Table Of ContentPara Richard Poirier,
grande amigo, crítico, professor
Sumário
Apresentação — Akeel Bilgrami
Prefácio
1.A esfera do humanismo
2.As novas bases do estudo e da prática humanistas
3.O regresso à filologia
4.Introdução aMimesis, de Erich Auerbach
5.O papel público dos escritores e intelectuais
Apresentação
Porsuagrandecoragempolítica,pelasrepetidasvezesemquese
bateucomoumleãoemproldaliberdadepalestina,pelacontinuidade
intelectual entre suas obras mais famosas e conhecidas e as lutas e
temas políticos, por sua prosa que tem a voltagem da dramatização
política,olegadointelectualdeEdwardSaidseráantespolítico—não
apenas na imaginação popular, mas talvez também aos olhos da
pesquisaacadêmica.Issoéinevitável,etalvezdevaserassim.Masesta
obra,oúltimolivroqueeleconcluiu,permite-nossituaresselegadono
cenário filosófico mais amplo de seu humanismo — talvez o único
“ismo”que,comideaisobstinados,elecontinuouaadmitir,pormais
queosdesenvolvimentosdevanguardanateorialiteráriadasúltimas
décadas tenham contribuído para que parecesse piedoso e sentimental.
Estelivrodesenvolveu-seapartirdeconferênciasprimeiropro-
feridas na Universidade Columbia, numa série criada por Jonathan
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ColeemnomedaColumbiaUniversityPress,equedepoisforampub-
licadasnosEstadosUnidoscomopartedasérieColumbiaThemesin
Philosophy.Atravessandoaspaixõescívicaseoimpressionismocar-
regado das conferências de Said, há um argumento profundo e
estruturado.
Desuassugestõesclássicasmaisantigasàsversõesremanescen-
tesmaissutisdenossotempo,doiselementosdeamplageneralidade
têmsubsistidonasdiversasformulaçõesdoutrináriasdohumanismo,
quepodemservistos,emretrospectiva,comoseuspólosdefinidores.
Umdeleséasuaaspiraçãoaencontraralgumacaracterísticaoucarac-
terísticasquedistingamoqueéhumano—nãosódanatureza,como
asciênciasnaturaisaestudam,mastambémdoqueésobrenaturale
transcendental, na forma como esses elementos são buscados pela
pesquisadateologiaoudametafísicaabsoluta.Ooutroéodesejode
mostrarconsideraçãoportudooqueéhumano,peloqueéhumano
emqualquerlugaremquepossaserencontradoepormaisdistante
que possa estar da presença mais vívida do paroquial. A máxima
“Nadadoqueéhumanomeéalheio”,aindacomoventeapesardesua
grande familiaridade (e apesar da lenda sobre a sua origem trivial),
transmite um pouco desse desejo.
Comessespólosestruturandoaslinhascomplexaseentrecruza-
dasdestelivro,oscontornosdeseuargumentoganhamrealce.Num
dospólos,paraexploraroquedistingueohumano,Saidinvocanum
primeiromomentoumprincípiodeVico,odequeconhecemosmelhor
o que nós próprios fazemos e formamos — a história. O
autoconhecimento torna-se assim especial, apartando-se das outras
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formasdeconhecimento.Eapenasossereshumanos,aoquesesaiba,
sãocapazesdesseautoconhecimento.Nooutropólo,paratornarpre-
mente a máxima de Sêneca, Said mergulha desde o início no que é
tópico,avisando-nosdosdesastresqueseseguirão,equenaverdadejá
estãosobrenós,seconduzimosnossavidapúblicadeintelectuaiscom
indiferençaaosinteresseseaosofrimentodospovosemlugaresdis-
tantes de nossos sítios metropolitanos ocidentais de interesse próprio.
Emboratalvezsejampólosrelativamentefixosnoconjuntoalta-
mentemutáveldasidéiasquechamamosde“humanistas”,essasduas
característicasnãosãopólosseparados.Nãosãoelementosnãorela-
cionados e contingentes do humanismo. Devem ser reunidos numa
visão coerente.
Paratransporadistânciaentreeles,Saiddesenvolveessespontos
departidadasuanarrativaprimeironumdospólos,completandoa
percepção de Vico com uma adição filosófica extraordinária. O que
Vicotrouxeàluzfoiacapacidadeespecialmentehumanaparaoauto-
conhecimento, bem como o caráter especial do autoconhecimento
entretodasasoutrasformasdeconhecimentoquetemos.Essecaráter
especial, que tem sido desenvolvido desde a sua época em termos
como Verstehen, Geisteswissenschaften ou, como gostamos de dizer
naAmérica, “asciênciassociais”,aindanãofornecenenhumindício
particulardopapeledaimportânciadashumanidades.Porsisó,nem
sequer nos dá ainda o tema destas conferências: o humanismo. A
afirmaçãodeSaidéque,enquantonãosuplementamosoautoconheci-
mentocomaautocrítica,naverdade,enquantonãocompreendemoso
autoconhecimento como sendo constituído pela autocrítica, o
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humanismo e suas manifestações curriculares (“as humanidades”)
ainda não são visíveis no horizonte. O que torna esse suplemento e
essanovacompreensãopossíveiséoestudodaliteratura.Emtermos
esquemáticos,oestudodaliteratura—istoé,a“crítica”,umabuscade
vidainteiraparaSaid—,aosuplementaroautoconhecimento,fazflor-
escer a capacidade humana verdadeiramente única, a capacidade de
serautocrítico.
Virandoparaooutropólo,comopodeuminteresseportudoo
queéhumanoestarligado,nãoapenasdemodocontingente,masne-
cessário, a essa capacidade de autocrítica? Por que esses não são
simplesmentedoiselementosdistintosemnossacompreensãodohu-
manismo?ArespostadeSaidéque,quandoacríticaemnossasuni-
versidadesnãoéparoquial,quandoestudaastradiçõeseosconceitos
deoutrasculturas,abre-separarecursospelosquaispodesetornar
autocrítica,recursosquenãoestãopresentesenquantoofocoéfamili-
areestreito.OOutro,portanto,éafonteeorecursoparaumacom-
preensãomelhoremaiscríticadoEu.ÉimportanteverqueparaSaid
oapelodoidealdeSênecanãopodedegenerarnumafetichizaçãoda
“diversidade” por si mesma, nem numa adoção fácil e “correta” da
presentetendênciamulticulturalista.Éestritamenteumpassonumar-
gumentoquecomeçacomVicoeterminacomarelevânciadohuman-
ismonavidaepolíticaamericanas.Omulticulturalismonãoconheceu
defesa mais erudita e elevada do que a oferecida neste livro.
Mesmoexpressodeformatãobreve,oargumentoédegrandeal-
canceeinstrutivo.Aoforjarumaligaçãometódicaentreosdoispólos
dohumanismoidentificadosporSaid,elenospermiteresolver,ouao
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menosfazerumprogressomensurávelpararesolver,algoquecontinu-
ounãoresolvidonaprópriaobradeVico—atensãoentreahistóriaea
ação.Ohistoricismo,adoutrinaquesedesenvolveuapartirdafilo-
sofia de Vico, sempre apresentou essa tensão numa forma especial-
menteirritante.Conheceranósmesmosnahistóriaéveranósmes-
moscomoobjetos;éveranósmesmosnomododaterceirapessoaem
vezdedeliberareagircomosujeitoseagentesnaprimeirapessoa.E
essamesmatensãoéaqueecoanacríticadeJamesCliffordauma
obraanteriordeSaid,Orientalismo,críticaqueSaidcitacomgener-
osidadebemnoinício—adequeelenãoconsegueconciliaranegação
dosujeitoeaçãohumanos,aorecorreraFoucaultnaquelaobra,com
seus próprios ímpetos intelectuais humanistas. Mas se o argumento
queestoudetectandonasconferênciaséeficaz,senospermiteapas-
sagemdaênfasedeVicosobreahistóriaàbaseplenamentecosmopol-
itaparaaautocrítica,teremospercorridoumlongocaminhoparaalivi-
ar essas tensões. Podemos agora não apenas declarar, mas afirmar
comalgumarazão,comofazSaid,queacríticaconsisteemduascoisas
aparentementeincoerentes:éfilologia,a“história”daspalavras,a“re-
cepção”deumatradição,e,aomesmotempo,éuma“resistência”a
essa tradição e ao repositório de costumes que as palavras acumulam.
O argumento dá assim ao humanismo rigor e força intelectual,
bemcomoumaatualidadeerelevânciapolítica,queotornamirrecon-
hecívelemrelaçãoàdoutrinaantiquadaemquesetransformarano
séculopassado—epropiciaàquelesdesiludidosoutão-sóentediados
comessadoutrinaalgomaisvivoeimportanteaquerecorrerdoque
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osáridosformalismoserelativismosdosanosrecentes.Porissodeve-
mos ser todos muito gratos.
Akeel Bilgrami, professor de filosofia e diretor do Heyman
Center for the Humanities, da Universidade Columbia