Table Of ContentMULHER FORA DO LUGAR: GÊNERO E DESLOCAMENTO EM DEIXEI ELE LÁ E
VIM, DE ELVIRA VIGNA
Angela M. Rodriguez Mooney1
Resumo: Em Deixei ele lá e vim as relações entre identidades e espaços aparecem problematizadas no constante
sentimento da protagonista-narradora Shirley Marlone de não pertencimento; a ausência de um lugar social para
Shirley Marlone evidencia desigualdades sociais e de gênero. Não por acaso, a maioria dos ambientes escolhidos no
desenvolvimento das ações da obra são lugares transitórios, que não fornecem possibilidades de se firmar raízes.
Também entre os espaços percorridos pela protagonista encontramos ruas e ladeiras, em especial a íngreme ladeira
que liga o hotel à favela do Vidigal, lugar onde aluga mensalmente um cômodo e guarda seus poucos pertences: um
celular, um tênis e uma mochila estrategicamente posicionada na porta. Pensando o espaço como a simultaneidade
das “histórias-até-este-momento” (stories-so-far) tal como definido pela geógrafa Doreen Massey, pretendo durante
minha apresentação analisar como essas topografias literárias desenhadas pela autora representam uma geografia
imaginada, individual e coletiva, que trazem à tona lacunas e distorções nos sentidos político-social (segregação,
diferenças e representatividade de gênero) e topográficos (proximidades, barreiras, distâncias, divisões). Em
especial, como as reflexões da protagonista, sendo ela uma mulher pobre e transexual, permitem que o leitor mapeie
os diferentes espaços sociais, simbólicos e geográficos da cidade, contestando por último relações de espacialidade e
invisibilidade de pessoas transexuais.
Palavras-chave: Transexualidade. Identidade. Deslocamento. Gênero. Cartografias
Em seu quarto romance Deixei ele lá e vim a autora carioca Elvira Vigna trabalha possibilidades de
representações identitárias. De uma forma ainda mais transgressora quanto ao estilo e a narrativa,
encontramos nesse romance Shirley Marlone, uma narradora-protagonista sui generis na seara literária
contemporânea brasileira. Toda tensão na narrativa se circunscreve ao redor da protagonista e sua
sensação de deslocamento. Quem é Shirley? Qual é o seu verdadeiro nome? Qual é seu sexo? A quem e o
que deseja? Qual é sua história? Dúvidas que tensionam a narrativa a ponto de revelar talvez um desejo
imbuído no leitor de definir a personagem segundo um sistema classificatório hegemônico de categorias
de gênero. A personagem, por sua vez, se nega a satisfazer dúvidas com respostas que poderiam parecer
adequadas: “Perguntarão quem sou, o que é pergunta em geral feita com um à-vontade surpreendente a
considerar a profundidade desse poço. Como assim, quem a pessoa é. Meu deus, pegue um lápis, sente-se,
o seminário é de três meses, com sorte.” (74)
Ainda assim, em Deixei ele lá e vim as relações entre identidades e espaços aparecem
problematizadas no constante sentimento da protagonista-narradora Shirley Marlone de não
pertencimento; a ausência de um lugar social para Shirley Marlone evidencia desigualdades
sociais e de gênero. Não por acaso, a maioria dos ambientes escolhidos no desenvolvimento das
1 Angela M. Rodriguez Mooney é doutoranda em Literatura no Departamento de Espanhol e Português na Tulane
University, Nova Orleans, Estados Unidos.
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ações da obra são lugares transitórios, que não fornecem possibilidades de se firmar raízes:
rodoviárias, ponto de ônibus, vans e taxis, além de diversas áreas de um hotel de luxo à beira
mar. Também entre os espaços percorridos pela protagonista encontramos ruas e ladeiras, em
especial a íngreme ladeira que liga o hotel à favela do Vidigal, lugar onde aluga mensalmente um
cômodo e guarda seus poucos pertences: um celular, um tênis e uma mochila estrategicamente
posicionada na porta.
Utilizando o conceito de espaço como a simultaneidade das “histórias-até-este-momento”
(stories-so-far) tal como definido pela geógrafa Doreen Massey, pretendo explorar como essas
topografias literárias desenhadas pela autora representam uma geografia imaginada, individual e
coletiva, que trazem à tona lacunas e distorções nos sentidos político-social (segregação,
diferenças e representatividade de gênero) e topográficos (proximidades, barreiras, distâncias,
divisões).2 Em especial, como as reflexões da protagonista, sendo ela uma mulher pobre e
transexual, permitem que o leitor mapeie os diferentes espaços sociais, simbólicos e geográficos
da cidade, contestando por último relações de espacialidade e invisibilidade de pessoas
transexuais.
Georg Wink em “Topografias literárias e mapas mentais: a sugestão de espaços
geográficos e sociais na literatura” sugere que apesar de parecer simplista a pergunta inicial
“Onde se desenvolve a narrativa e por quê?” ela é de alta relevância, sobretudo no que se refere a
relação estabelecida entre o autor e o leitor. Wink cita o argumento de Piatti em que a categoria
do espaço proporciona ao leitor em maior escala que as categorias da ação e do personagem algo
“experimentável”, pois, via de regra, a ação já se cumpriu e os personagens costumam ser
fictícios ou finados. O espaço, ao contrário, mesmo que passado, fictício, ou distante, alimenta de
forma curiosa a expectativa do leitor de encontrá-lo na geografia real ou pelo menos em um
simulacrum. Wink ilustra essa curiosa expectativa citando as milhares de pessoas que visitam
todos os anos a suposta “Casa de Giulietta” em Veneza imaginada por Shakespeare em 1597,
2 Massey propõe que entendamos o espaço como uma construção em constante mudança conforme os
sujeitos que nele se encontram e/ou por ele transitam. Essa percepção do espaço como algo múltiplo e
interrelacionável modifica também o entendimento de “lugar” (place), segundo a autora o lugar seria como:
... coleções de histórias, articulações dentro da geometria mais ampla do poder espacial.
Seus rasgos serão produtos destes cruzamentos neste âmbito mais amplo, e do que é
feito com eles. E também dos desencontros, das desconexões e das relações que não
foram estabelecidas, das exclusões. Tudo isso contribui para a especificidade de um
lugar. (Massey, 2012, p. 130)
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apesar de sabido ser essa uma localização duvidosa e de que a famosa sacada do pátio foi
construída apenas para satisfazer a vontade dos visitantes.3
A preocupação da construção de espaços ficcionalizados comprometidos com uma
referencialidade em relação ao mundo empírico é algo bastante comum na literatura brasileira
contemporânea e essa tendência se repete também na construção de Deixei ele lá e vim. Em
entrevistas Elvira Vigna revelou sua preocupação em retratar de modo mais fiel possível os
lugares na obra:
Deixei ele lá e vim descreve com todos os detalhes reais uma parte da favela do Vidigal,
com seus grafites, endereços, personagens, vans. E até mesmo o passado dos
personagens é fruto de uma pesquisa que fiz com professores da escola Almirante
Tamandaré, que serve à comunidade. É tudo real.4
O fato da escritora enfatizar o ponto de encontro entre realidade intra e extra literária, no
entanto, não deve ser vista de forma ingênua. Apesar do esforço de autores e autoras, a geografia
de um texto literário é construído inteiramente dentro de procedimentos poético-literários e por
isso nunca é mimético, nunca espelha o “real”, mas sim proporciona um efeito do real’ (Wink
30) Sobre a preocupação com o referencia extratextual na literatura contemporânea brasileira,
sobretudo entre aquela produzida por mulheres, Sandra Almeida afirma que o enfoque não está
na construção do “real”, mas sim na relação entre sujeitos e espaço:
O enfoque em um relato que privilegia a categoria espacial centralizada em sujeitos
descentrados e moventes (frequentemente femininos) que vivem em espaços
contemporâneos e são, portanto, obrigadas a renegociarem suas identidades e
subjetividades em contextos multifários. (2013, p.80)
Desse modo, nas várias passagens em que a narradora-protagonista reflete sobre
acontecimentos passados, identificamos nessas relações um esforço de negociação que gera
vínculos transitórios pautados por uma sobrevivência também negociada, fluída no sentido em
que o que se almeja é sempre um outro lugar onde a existência seja possível. O desejo de uma
cartografia de fuga é expresso pela narradora em diversas passagens, sendo a primeira delas
revelada logo ao início da obra, quando, esgotadas as possibilidades de permanência no Rio de
3 Em crescimento no Brasil, o chamado turismo literário já oferece “pacotes de viagens” a indivíduos interessados
em “conhecer” lugares descritos em obras literárias. Entre os trajetos mais populares estão a cidade de Cordisburgo
em Minas Gerais, região que inspiraria Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, e Ilhéus na Bahia, descrita em
Gabriela Cravo e Canela de Jorge Amado.
4 Entrevista conduzida por Rogério Pereira, publicada no jornal Rascunho, de Curitiba, de abril de 2010<
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/ElviraVigna.htm> consulta 4 de Julho de 2016
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Janeiro, decide voltar à casa da mãe em São Paulo. Interrompe o trajeto que a levaria para a
rodoviária para rever a amiga Meire, que trabalha no restaurante do hotel. Sentada na mesa,
diante do prato que pedira, mas que não é capaz de comer, reflete:
Esse é o primeiro momento que fico sozinha no restaurante. Em que achei que estava.
Naquela noite fiquei sozinha (ou achei que estava) algumas poucas vezes, e então
aproveitei para olhar em volta com mais afinco, cadê o mapa, qualquer mapa. Sinal,
seta, guarda apontando: é por aqui. (9)
O desejo de encontrar um caminho que a leve a um lugar acolhedor não é materializado
com a decisão de retornar à casa da mãe, decisão esta que parece haver sido tomada após
esgotada todas as possibilidades financeiras e emocionais de permanência no Rio de Janeiro.
Inclusive, a casa da mãe aparece associada a uma infância de dor por não pertencer a um padrão
de beleza idealizado. Sentia-se excluída também na escola, onde Shirley revela haver sido vítima
de bully. Em busca de um lugar para se proteger do assédio de outros alunos, a narradora
encontra a biblioteca e inventa seu lugar imaginário K:
Há muito tempo, eu ainda criança, fiz um lugar imaginário. Algo que li. Eu vivia na
biblioteca, onde descobri com alívio, risadas e chacotas eram proibidas e aonde, de
qualquer maneira. Ninguém mais ia. Esse lugar imaginário se chamou K. Era um lugar
frio. E todos eram ricos em K., as mulheres com casacões até o meio das pernas. O forro
desses casacos era sempre vermelho-sangue, e, quando o vento bate e eles se abrem,
aparece então esse vermelho-sangue que brilha na luminosidade cinza, porque o tecido
de dentro é sempre de cetim. Ou seda. Que brilha no cinza, que é a cor dos lugares frios.
(71)
A sensação de deslocamento que acompanha a personagem desde a infância, fazendo
com que encontrasse refúgio apenas na ficção, não deve surpreender. Lugares de socialização, a
família e a escola são instituições com poder de controlar o campo de significado social e assim,
produzir, promover e “implantar” representações de gênero, que instituem e mantêm relações de
coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Teresa de Lauretis
denomina tais discursos e práticas de “tecnologias de gênero”, espaços onde as formas
idealizadas dos gêneros são reforçadas em regimes de verdades que estipulam determinadas
expressões relacionadas com o gênero como falsas, enquanto outras são verdadeiras e originais.
(228) Aquelas pessoas que não obedecem o no sistema imposto serão condenadas a uma morte
em vida, exilando em si mesmas os sujeitos que não se ajustam às idealizações.
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No caso da pessoa transexual, no entanto, o exílio seria o lugar simbólico da perda da
cidadania5, que transita entre a invisibilidade e o assédio e termina quase sempre no lugar de
vítima de atos violentos de natureza homofóbica6. Como constatou Don Kulick em pesquisas de
campo realizadas na Bahia em 1996 e 1997, aqueles indivíduos que vivem o gênero oposto
àquele atribuído ao sexo de nascimento, em especial as mulheres transexuais, devem estar
preparadas para enfrentar comentários desairosos e tentativas de agressão física:
Travestis se veem obrigadas a reafirmar a cada instante seu direito de ocupar o espaço
público. Elas sabem que, a qualquer momento, podem tornar-se alvo de agressão verbal
e /ou violência física por parte daqueles que se sentem ofendidos pela simples presença
de travestis nesse espaço. (47)
Importante lembrar que em nenhum momento a personagem Shirley Marlone expõe uma
demarcação identitária que responda aos conflitos gerados por uma ordem dicotomizada e
naturalizada para os gêneros. Em outras palavras, não sabemos como ela define e explica “sua
subjetividade”, se se define como travesti ou como mulher transexual7. É justamente essa
indeterminação discursiva que contraria respostas do tipo binárias que faz de Deixei ele lá e vim
um romance queer como poucos na literatura brasileira. Isso porque a simples afirmação “eu sou
mulher/homem transexual” implicaria em uma demarcação com outras identidades, geralmente
postas às margens pelas normas de gênero.8
Apesar da ausência de uma demarcação identitária, a sensação de insegurança e
vulnerabilidade que acompanha a personagem durante todo romance coincide com as
observações de Kulick sobre os riscos e cuidados necessários que acompanham pessoas
5 Refiro-me aqui à ideia de cidadania apresentada por T.H. Marshall em “Cidadania e classe social.” (1949) Segundo
o sociólogo cidadania dependeria de direitos não apenas político e civis, mas também sociais.
6 Segundo a organização Transgender Europe, que reuniu dados de janeiro de 2008 a setembro de 2015, o Brasil é o
país onde mais se assassinam pessoas transexuais no mundo. De acordo com o levantamento, dos total de 1.933
assassinatos reportados no mundo, 770 aconteceram no Brasil. http://transrespect.org/en/transgender-day-of-
remembrance-15-tmmupdate/
7 Berenice Bento explica que uma das diferenças tradicionalmente apontadas entre transexualidade e travestilidade
está na realização da cirurgia: “Considerava-se que todas as pessoas transexuais atrelavam sua reivindicação de
mudança de gênero à realização das cirurgias. Nos últimos anos, esta centralidade começou a ser relativizada por
pessoas transexuais que reclamam a mudança do gênero e não a condicionam à cirurgia. Essa relativização assumida
aumentou o embaralhamento das fronteiras identitárias.” (O que é sexualidade 73). Considerando essa controversa
divisão identitária e a ambiguidade na construção do do sexo, do gênero e da sexualidade da personagem opto nesse
trabalho pela utilização do termo transsexual.
8 Sobre a complexidade do processo de instauração social identitária, Berenice Bento afirma: “Definir e explicar o
que “eu sou” é inaugurar disputas implícitas com outras identidades, com alteridades que povoam a “minha
subjetividade”. ( O que é transexualidade 69)
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transexuais ao transitar por espaços públicos. Por exemplo, logo nas primeiras páginas, quando
visita a amiga Meire no restaurante, a personagem faz referência ao hábito de sentar-se perto da
porta de saída, prática que sugere uma sensação de vulnerabilidade a atos violentos e uma
necessidade constante de estar preparada para fuga: Estou na mesa mais perto da porta. Como
sempre. Qualquer lugar que seja, e fico perto da porta, de costas para a parede. Nunca me
protegeu de nada, mas continuo. (10)
O que poderia ser identificado como um comportamento paranoico em uma personagem
que segue a sequencia compulsória sexo-gênero-sexualidade, em uma personagem transexual
essa sensação de insegurança é justificada pela frequência de atos violentos nos quais é vítima.
Assim, a permanência ou trânsito de uma pessoa transexual por um restaurante faz com que esse
espaço seja ressignificado: de um lugar tido por muitos como de lazer e sociabilização, e por isso
relativamente seguro, a um local não acolhedor e inclusive perigoso. Essa diferença atualiza mais
uma vez o conceito delineado por Massey de espaço como uma construção em constante
mudança conforme os sujeitos que nele se encontram e/ou por ele transitam.
Curiosamente outro espaço negociado no romance é justamente o banheiro feminino,
talvez o único lugar onde a personagem se sente cômoda a ponto de refletir como seria agradável
viver naquele espaço:
Dá para morar nos banheiros dos hotéis de turismo. Principalmente nos banheiros dos
mezaninos, só usados em convenções ou eventos. Você leva um pequeno fogareiro
elétrico para o café (a tomada fica no canto da pia), água já tem. Fica lá. No branco. Não
é mau. De vez em quando, cantarola-se para passar o tempo. Baixo para que não
escutem. Uma vida quase alegre. (13)
Hotéis e banheiros de convenções são, como denominou Augé, não-lugares, espaços de
relações de “solidão” onde se praticam interações associadas à ideia de “contratualidade
solitária”, diferentes dos “espaços antropológicos” onde seriam mantidas relações de
sociabilidade. O autor explica que em qualquer sociedade o que está em discussão é a oposição
entre “sentido social” típico dos “espaços antropológicos” e liberdade dos “não-lugares”. Quando
se privilegia o “sentido”, ou seja, a relação entre uns e outros definida a priori a partir da
constituição da sociedade e de sua cultura, perde-se a liberdade, ou seja, o indivíduo. Se
privilegiamos o indivíduo e seus desejos, perde-se a relação com a sociedade. (Augé, 2011,
p.85). Diante da dicotomia do autoritarismo comunitário e da solidão da sobremodernidade
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(Augé, 1994a), não é de se surpreender que indivíduos que vivenciam o deslocamento de gênero
prefiram o segundo, um lugar onde possam talvez alcançar uma “vida quase alegre”.
Esse relativo bem-estar da narradora no banheiro feminino do hotel poderia ser atribuído
talvez a outros fatores além da satisfação de anonimato e solidão alcançado nesse espaço. Lugar
interditado às pessoas do sexo masculino, recentemente o acesso ao banheiro público por pessoas
transexuais tem gerado debates e protestos por parte de grupos conservadores, sobretudo após a
aprovação em novembro de 2015 pelo Supremo Tribunal Federal do direito de transexuais
usarem banheiros conforme sua “identidade de gênero”. No entanto essa questão não aparece
polemizada no romance e a única menção a um possível desacordo entre o sexo biológico e o
gênero da protagonista aparece na pergunta que ela faz a si mesma: “Só mulher entra em
banheiro de mulher. Certo? Errado.” (28)
O fato de não problematizar a ocupação do espaço-banheiro coincide com a ausência de
demarcação identitária adotada pela autora na construção da personagem. Em nenhum momento
Shirley Marlone nos explicará “sua subjetividade” e essa indeterminação discursiva permite mais
uma vez que o foco da narrativa mantenha-se na sensação de deslocamento da personagem e seu
constante desejo de abandonar o local onde se encontra, partir sem destino e permanecer em
trânsito. E talvez seja mesmo nos caminhos que percorre ao acaso, cruzando ruas e ladeiras do
Rio de Janeiro, que ela encontra algum descanso de si mesma. Walter Benjamim, em seu texto
célebre “Paris, capital do século XIX”, refere-se à figura do flaneur que perambula pela
multidão, afastando-se dos espaços familiares. Shirley em seu caminhar sem destino pelas ruas
do Rio de Janeiro e ladeiras de suas favelas atualiza a figura do flaneur evidenciando também
hierarquias sociais que implicam na construção de sua subjetividade:
Antes, na manhã daquele dia, acordei e decidi o que decido todas as manhãs da minha
vida desde sempre e até hoje, e que é: eu vou. Tanto faz para onde. Então fui. Me
aguardava um dos meus destinos pontilhados flutuantes, vagamente pousado na
Visconde de Albuquerque, que ficou visível quando acabei a Niemeyer e que ficou
invisível bem antes que eu cheguei ao final. A subida de volta da Niemeyer foi mais
penosa que de costume, o que não falar da João Goulart, porque tem dias assim, em que
vou a pé mesmo, um pé, depois o outro, então não peguei a Kombi. Até o fim. E,
quando eu estava chegando, me veio a ideia de que aquela era a última vez que subia a
subida do Vidigal. Já havia pensado a mesma coisa tantas vezes, achei que era de fato a
última. Me joguei na cama, cansaço, achei. Mas era mais que cansaço. As pessoas saem
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de manhã e voltam só no fim do dia. Eu, na cama no meio do dia num raro quase-
silêncio, tinha os barulhos todos internos, e nenhum era novo. Minha mochila estava
pendurada atrás da porta perto do par bom de tênis, como sempre ficam, uma e outro.
Mas olhei para eles como quem olha para companheiros de viagem. E o primeiro pé que
pus no chão ao levantar da cama foi o primeiro pé que eu apontava em direção à
rodoviária. E mesmo depois, no chão do banheiro do hotel, eu ainda achava que era para
lá que eu ia. (22)
Nota-se na construção do trajeto traçado por Shirley Marlone a preocupação de Elvira
Vigna com um referencial geográfico que revele também a segregação social da cidade do Rio
de Janeiro. As ruas e ladeiras citadas nessa breve passagem conectam dois mundos distintos, a
favela do Vidigal, onde mora a personagem, com o bairro do Leblon, um dos endereços mais
caros da cidade. Shirley teria atravessado esses dois mundos muitas vezes quando trabalhou no
mesmo hotel de luxo à beira mar que sua amiga Meire: “Eu fazia sites para os clientes
(inexistentes) do cara. Cursei dois anos de computação. Minha família já foi de classe média,
ainda acha que é” (15) e uma vez despedida, Meire a convidaria para frequentar o bar do hotel
onde se prostituiria:
Na hora ela não chega a detalhar que tipo de trabalho haveria para mim no bar do hotel.
Me dá o celular. Diz que pode querer me chamar com urgência, uma oportunidade que
surja.” (44)
Se consideramos a cartografia desenhada no trânsito da favela à região nobre da cidade e
o retorno à favela percebemos que o espaço e o deslocamento físico da personagem no romance
tem a importância de uma categoria enunciativa, revelando questões de inclusão e exclusão
sociocultural sem que, no entanto, apele para a exploração da pobreza e da violência crua tão
frequente em narrativas literárias e cinematográficas que trabalham a realidade periférica.
Naturalizada, a violência não aparece nos becos e esquinas da ladeiras da favela, mas nas
condições de acesso à área nobre da cidade. Esse deslocamento, quando permitido pelos muros
altos e guaritas de segurança, é marcado pelo trabalho mal remunerado, frequentemente informal
ou temporário. Quando narra os eventos que a levaram a prostituir-se, por exemplo, Shirley
Marlone busca uma casualidade, um fio de continuidade não pré-determinado, para então
perceber que essa nova identidade “puta” já havia sido atribuída a ela muito antes do desemprego
e dos programas acontecerem e que existiria sempre como uma possibilidade:
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Já tinha havido outros lances, antes, mas não de forma tão clara. Foi com o Steve e
depois com Jordan que me vi frente a frente com minha definição. Ou que percebi que,
para os outros, eu já estava definida a muito tempo. E a chave do quarto, então , na
minha mochila naquela noite, era um plano B e uma recordação, mas também, e para
sempre, uma ameaça e uma tentação. (43)
Assim, além das barreiras que fazem do hotel um lugar interditado àqueles que não
possuem poder econômico, permitindo o acesso dessas pessoas apenas na condição de mão-de-
obra, o fato de ser transexual limitaria ainda mais o acesso de Shirley ao mercado de trabalho,
impelindo-a à prática de trabalhos sexuais. Sobre as dificuldades profissionais enfrentadas por
transexuais, Michelle Agnoleti e José Baptista de Mello Neto identificaram em pesquisas
etnográficas que as características estéticas das travestis e o preconceito da sociedade tornam
difícil às mesmas conseguirem empregos para cuidar de suas subsistências, restando na maioria
das vezes a prostituiçaõ como forma de sobrevivência. (2013, p.30)
Shirley Marlone, no entanto, foge de um determinismo socioeconômico e cultural e
mesmo estereótipos que amarram personagens travestis e transexuais a espaços marginalizados.
A prostituição, atividade profissional legalizada no Brasil mas ainda carregada de preconceitos, é
uma das atividades exercidas pela personagem em um momento de “desestruturação”. Mas além
da prostituição, houve muitas outras e a última, tradutora de legendas para televisão, é segundo
ela um trabalho estável e bem remunerado, rompendo com alguns estereótipos frequentemente
utilizados na representação de pessoas transexuais e/ou travestis. Adelaide Calhman de Miranda
em artigo que discute a representação da travesti na literatura brasileira conclui que a montagem
de camadas de imagens na construção dessas personagens são quase todas negativas:
De ladra e chantagista, irresistível objeto de desejo, a vítima incompetente de suas
próprias taras, a travesti configura-se como o outro de todos os discursos. Para enxergá-
la, seria preciso ir além da montagem, desconstruindo as camadas de estereótipos por
meio das quais a enxergamos. Mas a sua própria identidade é construída pelos discursos
hegemônicos de gênero e sexualidade que a inscrevem como desviante. (2008, p.7)
A desconstrução desses discursos hegemônicos no romance acontece em diversos níveis,
sendo o primeiro deles e talvez o mais transgressor a ausência de um discurso identitário que
revele a priori verdades sobre a personagem. Ao não postular categorias ou rótulos, o romance
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obriga o/a leitor/a a escutar a protagonista-narradora sem ter consigo um mapa referencial para
um sistema de valores e conceitos pré-existentes, geralmente incompletos quando não
equivocados. Um outro nível de desconstrução encontra-se no próprio trajeto da personagem que
reconstrói espaços de pertencimento deslocando-se entre mundos e construindo significações
outras que as asseguradas pelo discursos hegemônicos a pessoas que transgridem as fronteiras de
gênero ou sexualidade.
Diferente da maior parte das narrativas produzidas em que as personagens que desafiam a
heterossexualidade compulsória pagam um preço às vezes fatal por sua ousadia9, não existe em
Deixei ele lá e vim uma lição pedagógica, um aprendizado que puna aqueles que ousam. O
trajeto profissional de Shirley Marlone, de construtora de sites a prostituta, de voluntaria em
ONG que ensina informática a tradutora de filmes para televisão, não é apresentado pela
narradora como conquistas ou perdas. Do mesmo modo os espaços pelos quais transita, a favela
do Vidigal, o hotel de luxo a beira mar, a rodoviária, um outro hotel, e por último um
apartamento curiosamente localizado ao lado do hotel no bairro da Glória, não são lugares que
satisfaçam a personagem, que persiste em sua vontade de abandonar, de ir a algum lugar,
qualquer lugar que não seja aquele em que se encontra.
Ao final do romance, apesar de se encontrar em situação relativamente confortável, com
trabalho, relacionamento e endereço estável, Shirley considera a possibilidade de retornar a seu
antigo cômodo no Vidigal e quem sabe tornar-se amante de Meire, que é homossexual. Em
outras palavras, ela continua aspirando um novo começo e não um fim, coincidindo com a
reflexão feita por James Hardin sobre as marcas do gênero na alternância de reflexão e ação de
protagonistas de Bildungsromane. Segundo Hardin, às protagonistas de Bildungsromane não
basta julgar experiências, medir seu impacto e sua extensão. O mais importante para esses
personagens será sempre vivenciar essas experiências. Como bem sintetiza Cintia Schwantes,
9 Apesar de muitas delas excelentes, penso na tendência de narrativas em que personagens que transgridem as
fronteiras do gênero e da sexualidade pagam, frequentemente de forma violenta, pela ousadia. Entre essas
narrativas destaco Stella Manhatan, de Silviano Santiago, Sergio Y vai a América de Alexandre Vidal Porto, os
contos “Dois corpos que caem” de João Silvério Trevisan, “Entre nós” de Rubens Fonseca, “Mulheres Trabalhando”
de Marcelino Freire, “Ruiva” de Júlio César Monteiro Martins (esses três últimos analisados por Adelaide Calhman
de Miranda em artigo “Sob camadas de preconceitos: a travesti na literatura brasileira contemporânea
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