estética como
elaborar uma obra que tem como objetivo o a ciência do belo (Baumgarten) ou a ciência
religioso? Enfim, por que o filósofo da dos princípios a priori da sensibilidade
Escola de Frankfurt, que estima que a obra (Kant), nem como o discurso sobre as belas
do pensador danês fornece todos os artes (Hegel). A estética kierkegaardiana é
materiais para uma crítica social, situa-o no apresentada, desenvolvida e definida como
contexto do idealismo alemão apenas para uma forma de existência. Para ele a estética
destruir a sua argumentação? não é, inicialmente, um saber ou uma
Com este texto, desejo atingir dois ciência, mas um modo de existência, um
objetivos: de um lado, após recolocar a modo de ser no mundo, imediatamente,
estética de Kierkegaard em seu contexto, determinado como desejo e imaginação e,
pretendo compreender as críticas de Adorno por isso, não fornece unidade do eu.
endereçadas à sua concepção de estética e, Kierkegaard se afasta, portanto, de toda a
do outro, levantar a questão das relações história da estética tradicionalmente
que mantém a música e a linguagem. A concebida. Estética, nesse sentido, é a
experiência musical é a melhor forma de ciência da imediatidade, o seu lugar só pode
compreender a essência da linguagem? Esta ser a existência: é estética “[...] aquilo para
questão precisa ser colocada não apenas o qual se é imediatamente aquilo que se é”
porque este tema une os dois autores, mas (KIERKEGAARD, 1970b, p. 162).
também porque ela está na base da recepção Marcado pela escola romântica,
adorniana de Kierkegaard. Para atingir tal Kierkegaard compreende a estética como
propósito, buscarei argumentos no texto uma esfera na qual a existência humana está
intitulado Os estádios eróticos imediatos do devotada a um ideal de sensação, de amor
Eros ou o erotismo musical, um texto sensual e trágico. O indivíduo, enquanto
pseudonímico de Kierkegaard, consagrado esteta, contenta-se com o presente e procura
à música e na Tese de Adorno, sua satisfação, instantaneamente, no prazer.
recentemente publicada no Brasil. Nesse sentido, em boa medida, essa
Não pretendo explicar a teoria concepção estética está muito próxima ao
estética dos autores, nem explicitar a crítica hedonismo defendido por Epicuro. Assim, a
adorniana da modernidade, mas apreender, existência estética reside na exterioridade:
através desses dois autores, as relações ela não passa de uma realização da
entre música, linguagem e existência. Para satisfação imediata. Eis aí porque a estética
tanto, delimitarei a esfera estética fixa o indivíduo na imediatidade e na
kierkegaardiana a partir de suas próprias procura do prazer sensual/sensorial, sem
características, situando-a no interior da que essa imediatidade transborde em
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
102
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
costume/hábito (base da ética kantiana, por A estética é compreendida por
exemplo). Kierkegaard como a esfera do possível, do
Assim delimitada, a estética se sonho e da imaginação. Nela, a distância
caracteriza pela multiplicidade e pela entre arte e a vida é suprimida: seu defensor
descontinuidade. Ela é múltipla, dado que é incapaz de sair do universo dos possíveis
ela se expressa de modo diverso – em que ele propriamente constrói. Assim, a
Kierkegaard – através de vários estética caracteriza e torna-se personalidade
pseudônimos: das figuras lendárias e dos estética onde, submissa à imaginação,
diversos textos em diversas atmosferas. Ela carece e clama por uma existência, para
é múltipla, visto que a sua exposição dever manter-se como paixão de existir. Por isso,
ser adequada à ideia que ela representa1, ela recusa a decisão (escolha) e o salto para
sem a preocupação com a unidade a esfera ética, à medida que ela recusa o
conceitual. Para Kierkegaard, a estética não dever que comanda o tornar-se si mesmo
oferece nenhuma influência sobre o real, histórico concreto e busca o instantâneo, o
bem como não aceita nenhum princípio transitório. Assim compreendida enquanto
diretor e encontra no elemento sensorial sua modo de existir, a estética fica abandonada
correta atmosfera, que é o seu único ponto à fantasia. O plano da imaginação não é,
de contato com o real. Na história das portanto, o plano do “pathos da existência”,
ideias, sobretudo no século XIX, os autores mas sim o lugar do pensamento, da “paixão
reinterpretarão esse lugar da estética, da e pela possibilidade” (Mulighedens
enquanto a Stemning que expressa a Lidenskab) onde tudo muda, mas tudo
atmosfera da vida como um todo e não permanece fictício.
apenas a vida estética2. Que a estética seja fictícia, não a
impede de naufragar no paradoxo. Se ela
1 Alvaro Valls, seguindo Vergote, defende a tese de repousa sobre as sensações e as stemninger
que Kierkegaard gosta de personificar ideias- (estados d’almas), aquele que se abandona a
problemas. Resta saber se essa tese vale apenas para
ela tenta, desesperadamente, preencher uma
as questões que dizem respeito à imediatidade, ou
necessidade ideal. Aquilo que o poeta
seja, aos escritos estéticos de Kierkegaard, ou se é
procura, não reside nele. Está fora, no
aplicável à obra como um todo. Acaso, esse contexto
da personificação – originalmente ligada à estética – exterior dele: do mesmo modo, o esteta, na
não trará prejuízo para as ideias-problemas de condição de especialista do imediato, vê-se
caráter filosófico-teólogicos? Aqui não há espaço, condenado à contradição consigo mesmo,
mas essa consideração precisa ser levada em conta,
visto que procura, na realidade, uma
quando essa personificação trata da existência fora
idealidade que não existe, ao procurar na
do campo da estética. Essa formalização, proposta
por Vergote, carece de uma crítica mais aguda. (Cf. idealidade uma realidade que o contradiz.
VERGOTE, 1982, p. 270-76, v. 2). Resultado: o poeta acaba recusando a
2 Comumente, o termo dinamarquês Stemning é
traduzido por “tonalidade afetiva”, dado a
proximidade que esse termo guarda com o termo instantaneidade da propagação do som, após o
alemão Stimmung. Ambos os termos evocam uma acorde. Impossível não notar que essas
significação sonora, pois Stimme quer dizer “voz”, características foram levadas a sério por Heidegger.
mas também uma significação sensível, que sintetiza Em Ser e tempo, implicitamente, a Stimmung é
o “estado d’alma”, o “humor”: uma disposição tonalidade que desempenha um papel capital,
afetiva que exige uma existência faticamente enquanto método prévio a toda compreensão
situada. Em Kierkegaard encontram-se, aos menos, fenomenológica. Em outras obras, explicitamente,
três características: a. não requer uma consciência esse termo perpassa toda a interpretação e está na
reflexiva, ou melhor, precede a toda e qualquer base da hermenêutica da facticidade: veja-se
reflexão sobre o ato de existir; b. requer uma Fenomenologia da vida religiosa (1920/21),
concepção grega de temporalidade, na qual o sobretudo o texto “Agostinho e o neoplatonismo;
instante não tem lugar no tempo (veja-se o tó átopon Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles
em Platão, Parmênides, 156d) e; c. caracteriza-se [Informe Natorp] de (1922) e Ontologia:
pelo gozo contínuo do instantâneo, tal como a hermenêutica da facticidade (1923).
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
103
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
realidade, negando sua própria existência suspeita epistemológica ganha força quando
finita e abraçando a idealidade, construída observo que os intérpretes que veem em
ficticiamente. O paradoxo do modo estético Kierkegaard um pensador ético, fatalmente
da existência é, assim, estabelecido sobre a compreendem a sua estética como momento
utopia que consiste em procurar a que precede a ética. Consequências: tais
idealidade pura para admirar, esquecendo- interpretações acabam por reificar a ética
se da existência, quer dizer, esquecendo do cristã (paulino-luterana), reforçando ainda
outro modo de existência, a vida ética, mais o fosso entre ética e estética, à medida
vivida no tempo como um contínuo e que a estética não entra nos cânones das
guiada pelo dever moral e pelo exigências de uma ética que exige a
compromisso. Essa compreensão da estética unidade racional, onde os sentimentos e
kierkegaardiana, em minha opinião, é apetites são desprezados.
completamente desconsiderada por Adorno.
Condicionada pelas stemninger, a 3. O despertar da reflexão
estética obriga o indivíduo a viver na
dispersão. A carência de unidade do eu é o Contrariamente ao que pensa
resultado de uma vida paradoxal, devotada Adorno, o pensamento de Kierkegaard
à idealidade. Por isso, o modo de vida desenvolve toda uma pluralidade de temas e
estético não pode ser uma esfera autônoma, estilos argumentativos para atingir uma
ele precisa e até mesmo exige que a ética única finalidade: a unidade do Self. Diante
intervenha para dar-lhe sentido, unidade e disso, a ética deve ser convocada para
coerência. Em certa medida, é possível substituir a estética. No entanto, como essa
afirmar que, em Kierkegaard, a reflexão exigência que requer a ultrapassagem da
ética surge após o esgotamento da reflexão estética desdobra-se na procura da unidade
estética, quando esta não consegue formar do eu? A estética kierkegaardiana, como
uma unidade no tempo, a partir da disse, é um meio, uma propedêutica. O seu
multiplicidade do instante3. No meu modo principal objetivo é despertar a reflexão.
de entender, existe uma antinomia na raiz Pelo prisma da reflexão, a dinâmica da
da estética kierkegaardiana, à medida que estética que opera na simplicidade ainda
ela está assentada sob a fenomenologia de não reflete a exigência que recai sobre ela
um modo determinado da existência: a mesma, ou seja, a exigência da escolha, a
existência estética. O resultado é previsível: exigência da ética. Esse progresso interno
a estética é devotada ao fracasso. da estética, através dos temas e das grandes
Ocorre-me pensar que o caráter figuras lendárias, pode ser encontrado na
moderno do pensamento de Kierkegaard primeira parte da obra A alternativa, onde o
deve ser buscado em outro campo, longe da leitor se depara com os Diapsalmatas, quer
estética, à medida que essa não é uma dizer, uma sequência de aforismos sem
disciplina autônoma que adota por tema o nenhuma organização que traduzem os
sensível (Cf. BAUMGARTEN, 1988, p. estados d’almas (stemninger) diversos, de
121). Essa antinomia foi muito bem notada um indivíduo que vive esteticamente4.
por Adorno e, segundo ele, é ela que Esses escritos fragmentários e
confere ao pensamento de Kierkegaard uma desorganizados são seguidos por Os
característica de modernidade. Essa minha estádios imediatos do éros ou o éros e a
3 Opondo-se à estética, a ética se apresenta como
uma crítica ao romantismo que, em última análise, é 4 Alguns desses aforismos, 22 de um total de 90,
a crítica do sentimento sobre as escolhas e o modo foram traduzidos por Alvaro Valls e publicados sob
de vida baseado na idealidade. Essa temática é um título-aforístico, acompanhados de uma
desenvolvida por Kierkegaard em uma série de esclarecedora introdução (Cf. VALLS, 2004, p. 15-
Discursos, reunidos sobre o título As obras do amor. 28).
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
104
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
música [De umiddelbare erotisme Stadier Johannes, o sedutor. Este encarna o limite
Eller det Musicalsk-Erotiske] onde o autor de toda a sedução e, por fim, o limite do
introduz o amor, mas sem que a modo de vida estético existencialmente
imediatidade seja reconhecida pelo vivido. Por isso, Johannes é o caso-limite,
espírito5. O texto seguinte traz à cena a personificação da estética kierkegaardiana,
figura mítica de Don Juan que, guiado pela à medida que ele é o mais cruel inimigo da
potência do desejo, encarna o sedutor das inocência, o mais temível inimigo dos
1003 conquistas só na Espanha6. sentidos e inimigo mortal da imediatidade.
Porém, e isso é decisivo para a Johannes é paradigmático porque ele é um
compreensão da crítica de Adorno, se Don sedutor reflexivo e está situado na fronteira
Juan aparece como uma figura musical para da estética e da ética. Johannes decreta a
Kierkegaard, é porque a música encarna o insuficiência da estética, por seu excesso de
medium estético ideal. Diferentemente da reflexão, mas não consegue passar à ética,
linguagem, o fenômeno musical surge dos porque carece da realidade. Indo além de
sentidos. Fausto, enquanto espírito, Fausto, o sedutor se separa da imediatidade,
persegue, na estética kierkegaardiana, a através da reflexão, sem sair da
trajetória de Don Juan. Em Fausto, o imediatidade, e acaba reduzido a um mundo
espírito (a linguagem) entra na estética e fictício: Johannes torna-se vítima da
fracassa: a visão de um saber absoluto não idealidade por ele aspirada, tornando-se um
conduz à felicidade, mas à desgraça, ao ventríloquo, um pseudo Self, pois vazio e
desespero. Do ponto de vista da sedução, o sem unidade. Isso ocorre porque ele deseja
progresso da estética torna-se claro. Se Don viver um outro modo de vida, viver numa
Juan é o sedutor dos sentidos, Fausto seduz esfera superior a esfera estética, mas não
pela palavra, portanto, de maneira reflexiva, renuncia à realidade imediata.
de maneira imediata. Se Don Juan é uma A reflexão, todavia, não é apanágio
ideia musical e dispersa na continuidade exclusivo da estética, à medida que ela se
temporal, Fausto encarna uma ideia encontra, em Kierkegaard, em uma
histórica, a ponto de cada época possuir seu topologia existencial tripartite: estética,
Fausto. Assim, a reflexão irrompe, no ética e religiosa. A reflexão age de maneira
interior do pensamento kierkegaardiano, diferente nas três esferas. A progressão da
com toda a força para destruir a estética diz respeito, detenho-me na figura
sensibilidade, para reduzi-la ao musical de Don Juan, à questão mais geral
aniquilamento. Resultado: o próprio autor do fenômeno musical. Essa constatação a
danês faz uma desconstrução da estética, respeito da figura musical de Don Juan,
antes da desconstrução adorniana. enquanto medium mais importante para a
Nessa mesma obra, logo após o compreensão da estética kierkegaardiana, é
aparecimento de Fausto, entra em cena a tonalidade afetiva requerida para a
compreensão da sua estética. Tal
5 Reconhecimento pelo espírito é quando o tema compreensão conduz, naturalmente, a uma
passa pelo crivo da razão ou é objeto de detida posição crítica frente à interpretação de
reflexão teórica, ou seja, a reflexão sobre a Adorno. Ao redigir A alternativa,
existência ou sobre temas ligados à existência. Nesse Kierkegaard desenvolve uma interpretação
caso, obediente à economia interna do seu próprio
elogiosa do Don Giovanni de Mozart.
pensamento, Kierkegaard introduz o tema do amor
Desde o outono de 1835, Kierkegaard está
esteticamente. Esse tema será objeto de reflexão e
discussão, no campo da ética, alguns anos depois, impressionado com Mozart: para ele, as três
em As obras do amor. óperas, As bodas de Fígaro, A flauta
6 Segundo os cálculos do psicanalista Renato Mezan,
mágica e Don Giovanni, ilustram os três
Don Juan derrubou 2.065 corações de todas as
níveis da imediatidade estética. A análise
idades e classes sociais (Cf. MEZAN, 1988, p. 83-
elogiosa e apaixonada realizada por
113).
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
105
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
Kierkegaard não é uma análise de músico Para delimitar, filosoficamente, as
ou de um professor de estética, é uma diferenças entre essas duas experiências é
análise ex-cátedra, de um escritor marginal, preciso, inicialmente, admitir que a
de uma maneira magistral, 53 anos depois primeira diferença encontra-se no modo de
da ópera de Mozart. Esse escrito é único em expressão. A música e a filosofia, enquanto
seu gênero, tanto pela forma quanto pelo linguagem significante, não expressam a
conteúdo, como atesta Max Frisch7. realidade da mesma maneira e não possuem
Embora Kierkegaard não seja autor de uma a mesma idealidade. Trata-se da passagem
teoria estética, como Hegel ou Adorno, ele difícil da impressão em direção à expressão.
escreve sobre arte em geral e sobre a Nascida da interioridade, a música tocada
música, em particular, de um modo ímpar expressa alguma coisa, uma ideia, mas esta
na história das ideias. Adorno, que nem sempre ultrapassa, na experiência
visivelmente nunca aceitou o triunfo de cotidiana, a linguagem. A música é o
Kierkegaard, não consegue não elogiar: medium que conduz para além das palavras,
“Suas intuições musicais, tais como a schopenhauerianamente falando, à medida
descrição da Abertura de Don Juan, que só que a música expõe o mundo como
encontraria um paralelo nos comentários de “vontade”, apresentando o em-si das coisas,
Nietzsche ao Prelúdio dos Mestres através da arte musical.
cantores, lhe foram dadas a despeito de sua A filosofia, por seu turno, tem o
própria teoria” (ADORNO, 2010, p. 61-2). caráter de música inconsciente, visto que
ela faz ecoar-ressoando o íntimo da vida. A
4. Medium musicae reflexão filosófica, semelhante à música,
acessa aquilo que as palavras não podem
Nesse passo, preciso esclarecer uma dizer. Isso define bem a intuição corrente
questão metodológica: como é possível que a linguagem musical é um medium e
apreender o conteúdo da música, à medida comporta um ideal de adequação entre as
que esta não se encontra palavras e o real, entre o interior e o
fenomenologicamente presente como a superior. A palavra não pode rivalizar com
ciência e a filosofia? As exigências para a música. A música confere às notas uma
uma hermenêutica da música, à medida que mensagem que “transcende” a linguagem,
é possível dizer isso, não coincidem com as invertendo-a na direção de seus limites e
exigências das experiências, visto que essas indo além das palavras. Tudo se passa
experiências, comparadas entre si, são como se a música desmascarasse as
diferentes. O próprio Adorno, em sua pretensões da linguagem e essa última não
Dialética negativa, reconheceu, de maneira pudesse jamais atingir sua própria
mais polêmica do que dialeticamente idealidade. Kierkegaard “escuta” Mozart
consequente, que “a música é irmã da quanto ele quer demarcar a especificidade
filosofia”. Se Adorno tende a associar da música como experiência estética. A
música e filosofia, é preferível distinguir originalidade de Kierkegaard está no fato
cada uma dessas experiências, para não dele centrar a sua análise estético-musical
recair no adornianismo e esquecer a em uma única obra e, a partir dela,
originalidade e a especificidade da música compreender a música como o medium.
esteticamente concebida por Kierkegaard.
O elogio, por Kierkegaard, da música
de Mozart vai em um sentido
7 No Posfácio do seu Don Juan ou o amor a absolutamente oposto. De nenhuma
geometria, Max Frisch declara: “A melhor maneira, ele celebra “o divino Mozart”.
introdução a Don Juan – excetuando a obra de [...] Kierkegaard não se serve da via de
Kierkegaard – é o espetáculo de uma corrida [uma uma aproximação filosófica da essência
tourada]” (FRISCH, 1969, p. 97).
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
106
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
metafísica ou quase religiosa da poder de reunir e de confundir o espírito,
música. Falando de Mozart, ele procura mesmo quando são percebidos pelos
expor a especificidade da música ao sentidos. Assim, Kierkegaard chama
dizer que ela, e apenas ela, pode ser o
atenção sobre o caráter sensual da música e
médium (COLETTE, 1994, p. 174).
sua importância no jogo de sedução. Don
Juan expressa o demoníaco sob o aspecto
Crítico de Hegel, que procura ver na
da sexualidade. No entanto, se a música se
música a expressão de um sentimento,
faz sedução, Don Juan conhece então o
Kierkegaard está mais próximo de um
gozo e a angústia, pois conhece aquilo que
Schopenhauer que vincula a música à
é a mediatidade aquém da reflexão e nela
vontade. Ele acredita que a música,
vive imerso. Entre o gozo e a angústia, ele
enquanto medium, expressa a genialidade
deseja e seduz, não para tornar-se reflexivo,
sensível, ou seja, a imediatidade do éros, a
mas para dissolver-se na música.
força do desejo. Por isso, a figura de Don
A música apresenta o desejo em sua
Juan é musical. Don Juan, oposto de
intensa sensualidade, ela não é re-
Johannes, precisa ser musical para encarnar
presentação visto que lhe falta a linguagem.
a sedução como uma ideia absolutamente
A música é uma presentificação do “gênio
musical tanto quanto musicalmente
natural” que não é determinado pelo
absoluta, porque absolutamente imediata.
espírito e suas categorias objetivas, no
Kierkegaard escreve para silenciar e, no
sentido hegeliano, visto que ele porta seu
silêncio do instante, escutar Don Juan de
próprio espírito.
Mozart:
O ensaio pseudonímico sobre Don Juan
Escutar Don Juan, eu quero dizer:
analisa a sedução que exerce esta
senão escutá-lo, vós não podeis fazer
música, através de uma ambiguidade de
dele uma ideia, vós jamais sereis capaz.
um gozo inseparável da angústia, de um
Escutai o início de sua vida, como
fascinação que mais confunde do que
relâmpago brilhante nas sombras
acalma. A ideia kierkegaardiana da
tempestuosas do tumulto, ele surge das
música está em ruptura evidente com a
profundezas da seriedade, mais rápido
teoria idealista da reconciliação da
que o relâmpago, mais caprichoso que
natureza e do espírito, tema central das
ele, mais, todavia, igualmente seguro;
filosofias da arte e da história. O
escutai-o se precipitar na diversidade da
filósofo, totalmente sobre a influência
vida e se chocar com as sólidas
da música, eleva a originalidade de seu
muralhas; escutai aqueles leves acentos
pensamento da existência oposto aos
do violão no baile da alegria, a alegria
sistemas filosóficos perfeitamente
do prazer, solene felicidade do gozo;
construídos, e particularmente à estética
escutai seu impulso fogoso... escutai a
idealista (COLETTE, 1994, p. 176-77).
cobiça desenfreada da paixão, o
turbilhão da sedução, o silêncio do
O retorno à arte permite edificar o
instante – escutai, escutai, escutai o
método filosófico que Kierkegaard
Don Juan de Mozart
qualifica de indireto. Como acessar uma
(KIERKEGAARD, 1970a, p. 99).
inteligibilidade, esclarecer as estruturas da
existência, senão através da análise de
Traçando indiretamente os limites
“figuras-símbolos” extremas que encarnam
da linguagem, a música se endereça ao
uma ou várias tendências fundamentais da
ouvido e contradiz toda síntese do real que
vida singular? Eis o problema estético, que
necessita dos cinco sentidos e da razão para
merece ser explorado pela via indireta
harmonizá-los. O ouvido percebe, no
analisando os personagens criados pelos
invisível, aquilo que escapa à visão. Os
artistas. Com Kierkegaard e contra ele,
sons produzidos, através do silêncio, têm o
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
107
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
ousaria afirmar que toda a potência do abstração universal do sistema, uma
discurso não passa de uma ilusão acústica abstração do maior, mas a abstração do
se se exige “fechar” a arte na pura menor, quer dizer, do eu escolhendo a si
discursividade do conceito em vez de mesmo. Na medida em que o sujeito recusa
permanecer na diversidade inconstante do o conceito e retorna sobre si mesmo, torna-
esquema interpretativo. Por isso, a crítica à se prisioneiro do mais baixo, que é
estética hegeliana é clara: a essência da igualmente uma abstração, aquela do
música, que pertence à esfera estética, indivíduo do qual não se pode dizer nada. A
escapa sempre à Aufhebung. interioridade do eu torna-se “metáfora”,
“imagem” e oculta um valor “mítico”.
5. A crítica ao eu kierkegaardiano Adorno se questiona, portanto, se a
interioridade do sujeito, defendida por
Adorno recusa, inicialmente, Kierkegaard, não corresponde a uma
reconhecer o eu kierkegaardiano. Para ele, neurose, até mesmo a uma vertigem do
esse eu, expresso no quadro do idealismo passado. É visível a influência de Benjamin
alemão, é abstrato. No capítulo sobre Adorno nessa interpretação. Adorno
Constituição da interioridade, ele escreve: não percebe a ironia como leitmovit, no
“Se o idealismo de Fichte cresce a partir do interior da estética kierkegaardiana.
centro da espontaneidade subjetiva, assim Kierkegaard sempre reservou um espaço
também em Kierkegaard o eu é devolvido a para a ironia, no interior do seu pensamento
si mesmo pelo predomínio da alteridade” dialético. É dialeticamente que ele observa,
(ADORNO, 2010, p. 76). Inspirado no com uma perspicácia ironicamente
espelho das aparências do século XIX, ele delineada, o olhar severo e anuviado do
explica que esse eu é o “reflexo da mestre de Berlim, escutado, venerado e
interioridade”, um espaço de aparência. É repetido pelos teólogos dinamarqueses.
visível a “sociologia” que Adorno praticara Isto, Adorno não levou em conta na sua
em Frankfurt quando ele nota em seguida: interpretação.
“Todas as figuras espaciais do intérieur são Adorno reconhece, na reflexão do
mera decoração; [...] O si mesmo é eu kierkegaardiano, um novo erro. Com
alcançado no próprio domínio pelas efeito, se Adorno reconheceu o papel da
mercadorias e sua essência histórica” reflexão e tomou como prova o espelho,
(ADORNO, 2010, p. 106). Ele conclui, que permanece o objeto da burguesia, o
nesses termos: “O intérieur é a imago interior privado se vê, nesse espelho,
concreta do ‘ponto’ filosófico de refletido, “[...] separado do processo de
Kierkegaard: todo o exterior real se produção da economia” (ADORNO, 2010,
concentrou num ponto” (ADORNO, 2010, p. 103). A sociologia utilizada por Adorno
p. 107). Essa crítica de Adorno é reduziu o eu estético a uma ilusão. A
apresentada como uma justificativa imagem do interior, encontrada no Diário
filosófica. Se o interior é “vazio”, do sedutor, um texto pseudonímico, possui
Kierkegaard teria invertido o idealismo uma importância histórica e
hegeliano para reencontrar, apesar dele, a sociologicamente capaz de levar Adorno a
abstração da subjetividade única. Dito de afirmar que ela é “[...] a chave para todo o
outro modo, se ele opõe o eu existente ao conjunto da sua produção escrita”
sistema abstrato, esse eu não se contrai nele (ADORNO, 2010, p. 104). Ao esquecer que
mesmo ao ponto de não ter mais condições a reflexão permite o afastamento da estética
de receber o predicado. e a construção da ética, Adorno liga,
Para Adorno, Kierkegaard inverte exclusivamente, a reflexão à estética e
Hegel para encontrar, nessa inversão, um continua enxergando-a em toda obra. Para
novo tipo de abstração. Não mais a Kierkegaard, no entanto, a atitude reflexiva
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
108
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
do sedutor não é aquela do homem ético, tradicionalmente, vincula a visão em
assim como também não é a dupla reflexão detrimento do ouvido. O autor
do religioso. O método de Adorno não pseudonímico repete que é preciso
permite que ele leia Kierkegaard, mas “escutar” o Don Juan. Escutar, enquanto
apenas faz Kierkegaard dizer aquilo que lhe experiência concreta é o fato da estética, à
convém. O que interessa a Adorno é a medida que esta repousa sobre uma ideia
relação entre a linguagem e a música. que apenas a música pode expressar.
Porém, a música pode expressar,
6. A crítica das relações entre linguagem indiretamente, aquilo que é a linguagem,
e música aquilo que as palavras tentam nomear
imperfeitamente. Com a análise filosófica
Em uma passagem de Os estádios de Kierkegaard, Adorno está de acordo. No
imediatos do éros ou o éros e a música, entanto, a análise de Kierkegaard,
comentada por Adorno, Kierkegaard situa a frequentemente, negligencia a música e se
música em relação à linguagem. Como afasta de um acesso único à linguagem, à
afirmei anteriormente, Kierkegaard concebe medida que esquece que existe uma
a música enquanto medium e, enquanto tal, passagem entre a música e a linguagem.
ela se encontra ligada à sua riqueza e Inspirando-se no “outro” da filosofia,
perpetuação. Nesse sentido, quanto mais o Kierkegaard escreve essas linhas decisivas:
medium é concreto, mais ele se aproxima da
linguagem e oferece a possibilidade de uma Eu imagino dois países limítrofes; um
retomada. Esse é, justamente, o ponto que me é muito familiar e outro, totalmente
Adorno não quer reconhecer, pois não lhe estranho, sem que me seja permitido
penetrar, malgrado todo o meu desejo:
convém. Kierkegaard, querendo elevar a
nada me impede, no entanto, de fazer
genialidade sensual a uma ordem superior,
um ideia. Para isso é suficiente seguir a
diz Adorno, carece de referências a partir
fronteira estrangeira do país conhecido:
das quais a arte se constitui. Para entender
esse procedimento me permite
essa crítica é necessário entender o objetivo
descrever o contorno da terra estranha e
que Kierkegaard tinha em mente ao colocar me fornece uma ideia geral sem que eu
esse gênero de pensamento na boca de um jamais tenha colocado o pé. O domínio
pseudônimo. Para ele, a essência da do eu conhece bem a extrema
linguagem é pensada em sua relação com a fronteiriça da qual eu me propus ir para
música, que é a única experiência que descobrir a música, é a linguagem
conduz à existência estética. A música é o (KIERKEGAARD, 1970a, p. 26).
medium de Don Juan, visto que se trata de
A linguagem encontra-se delimitada
fazer passar à sensualidade, ao Eros. Em
pela experiência estética da música. É que a
contrapartida, a linguagem suscetível de
música exige “mais” que o pensamento. A
uma repetição é o medium de Fausto, que é
música coloca em evidência os limites da
reflexivo. A linguagem surge do espírito,
linguagem, exaltando o papel do silêncio
enquanto que a música brota dos sentidos.
meditativo em detrimento da palavra que
O que constitui a genialidade de Mozart, o
enuncia. Existe, inicialmente, o silêncio que
que o torna “imortal”, é a junção perfeita
funda a palavra e o silêncio que ‘encerra’ a
entre o medium e a ideia, quer dizer, a
palavra. Diferentemente da linguagem, a
música a Éros, na construção do erotismo
música precede, segue e sucede a
musical
linguagem, localizando a linguagem tanto a
Essa relação privilegiada que
montante como a jusante de si mesma. É
mantêm a linguagem e o ouvido interessa a
nesse sentido que Kierkegaard personifica
Adorno, visto que essa relação coloca em
em Don Juan a sensualidade erótico-
questão o monopólio que a filosofia,
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
109
Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial
ISSN 1982 6613 Dossiê Søren Aabye Kierkegaard.
musical. Adorno tem sua própria ser no momento em que ela é tocada. O
interpretação da passagem citada acima. filósofo de Frankfurt recusa tal dualismo e
Para ele, Kierkegaard pensa as relações o associa a Kierkegaard e a uma estética
entre música e a linguagem seguindo uma que teria como critério a matéria.
analogia fundada sobre o ouvido. Seguindo Curiosamente, Adorno sustenta que a
a perspectiva sócio-crítica, Adorno procura verdade é material, resistência histórica.
mostrar que Kierkegaard permaneceu Eis, grosso modo, a razão principal porque
prisioneiro da oposição abstrato-concreto e Adorno pretendia que as ideias de
que, enquanto combatente do idealismo, a Kierkegaard não passam de um mero recuo
concepção que ele apresenta precisa ser estético “[...] para trás de Kant e de
ultrapassada. Schiller” (ADORNO, 2010, p. 51). Porém,
A razão dessa necessidade de aquilo que conta na demonstração, é que a
ultrapassagem da compreensão entre música exige sempre mais do que o
música e linguagem é necessária, pois para pensamento e não pode ser colocada em
Adorno “[...] a determinação da música palavras, de onde a proposição do
como o mais abstrato dos materiais leva a pseudônimo que consiste em fazer um tour
consequências absurdas” (ADORNO, 2010, pela terra desconhecida sem jamais ter
p. 60). Dado que se, para Kierkegaard, a colocado o pé na estrada. É por essa mesma
linguagem é o critério do concreto e que o razão que o pseudônimo kierkegaardiano
gênio sensual é expresso através da música, censura o Don Juan de Molière, fazendo
não seria possível encontrar um único elogio àquele de Mozart: ele reprova o uso
concorrente para Mozart, ironiza Adorno. que o dramaturgo faz da linguagem racional
Como consequência da sua concepção de para oferecer, na representação, o herói da
estética, Adorno vaticina: Kierkegaard não imediatidade sensual. A censura ao Don
poderia jamais “[...] aprovar nenhum Juan de Molière é unívoca e estritamente
compasso de Beethoven” (ADORNO, definida: o gênio só pode ser expresso pela
2010, p. 61). É preciso lembrar, porém, que música através de um medium não
sob o título A estética clássica do conteúdo, conceitual.
Adorno nota que Kierkegaard tinha Somente a música pode, em sua
classificado as artes segundo a matéria e, distância singular, desempenhar o papel de
também, segundo o conteúdo e que sua medium da imediatidade, daquilo que
dualidade forma/conteúdo permaneceu escapa à linguagem. A música não é a
herdeira do idealismo, “[...] que contém em expressão linguística do éros, ela é o
si o terceiro emprego do termo estético. medium. A ópera não é a narração das
Aqui, o idealismo da estética aventuras de Don Juan, ela é a expressão de
kierkegaardiana alcança o seu fundamento sua essência. O personagem de Don Juan,
filosófico (ADORNO, 2010, p. 62). De expressa o demoníaco sob o ângulo da
fato, Adorno encontra em Kierkegaard uma sensualidade, pertencente a um jogo que o
verdadeira taxionomia das artes ultrapassa: Don Juan participa da essência
provenientes de Hegel. No entanto, por ter da sensualidade que se transforma, também
desprezado a lógica dos pseudônimos, ela, em música. Invisível sobre a cena,
Adorno não percebe que Kierkegaard ocultada no silêncio, mas presente como
coloca em questão essa taxionomia ao desejo e força, pode-se dizer que Don Juan
conduzir, paulatinamente, sua estética ao é música, na mesma proporção que é
fracasso. possível afirmar que a música de Mozart é
A despeito da interpretação, Adorno donjuanesca. Don Juan é, e permanecerá
acrescenta que é simplório, em razão da sempre, um mito insondável. Não é esta a
autonomia moderna da música afirmar, com força do método dos sedutores românticos?
Kierkegaard, que a música não existe a não Para concluir a discussão entre
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.
Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111.
Description:Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 100-111. Eis o problema estético, que merece ser explorado pela via indireta.