Table Of Contentestudos semióticos
www.revistas.usp.br/esse
issn1980-4016 vol.13,no2
dezembrode2017
semestral p.110–121
Figurativo, figural e plástico nos textos literários.
Ainda a propósito de Pinóquio
TarcisioLancioni*
TraduçãodeCecíliaMaculanAdum**
Resumo:Partindodeumadetalhadadiscussãoteóricasobreaproblemáticadafiguratividadeedosemissim-
bolismo nos textos literários, com base nos ensaios “Semiótica figurativa e semiótica plástica” de Greimas,
publicado em 1984, e “A mitologia comparada”, de 1963, o artigo explora tais ideias na análise, revista e
ampliada,deumtrechodePinóquio,deCarloLorenzini(Collodi),paraaqualinteressamemespecialosmodos
dearticulaçãoedemanifestaçãodadimensãofigurativa,bemcomoosconsequentesregimesdesignificaçãoa
partirdaíproduzidos.
Palavras-chave:Figuratividade,Pinóquio,semissimbolismo,formantes
1 A figuratividade
menteporcontraste,comolugardepertinênciaapenas
parcial para o estudo semiótico dos textos "visuais",
Retomarei, neste texto, revendo e ampliando, a mas delineando-se, ao mesmo tempo, como campo
análise já esboçada anteriormente (Lancioni, 2009) autônomoelegítimodapesquisasemiótica.
de um trecho de Pinóquio (1883), de Carlo Lorenzini Aparcialidadedofigurativoderivariadeduascate-
(Collodi), para voltar a discutir sobre os modos de goriasdemotivos,umligadoàsuanãoexaustividade
articulação e de manifestação da “figuratividade” na emrelaçãoaodomíniodovisual, jáquenemtodosos
narrativaliterária. textosvisuaissãofigurativos–e,mesmoquandoosão,
Comosesabe,é,noensaio“Semióticafigurativae afiguratividadenãoexauresuascapacidadesexpres-
semióticaplástica”,de1984,queGreimasapresenta, sivas;ooutroligadoàsuanãoespecificidade,umavez
de modo orgânico, as suas ideias sobre a dimensão queafiguratividadenãosedariasomentenoâmbito
figurativadostextos,reelaborandoosresultadosobti- dostextosvisuais,caracterizando,aocontrário,grande
dosnosemináriode1982-1983,edefinindoocampo parte do domínio semiótico, independentemente das
deexercíciodeumapossívelsemiótica figurativa. substânciasexpressivasedoscanaisperceptivos.
“Semiótica figurativa e semiótica plástica” foi es- Afiguratividaderefere-se,defato,aoconjuntodetra-
crito, como é sabido, para servir de posfácio a uma çossensíveisqueconstituem“aaparênciadomundo”
coletânea de ensaios, jamais publicada, organizada e que resulta inteligível apenas na medida em que é
por Jean-Marie Floch, e intitulada De l’abstrait au articulada por uma “grade cultural” de natureza se-
figuratif. Coletânea essa que teria reunido os resul- mântica,preexistenteaoindivíduoeporesseadquirida
tadosdaspesquisasdoatelierdesémiotique visuelle, através do exercício da língua e das outras práticas
criadoporAbrahamZemsze,posteriormente,dirigido semióticas. Égraçasaessa“grade”queasdiferenças
pelopróprioJean-MarieFlocheporFelixThürlemann. realçadaspelossentidossearticulamempertinências,
O posfácio de Greimas se propunha a apresentar e asquais,porsuavez,estãoorganizadasem“coisas”e
a justificar teoricamente o caráter autônomo da se- em“eventos”,gerandoaquiloqueseconstituicomoo
miótica plástica,concebidacomodimensãosemiótica “mundonatural”noqualoindivíduoestáimersoeque
específica dos textos visuais planos. Nesse contexto, defineohorizontesensatoemqueeleage.
a ideia de uma semiótica figurativa surgia essencial- O“mundonatural”, paraGreimas(Greimas, 1975
* ProfessordeFilosofiaeTeoriadaLinguagemnaUniversidadedeSienaediretordoCentrodeSemióticaeteoriadaimagem“Oscar
Calabrese”. Endereçoparacorrespondência: [email protected] i.
** DoutorandadoProgramadeEstudosdaLinguagemdaUniversidadeFederalFluminense(UFF).Endereçoparacorrespondência:
[email protected] i.
estudossemióticos,vol. 13,no2(ediçãoespecial)—dezembrode2017
[1970]; Greimas; Courtés, 2008 [1979]), não é, por- elabora.
tanto, um dado bruto originário, que se contrapõe A figuratividade se revela, portanto, como uma di-
aohomemenoqualesseseriasimplesmentejogado, mensãoquesedisseminaportodoodomíniosemiótico,
mas já é o resultado de uma construção “social”, o e,seasua“legibilidade”dependedagradesemântica
lugardeexercíciodasmúltiplassemióticas“naturais” queestruturaaaparênciasensível,poderíamosdizer
1(espaciais,proxêmicas,gestuais,etc.) quecaracteri- que isso vale seja no âmbito da semiótica do mundo
zamoseuagir natural,sejasemprequeumaaparênciasensívelfor
Nessehorizonteteórico,afiguratividade,ouainda, expressamenteelaboradanas,assimditas,represen-
o conjunto das diferenças que estruturam o campo taçõesdomundo;sejamelestextosvisuais,comoos
fenomênicodosurgir(sejamessasdenaturezavisual, pictóricosoufotográficos,sejamtextosverbais.
acústica,tátil,olfativaougustativa),porumlado,cons- Podemos,voltandoa“Semióticafigurativaesemió-
tituioplanodearticulaçãoexpressivadassemióticas ticaplástica”,defatovercomo,segundoGreimas(2004
“naturais”,aopassoquedooutroéadmitidonointerior [1984]),éjustamenteessagradesemântica,projetada,
do plano do conteúdo da língua natural e de outras porexemplo,sobreasuperfíciedeumapintura,que
semióticasartificiaisnamedidaemqueessas“falam” nos permite organizar os feixes visuais perceptíveis,
domundonatural. constituindo-os em formantes figurativos, isto é, em
unidades expressivas “reconhecíveis” de uma semió-
Acrescentaríamos,poisparece-nosessencial,quea
tica que tem como correlato no plano de conteúdo
língua natural não assume como plano de conteúdo
os “significados” organizados por essa mesma grade
somenteadimensãofigurativado“mundonatural”(ou,
semântica.
asarticulaçõesdasdiferençassensíveis),porexemplo,
EscreveGreimas:
através das descrições, mas assume também o con-
juntodassemióticas“naturais”,comoacontececoma Como esse modo de leitura tem como efeito produzir
miseenscène daspráticassociaisnostextosnarrati- asemiose–critérioquenospermitedecidirquantoà
naturezasemióticadoobjetoemquestão–pode-sedizer
vos. Oníveldiscursivodosentidoseapresenta,detal
quenosencontramosempresençadeumasemiótica
maneira,comooplanotextualsobreoqualéprojetado
quetalvezpossaserdenomimadasemióticafigurativa.
e“recolocadoemsignificação”todoosistemadasfor- Éprecisoacrescentar,entretanto,quetalsemióticanão
massemióticasqueseapresentamnapráticacotidiana esgotaatotalidadedasarticulaçõessignificantesdosob-
jetosplanaresequeelanãorepresentasenãoumponto
equedefinemoqueLotmanteriadenominadosemios-
devistadeterminadoqueconsisteemdotá-lodeuma
fera,naqualsãocolocadososeventosrepresentados,
interpretação“natural”. Nessascondições,asanálises
tornando-osinteligíveiseimediatamentesignificantes, dafiguratividadeencontram-sejustificadaseconstituem
sejamelesrelaçõesespaciais,deposturasgestuaisou umcampodeexercícioautônomo.
deestratégiaspersuasivas. Nocasocontrário,seaabordagemfigurativadosobje-
tosvisuaisnãopassadeuminstrumentoparcial–nos
Issotornaclara,parece-me,aingenuidadedaposi-
doissentidos–decompreensãodosmesmos,aprópria
çãosegundoaqualamútuacompreensãosocialpossa figuratividadebemcomoasinterrogaçõesqueaacom-
serbaseadanosimplescompartilhamentodeumcó- panhamparecemultrapassaroslimitesqueosuporte
planar,lugardesuamanifestação,querassinalar-lhe:
digo linguístico: para compreender aquilo que um
considerando-sequeasqualidadesdomundonatural
discurso exprime, mesmo que de caráter puramente
selecionadasservemparaaconstruçãodosignificante
linguístico, devemos ser capazes de reconhecer tam- dosobjetosplanares,masquetaisqualidadessurgem,
bémoconjuntodasoutrasformassemióticasquesão aomesmotempo,comotraçosdosignificadodaslínguas
naturais,vê-sequeosdiscursosverbaistrazememsi
convocadas;sejamelasformassemióticaspuramente
suaprópriadimensãofigurativa,comressalva,porém,
replicadas(porexemplo,umgestoque“reconhecemos”, dequeasfigurasqueaconstituemsãofigurasdocon-
aarticulaçãodosespaçoscomvalordiverso),mastam- teúdoenãofigurasdaexpressão. Compreende-seagora
bém formas reelaboradas ou formas instituídas pelo porqueosproblemascolocadospelaanálisedos“textos
visuais”secomparamaosdostextosverbais,literários
própriotexto,comoacontecequandosetornamsigni-
ounão[...] (Greimas,2004,p. 81-82).
ficantes,nointeriordeumtextoespecífico,asrelações
precedentemente não valorizadas, conforme ocorre, Greimas diz ainda: “As investigações figurativas
porexemplo,comasemióticaplástica,comostextos constituem, por conseguinte, um componente autô-
poéticosoucomalinguagemdomito,comoveremos nomo da semiótica geral, embora elas não pareçam
mais adiante. Sob essa perspectiva, a figuratividade estaremcondiçãodeespecificarodomínioparticular
aparentaestardestinada,nosdiasatuais,agerarefei- quesetentacircunscrever”(2004,p. 82),queéaquele
tosdeilusãoreferencial,permitindo“reconhecer”um campo dos textos de natureza estritamente visual e
mundodecoisasdentrodostextosetambémmanifes- planar. Essestextosparecem,aocontrário,encontrar
taroutrasformassemióticasqueotextoincorporaou o seu caráter específico na “semiótica plástica”, que
1Otermo“natural”continuaaserusadoentreaspas,poispodeserconsideradocomotalapenasemcontrastecomassemióticas
baseadasemcódigos“artificiais”,expressamenteelaboradospelohomemparafinsdecomunicaçãoeda“conservação”deumaformade
comunicaçãocomumaespecíficacaracterizaçãotemporal.
111
TarcisioLancioni
concerneàpossibilidadedeorganizarostraçosdama- O “plástico” vem, então, a se fundir com uma di-
tériapictóricanãoapenasemformantesfigurativos,ou mensãoabstratamaisgeraldafiguratividade,aqual,
seja,emunidadesexpressivasque,conformedito,têm no âmbito da semiótica do mundo natural e de al-
como correlato semântico as unidades culturais da gumas semióticas construídas, como as pictóricas,
gradecultural,permitindo-nosreconheceruma“cena” apresenta-secomoorganizaçãoespecíficadoplanoda
povoadapor“objetos”epor“eventos”,mastambémem expressão,enquantonoâmbitodeoutrassemióticas,
formantes plásticos, isto é, em unidades expressivas como a linguística, apresentar-se-iam, ao contrário,
independentesdos“efeitosicônicos”,capazesdecon- como um nível relativamente autônomo da figurati-
trair correlações com unidades semânticas diversas vidade, uma figuratividade “abstrata”, subjacente à
daquelasselecionadaspelosformantesfigurativosno dimensão“icônica”,aqualestariarelacionadaaques-
momentodoreconhecimentofigurativo. tãodo“reconhecimento”ou,nooutropolodarelação
Taisformantesplásticosseriam,comosesabe,orga- enunciativa,do“fazer-aparecer”atravésdoqualodis-
nizadosemcategoriasplásticas: eidéticasecromáticas, cursoseconfiguracomo“cena”povoadaporatorese
manifestadasdemodoconstrastivonoespaçoplanar eventosemumadimensãoespaço-temporaldefinida.
(por sua vez, articulado em categorias topológicas) Se seguimos essa perspectiva, na qual não encon-
constituídopelocampodarepresentação. tramosmaissemióticasdistintas,masníveisdiversos,
A semióticafigurativa sedefineentãocomoâmbito quesecolocam,todavia,emumacontinuidademodu-
relativamenteautônomodasemióticageral,indepen- lada e não como articulações discretas (qual seria o
dentedasubstânciaexpressivademanifestação. Um limiarqueseparaumafiguratividadeicônicadeuma
campoqueéconvocadoasedarcontadosefeitosde figuratividadeabstrata?),oqueéfeitodapossibilidade
“identificabilidade”dasfigurasdomundoedassuas dedistinguirtiposdiversosdeformantes?
relações,eaincorporarquestõescomoaquelabarthe-
Poroutrolado,apossibilidadededistinçãodosfor-
sianada“retóricadaimagem”,aquelabachelardiana
mantes de tipo diversos continua a ser útil e impor-
docarátersimbólicodoselementosnaturais,ouaque-
tante,enãoapenasnoestudosemióticodostextos“vi-
las conectadas às pesquisas sobre os “motivos” em
suais”. Bastarecordar,aesserespeito,asobservações
História da Arte e em Etnoliteratura, e, poderíamos
formuladaspelopróprioGreimas,notextointrodutório
talvezacrescentar,todasasquestõeslevantadaspela
deumaoutracoletâneadeensaios,dedicadosaotexto
iconologia,emsuasdiversasversões.
poético,emqueerareveladaaautonomiaexpressiva
Asemióticaplásticaconcerniria,aocontrário,aum dostraçosfônicoqueseorganizamemconfigurações
modo específico de existência da substância expres- expressivasautônomas,comoasaliterações,asrimas,
siva, queéaquelevisual-planar. Mas, jánoprefácio asmodulações,e,demodogeral,oconjuntodostra-
àpublicação,emActesSémiotiques(n. 60,1984),de çossuprassegmentárioscapazesdeseencarregarde
“Sémiotiquefigurativeetsémiotiqueplastique”,Grei- “outras” funções semióticas em relação às unidades
mas notava como o desenvolvimento das pesquisas lexicaisoufrasais. Essaéumaquestãoque,todavia,
sobreofigurativo,sobretudoaquelasconduzidaspor estende-separaalémdocampopropriamente“poético”.
Denis Bertrand no âmbito dos textos literários, colo- Somente a título de exemplo, no trecho de Pinóquio
cavaemquestãotalcaracterizaçãopuramentevisual sobreoqualnosdeteremos,ficaevidenteaoposiçãofo-
eexpressivadasemióticaplástica: néticaentreavozdasfuinhas(“pissipissi”)eo“latido”
dePinóquio(“au-au-au”),quemanifestamaoposição
[...] areflexãocoletivaempreendidasobreaproblemá-
semânticaentreadimensãocomunicativado“segredo”
ticadafiguratividade,permitindoreconhecerváriosní-
veis de profundidade nos quais ela se manifestava e eaquelada“revelaçãopública”.
seexplicitava,sópodiatraduzir-se,indiretamente,no Parece, portanto, que se perfilam duas ordens de
reexamedasaquisiçõesprovisóriasdasemióticavisual:
problemasrelacionadosaduasordensdecomplexida-
asemióticaplástica,porexemplo,nãocorresponderia
aonívelprofundoeabstratodafiguratividade,conceito des,umarelativaàorganizaçãodoplanodaexpressão,
demaiorabrangência? (Greimas,1984,p. 4)2 a outra relativa ao plano do conteúdo3. Do lado do
planodaexpressão,ostextos,emsuasmanifestações
2 Tradução nossa para o trecho original: «[...] la réflexion collective entreprise sur les problèmes de la figurativité, amenant à
reconnaîtreplusieursniveauxdeprofondeuroùellesemanifestaitets’explicitait,nepouvaitqueprovoquer,parricochet,leréexamendes
acquisprovisoiresdelasémiotiquevisuelle: lasémiotiqueplastique,parexemple,necorrespondait-ellepasauniveauprofondetabstraitde
lafigurativité,conceptdeportéeplusgénérale?».
3Estamosconscientesdacomplexidadedaoposição. Seumasemióticaésempreaarticulaçãodeumplanodeexpressãoedeum
planodeconteúdo,essesnãocoincidemnecessariamentecomaoposiçãoentresensível(expressão)einteligível(conteúdo),jáque,sobuma
perspectivagerativaeestratificadadosentido,níveisdeconteúdopodemfuncionarcomoexpressãodeoutrosníveisdeconteúdo,queé,
justamente,oproblemaquenosinteressa. Poroutrolado,é,talvez,aindaoportunoconsideraraspeculiaridadeseaspossibilidadesde
organizaçãodasubstânciasensívelquecolocaquestõesparticularesàspossibilidadesde“formaçãosemiótica”eaospossíveisregimes
perceptíveis,quepodemassumirfunçõesevaloresmúltiplosnodeterminardoemergirdepossíveisefeitosdesentidoenocondicionaras
possibilidadesdecomunicação. Sobreotema,emparticular,consultarMarsciani,2014.
112
estudossemióticos,vol. 13,no2(ediçãoespecial)—dezembrode2017
concretas,podemserconstituídos(esustento,melhor mióticasdeníveldistinto,manifestadasdentrodeum
dizendo, que o são de modo geral, exceto em casos mesmotexto;ouseja,anecessidadedecompreendero
artificiaisparticulares)porconjuntosdetiposdiversos fatodequeos“significantes”parecemquererseparar-
deformantesqueseencarregamdefunçõessemióticas sedeumafunçãosemióticaimaginadacomounitária.
diversas. Trata-se de uma necessidade para a qual continuo
Otextonãoseria,pois,estruturadoporumaúnica a pensar que a noção deformante, em oposição a de
função semiótica que liga um significante a um sig- significante,possadarumacontribuiçãosignificativa.
nificado, segundo um único “código”, mas, por um A outra ordem de complexidade, como dizíamos,
conjuntodefunçõessemióticasqueagem“emfeixe”. está ligada à organização do plano do conteúdo e é
O plano da expressão de um texto não seria, então, diretamente convocada pela observação de Greimas
homogeneamentedeterminadoporumaúnicaforma relativa à “profundidade do figurativo”. A distinção
semiótica (como aquela que pode interessar ao lin- entre uma figuratividade “icônica” e uma figurativi-
guista que procura reconstruir a langue), mas, por dade“abstrata”podeserconsideradacomoadquirida
uma multiplicidade de formas semióticas distintas, econsolidadagraçasaumalongasériedetrabalhos,
possibilitadasporarranjosdiversosdasubstânciaex- dentre os quais recordamos em particular aqueles
pressiva, constituídos como funtivos (formantes) de pioneiros no âmbito poético e literário de Denis Ber-
funçõessemióticasdiferentesqueagememacordo. trand (1985) e de Claude Zilberberg (1988). Nesses
Não se trata da já chamada “autonomia do signifi- trabalhos, evidenciam-se não apenas o modo como
cante”,umaquestãomalcolocada,masquerevelava, asfigurasapresentadaspelostextosliteráriosreque-
talvez, a intuição de um problema semiótico efetivo. remser“lidas”,tantonoplanoenunciativoporparte
Nãohánenhuma“autonomia”numsignificanteque, dos atores discursivos, quanto no plano da enunci-
na ausência de um significado, não seria mais signi- ação pelo enunciatário, revelando em transparência
ficante;mashá,seguramente,umaarticulação,uma a forma da grade semântica que as torna, de fato,
arquitetura, de formas semióticas diversas. Não há inteligíveisenquantoconstituintesdeummundo“coe-
um significante redundante que se torna autônomo, rente”e“sensato”,mastambémsemostracomoessas
masexistem,entrelaçados,numerosos“significantes” mesmasfiguraspodemserposteriormenteanalisáveis
(formantes)capazesdemanifestarsignificadosespecí- emtraçosconstituintes,passíveisdeserexplicitados
ficos. pelasdescriçõesoupermanecerimplícitosnaprópria
Alémdisso,nãomepareceocasodeconvocar,para estruturadasfigurasapresentadas. Taistraçosconsti-
esse propósito, a questão frequentemente invocada tuintesaparentamsersuscetíveis,sintagmaticamente,
da conotação. Não se trata, de fato, para o semió- de se reiterar no interior do texto, dando origem a
logo,dedistinguirumaformaprimária,denotativa,de isotopiasespecíficas,e,paradigmaticamente,degerar
outras formas secundárias ou conotativas. Trata-se, microssistemasorganizadosemformasconstrastivas
simplesmente,deformassemióticasqueco-ocorrem correlacionadas a categorias semânticas específicas,
naformaçãodeumtexto. Poroutrolado,oconceitode segundoumamodalidadequepareceestartotalmente
conotaçãopode,talvez,conservarumapertinênciano afinada com aquela da semiótica plástica, somente
âmbito,delineadocompropriedadeporHjelmslev,da desenvolvidanointeriordoplanodeconteúdo. Éevi-
apreciaçãocoletivadasformassemióticas,graduadas dentequeéaessasformassemióticasqueGreimasse
earticuladasdemododiversoemcontextosculturais referequandoseperguntasenãoseriaoportuno“inte-
diversos. Questão“etnossemiótica”,estaúltima,que grar”asproblemáticasdasemióticaplásticaàquelas
encontra a sua pertinência em relação à “formação dafiguratividadeabstrata.
textual”namedidaemqueessas“apreciaçõessociais” Zilberberg (2006 [1988]), em várias ocasiões, su-
se perfilam no interior dos próprios textos, nas prá- geriu a adoçãodo termo “figural” para designar esse
xisenunciativasimplicadas,eno“campofenomênico” níveldefiguratividadeabstrataeiniciouumapesquisa
enunciado. originalepromissora,mesmoqueaindadistantedeser
Não é, enfim, o caso, acredito, de se convocar a completa(oupelomenossuficiente),paraindividuar
questão–essatambémmalcolocada,ameuver–das sistemasdearticulaçãodessadimensão(partindo,por
“semióticassincréticas”,termocomoqualsepoderefe- exemplo,daexperiênciadafonologia,hámuitotempo
riratextos(nãoasemióticas)manifestadosporcombi- empenhada na descrição coerente e sistemática dos
naçõesdesubstânciasdiversas. Paraumasemiótica traçospertinentesdefigurasacústicas, comosãoos
queseocupadeformas,esecadatextoéco-formado fonemas)quepodepermitiradescrição,demodoho-
porformasdiversas,cadatextoserátambémresultado mogêneo,daarquiteturaabstrata(justamentefigural)
deumsincretismosemiótico. dosdiversostiposdefigurasqueasdiversassemióti-
Permanece, no fundo, ao que me parece, a neces- cas podem organizar no plano da expressão e no do
sidadedecompreendermelhorumaquestãoque,em conteúdo.
todocaso,surgeapartirdaexigênciadearticularse- Alémdeumamelhordescriçãodosefeitossemânti-
113
TarcisioLancioni
cosgeradosnointeriordostextospelasrelaçõesentre vianasegundoaqualumasemióticaobjetonãoéum
asfiguraseporsuasreiterações,essaabordagempro- sistema de signos, mas um sistema de significação,
metesermuitoprofícuaparamelhoraronossoconhe- umsistemaderedessubjacenteaossignos(Ruprecht,
cimento de outros âmbitos conectados, como aquele 1984).
dosefeitosde“motivação”(tratar-se-iadarelaçãode Tal hipótese permitia, justamente, compreender
umamesmacategoriafiguralsobreambososplanos ofuncionamentodessasredese justificaroestatuto
deumasequênciatextual?),ouaqueledasassimditas de sistemas que se aninham dentro de outros siste-
“sinestesias”(tratar-se-iadaretomadadeumamesma mas,como,porexemplo,aquelequeestáàfrente dos
arquiteturafiguralporumaordemsensorialparaoutra fenômenos de significação relacionados à entonação
ordem?). (prosódia) e que coexistem com os fenômenos “pro-
Em todo caso, a individuação de uma dimensão priamente” linguísticos, os quais, segundo Greimas
figurativaabstratacapazdesuportaraemergênciade (Ruprecht,1984),evidenciamcomo,nointeriordalín-
sistemassemióticos“secundários”4 constitui,semdú- guanatural,existemfenômenosdeoutranaturezaque
vida,umaconfirmaçãoposteriordocarátercomplexo são,precisamente,semissimbólicos. Osemissimbólico,
dasformastextuaisedassuasarticulações,quenão portanto,alémdeterrelevânciaporquepermiteisolar
podemserconsideradascomoasimplesarticulaçãode earticularfenômenossemióticosparticulares,consti-
umaformadaexpressãoedeumaformadoconteúdo, tuiumahipóteseimportantepoispermite“abrir”essas
mas, que devem ser incluídas como sistemas consti- redes,mostrandoomodocomosistemassemióticosse
tuídos por mais formas semiótica imbricadas, e que aninhamdentrodeoutrossistemassemióticos.
impõem ao semiótico a necessidade de se interessar Ainda que não formulada nesses termos, parece-
nãopelo“significadodotexto”,maspelos“significados me que a hipótese, passível de ser sintetizada como
no texto” – fórmula que retomo de um velho ensaio presençademicrossistemasparadigmáticosinternos
de Jean-Louis Schefer (1969), que a meu ver marca ao desenvolvimento sintagmático dos textos, tenha
apassagemdaperspectivada“semiologia”dosanos sidocontempladaporGreimasdesdeseusprimeiros
1960à“semiótica”. escritosdedicadosàmitologia,comopodefacilmente
É justamente por esse motivo, porque somente mostrar uma releitura, nesses termos, do ensaio “A
“notexto”épossívelestudarosmodosespecíficosem mitologiacomparada”,escritoem1963(Greimas,1975
queformassemióticasdiversassearticulamesesus- [1970]). Osemioticistapartedasconsideraçõeslevan-
tentamreciprocamenteparadarvidaaos“objetosde tadas por Lévi-Strauss no decorrer da breve análise
sentido” – seja o sentido projetado e construído por dedicada aos mitos do ciclo tebano (Cadmo-Édipo),
uma instância enunciante específica, seja o sentido contidas no ensaio “A estrutura dos mitos”, de 1955
queemergedefenômenosculturais“coletivos”oude (Lévi-Strauss,1985[1964]).
práticas sociais mais ou menos realizadas –, que a Nessetexto,recordemos,oantropólogoseinterro-
escolha“textual”porpartedasemiótica,mesmoque gavasobreaexistênciaesobreasespecificidadesde
suficientementecontestadaemanosrecentes,emesmo uma“linguagemdomito”,concluindoqueesteexiste
que, certamente, não seja necessariamente a única emformadelinguagem“segunda”,sobrepostaaodis-
paraapesquisasemiótica,permanece,ameuver,uma curso“primeiro”,linear,dalinguagemverbalcomum.
escolhaestratégicafundamental. Em particular, a linguagem do mito assumiria como
Emumaentrevistaconcedidanomesmoanodapu- unidadesexpressivasalgumasunidadesdalínguana-
blicaçãode“Semióticafigurativaesemióticaplástica”, tural, já dotadas de significado pelo próprio sistema
Greimas(Ruprecht,1984)sustentavaqueainovação linguístico,paraatribuir-lhesumplanodesignificado
semióticaconsistianaformulaçãoenashipóteses;e, posteriordentrodeumsistema“segundo”,queseria
entreessasinovações,evidenciavaumaquehaviaper- justamenteomitológico.
mitidocontemplaraexistênciadesistemassemióticos Estamos,portanto,diantedeumsistemasemiótico
diversos. Segundoele,talhipótese,nessecaso,consis- significantearticulado–dealgummodo“parasitário”–
tiaemafirmaraexistênciadesistemasdesignificação internoaumoutrosistemasignificante. Seadotamos
que foram denominados semissimbólicos (Ruprecht, aterminologiatardiadeGreimas,inspiradaemHjelms-
1984). Ahipótesedaexistênciadessessistemas,dos lev,poderíamosdizerqueasunidadeslinguísticassão,
quaisGreimasdescreveofuncionamentoeoalcance poracaso, capazes deassumirfunçõessignificantes
no decorrer da entrevista, manteve-se inovadora e diversas,poisestãointegradasasistemassignificantes
importantenãoapenasporquepermitiaquesejustifi- distintos;ouseja,poderíamosdizerque unidadesde
cassemalgunsfenômenossemióticosespecíficos(cf. o manifestação“idênticas”(lexemas,sintagmas)podem
sim e o não gestuais dos quais se ocupou Jakobson, serassumidascomoformantesdistintos: nessecaso,
outodaasemióticaplástica),masporquepermitiaque umformantepropriamentelinguísticoeumformante
sedesenvolvesseposteriormenteaafirmaçãohjelmsle- mitológico. Aquilo que Lévi-Strauss denominava mi-
4Aessepropósito,olharasconsideraçõesprecedentes.
114
estudossemióticos,vol. 13,no2(ediçãoespecial)—dezembrode2017
tema, a unidade significante da linguagem do mito, 2. Estas unidades significativas devem se organizar
coincidiria, em outras palavras, com o formante de numarededupladerelações:
umsistema“segundo”,manifestadoporumaunidade a)cadapardeunidadesdarelaçãoaritméticaconsti-
expressivaqueseencarregatambémdoformante lin- tuiumparoposicionalcaracterizadopelapresençaou
ausênciadeumtraço(outraços)distintivodotipo:
guísticodebase.
Aoretomaresseensaio,Greimasseencontra,pois,
Aversusnão-A
já, ou desde o início, refletindo sobre as hierarquias
desistemasdesignificaçãointernasaconfigurações
b)osdoisparessãointerligadosglobalmentepormeio
textuaisapenasaparentementelinearesehomogêneas
deumacorrelação. Afórmulabemsimplificadadomito
(monossistêmicas): seráentãoaproporçãoseguinte:
A B
Umamitologialhesurgecomoumametalinguagem“na- ———— ≈ ————
tural”, ou seja, como uma linguagem cujas diversas não-A não-B
significações segundas se estruturam servindo-se de
umalínguahumanajáexistentecomolinguagem-objeto.
Procura, então, quais são e como funcionam as “for- (Greimas,1975,p. 111)
mas”dessenovosignificantecomplexopararealizaras
significaçõesmíticas. (Greimas,1985,p. 109)
Nessaformulação,encontramosvelada,comoha-
víamosantecipado,aformasemióticaque,anosmais
ParaGreimas,essetrabalhodeLévi-Strausséim-
tarde,Greimasteriaindicadocomotermo“semissim-
portante não apenas porque lança luz a esses tipos
bólico”, e que se apresenta como a forma semiótica
deestruturassemióticas“secundárias”,mastambém
generalizadadosmicrossistemasdesignificaçãosobre
e, talvez sobretudo, pelo modo como o antropólogo
osquaissesustentaofuncionamentonãoapenasde
descreveasformasespecíficasdalinguagemdomito,
determinados“códigoscomunicativos”,comodissemos
queexigem,segundoGreimas,sergeneralizadasein-
acima, mas também de todos aqueles sistemas que
tegradasemumateoriageraldasignificação. Segundo
“vivem”nointeriordeoutrossistemassemióticoscujas
Lévi-Strauss,recordemos,paracompreenderostraços
unidadesdemanifestaçãodesfrutamparaorganizaros
essenciaisdasignificaçãomitológicaénecessáriodar
próprios formantes específicos. A proposta posterior
inícioaumaleituraparadigmáticadoprópriomito,ca-
em relação a que Greimas apresentava no ensaio de
pazdeevidenciar,subjacenteàlinearidadenarrativa,
1983eraadeconsideraraoportunidadedenãoselimi-
umasériederecorrênciasconstituídasdesimilitudes
tar,comonoexemplodeLévi-Strauss,aevidenciaros
eoposições.
contrastesentremacro-unidadeslinguísticas(lexemas
O notável estudo estrutural do mito, realizado já
ousintagmasinteiros,ex: “ÉdiposecasacomJocasta”
há algum tempo por Claude Lévi-Strauss, não deixa
[relaçõesdeparentescosuperestimadas]: Édipomata
nenhuma dúvida quanto a este ponto: a leitura do
Laio[relaçõesdeparentescosubestimadas]=autocto-
mitonãodevesersintagmáticanemaderiràlinhanar-
niadohomem: negociaçãodaautoctoniadohomem),
rativa; consiste numa apreensão, inconsciente, com
e sim de passar a uma análise posterior em traços
frequência,paraousuário,derelaçõesentreunidades
distintivos, prevendo “proporções míticas” de outro
dosignificadomíticodistribuídasaolongodessanarra-
nível, a depender de se as relações ocorrerão entre
tiva. Estasunidadesdesignificado,apesardariqueza
semas(traçosdistintivos),lexemas(depois,sememas),
dossignificantes,seapresentamnanarrativaemnú-
categoriassêmicasouarquilexemas.
merobemlimitado,podendoserreduzidaaexpressão
Esta necessidade última de individualizar “uni-
do mito, dessa forma, a uma proporção matemática.
dades de medida específicas” perdeu relevância no
(Greimas,1975,p. 110)
desenvolvimento,cadavezmenos“linguístico”,dateo-
Defato,asunidadessignificantesdalinguagemdo
ria, mas nos deixa, em todo caso, a possibilidade de
mito,osmitemas(ouosformantesmitológicos),nãose-
vercomoosformantesdossistemassemissimbólicos
riam,portanto,osúnicoselementoslinguísticos,mas
“segundos”possamassumir,comounidadedemanifes-
relaçõesespecíficasentreeles: asunidadesprimeiras
tação,aunidadedetamanhoedeextensãodiferente
dalinguagemdomito,aindaquemanifestadasatravés
daqueladosistemaassumidocomo“semióticaobjeto”.
de unidades linguísticas, não seriam propriamente
ComaspalavrasdeOmarCalabrese(1999),podemos
“unidades”dalínguaverbal,masarranjosespecíficos
então dizer que os sistemas semissimbólicos podem
destasnointeriordodiscurso. ArranjosqueGreimas,
ocorrersejaemnível“molecular”(traçosdistintivos),
desenvolvendooprincípiodeanálisedeLévi-Strauss
sejaemnível“molar”(macroconfigurações).
sobre umcorpus mitológico trazido dos trabalhos de
Estãoamplamenteconsolidadasarelevânciadesses
GeorgesDúmezil,generalizacomaseguintefórmula:
sistemasnaeconomiageraldateoriaeasuacentrali-
dadenoestudodefenômenossemióticosespecíficos,
115
TarcisioLancioni
comoaqueledalinguagemmítica,dapoeticidade(“É umafuinha,souumboneco!”. Masparaocamponês,
osemissimbólicoquepareceserocriadordapoetici- oquedeterminaaidentidadedePinóquioéapenasa
dade. Essadescobertafoiumadasmaisimportantes posiçãoqueeleocupa: tentouroubarequemroubaa
dosúltimostrêsouquatroanos.” (Greimas,1995,p. uvaécertamentecapazderoubartambémasgalinhas,
163)5),oudaslinguagensplásticasdasquaispartimos. portanto,Pinóquioéumafuinha. Ocamponêsentão
Resta compreender, parece-me, o alcance que essas ocarregaosombros,“comoselevamoscordeirosde
linguagenstêmnadefiniçãodosregimesdesignifica- leite”,levando-oatéoquintaldasuacasa,ondelheco-
ção“normais”dostextos,apartirdosquais,nointerior locaumacoleiradecachorrocompontasmetálicas,eo
detextos“quaisquer”,emergemredesparadigmáticas acorrentaaummuro. Eraacoleiraqueporanoshavia
estruturadasemsistemassemissimbólicosquegeram sido usada por Melampo, o antigo cachorro do cam-
efeitosdesentidoespecíficos,distinguíveisporaque- ponês, morto recentemente, do qual Pinóquio herda
lesproduzidosapartirdalinearidadediscursiva,sem tambéma“casa”,acasinhadecachorroondepoderá
quesepossa, porém,falardeverdadeirasepróprias abrigar-se,eaindaosdeveres,jáqueocamponêslhe
“linguagensespecíficas”,comonocasodomito,oude atribuiatarefadefazeraguardadogalinheiroaliao
“efeitospoéticos”. Taissistemasparecemancorar-se, ladoedelatircasoapareçamasfuinhas. Depoisdisso,
sobretudo, na dimensão figurativa dos textos, trans- ocamponêsentraemcasaetrancaaporta,deixando
formandoaprópriafiguratividadedesimpleslugarda Pinóquio sozinho com sua consciência e um amargo
realização de ilusões referenciais em “pretexto” para desabafosobreoserroscometidos. Umdesabafoque,
gerar efeitos de sentido complexos. É isso o que foi desta vez, nos diz Collodi: “vem justamente do seu
denominado “profundidade do figurativo” (Bertrand, coração”, diferentemente das apressadas desculpas
1985)equeparecepresidiràquiloqueatradiçãolite- com as quais havia tentado livrar-se das encrencas
ráriadenominagenericamente“simbolismo”(Lancioni, diantedovaga-lume.
2009). Assim,sepoucoantesPinóquioera“umafuinha”,
pelomenosfuncionalmente,assumindoopapeltemá-
tico(“predador”queatentacontraaspropriedadesdos
2 A análise camponeses)eaposiçãodafuinha(capturadopelaar-
madilha);agoraPinóquioé“umcachorro”,umavezque,
Gostaríamos,agora,decolocaràprovaessasnotas demodosemelhante,assumetantoopapeltemático
sobreafiguratividade,examinandoumtextonarrativo (“defensor”contraospredadoresqueatentamcontra
muitopopular,oPinóquio,deCarloLorenzini(Collodi), aspropriedadesdoscamponeses)quantoaposiçãodo
doqualextraímosumasequênciacompreendidaentre cachorro(portadordecoleiraeocupantedeseuespaço
ofinaldocapítuloXXeoiníciodocapítuloXXIII6:édia, legítimo, a casinha de cachorro). Nova identidade,
ePinóquiocorrepelaestradacomoobjetivodechegar de antipredador, que Pinóquio assume consciencio-
àcasadafada(oubelameninadoscabelosturquesa) samente. Acordadoporum“pissipissi”dasfuinhas,
“antesqueanoiteça”. Súbito,foitentadopelavisãodas coloca-se, primeiramente, a negociar com elas: uma
uvasnoscampos,e,comumarepentinamudançano galinhajápeladaemtrocadaproteção,como,aoque
percurso,obonecopulanocampo“paracolheralguns parece,jáfaziaMelampo. Depois,todavia,rompecom
cachosdeuvamoscatel”. Ocampo,porém,éprotegido o pacto estabelecido para contribuir com a captura
porumaarmadilhacolocadaalipeloscamponesespara dasfuinhas. Estas,assimquesesentiramsegurasda
capturarasfuinhasqueduranteanoitedepredamos cumplicidadedePinóquio,enfiaram-senogalinheiro.
galinheiros. Pinóquiosevê,assim,comaspernaspre- Masoboneco-cachorroasfechaalidentroeentãose
sas na armadilha, que o acorrenta ao chão. Em vão, colocaalatirsonoramente("au-au-au"),acordandoo
elepedeajudaaumvaga-lumedepassagemque,como camponês que corre para fora e captura as fuinhas.
fezumoutroinseto,ogrilo,dá-lhe,aocontrário,uma Ocamponêsrecompensa,então,Pinóquio,dando-lhe
liçãodemoral: “Erasua,auva? Enãosabequenãose a liberdade e qualificando-o como um “bravo rapaz”,
podeapropriar-sedosbensalheios?”,aqueoboneco oqueoredimedainfameidentidadede“fuinha”atri-
respondeapressadamente: “Sim,sim,estoudeacordo, buídaaeleanteriormente. Livredacoleira,Pinóquio,
não faço mais. Mas, enquanto isso, livre-me desses aochegardodia,podevoltarparaaestradaprincipal
ferros afiados!”. Nesse meio tempo, chega a noite e eretomarasuacorridarumoàcasadafada.
comelaumcamponês,que,aoencontrarapresana Toda essa sequência parece isolável do resto da
armadilha,nãodáouvidosàsdesculpasdePinóquio narrativa. Para fins de uma análise ao menos parci-
e nem às suas recriminações identitárias: “Não sou almenteautônoma,jáqueapresentaautonomianar-
5Traduçãonossaparaotrechooriginal: «E’ilsemisimbolicochesembraesserecreatoredellapoeticità. Questascopertaèstatauna
dellepiùimportantidegliultimitreoquattroanni».
6 AscitaçõesdePinóquioforamextraídasdaediçãocríticaeditadapelaFondazioneCarloCollodi(http://www.pinoquio.it/
fondazionecollodi/le-avventure-di-pinoquio). Aediçãonãoapresentanúmerosdepágina,apenasasindicaçõesdoscapítulos,
nasquaisnosapoiamos. Abrevidadedoscapítulostorna,emtodocaso,fácilalocalizaçãodascitações.
116
estudossemióticos,vol. 13,no2(ediçãoespecial)—dezembrode2017
rativa, uma série de marcadores que indicam seus pelacorridaeseconfiguracomoumtipode“distração”
limitese,enfim,umasériedeisotopias(figurativase de Pinóquio em relação ao seu programa narrativo
temáticas) inteiramente incluídas ali, juntamente, é principal: surge no ambiente circundante um novo
claro,aoutrasisotopiasquesimplesmenteatravessam objetodevalor,auva(versusacasa),quedetermina,
asequência,conectando-a,porumlado, aorestoda defato,ainstauraçãodeumnovoprogramanarrativo
narrativadaqualconstituiumepisódioe,poroutro, aindamaisurgente(aplacarafome),oqual,nojuízo
demodomaisrarefeito,àculturacamponesaqueserve de Pinóquio, mostra-se compatível com o programa
defundoaotexto7. principal,masque,aocontrário,nãooserá,compor-
tandoumasériedeprovaspragmáticas,cognitivase
patêmicasqueseconcluirão,aparentemente,comodi-
2.1 A coerência narrativa
zíamos,comaausênciadetransformaçõesnarrativas
relevantes, uma vez que Pinóquio, ao final, voltará a
A sequência aparece emoldurada pelo desenvol-
correrrumoàcasadafada,sem,todavia,terpodido
vimento de uma mesma ação, a corrida de Pinóquio,
aplacarasuafome.
que constitui, pois, uma sequência “moldura” englo-
Atrocadeprogramanarrativosetraduz,pois,em
banteefunciona,assim,comomarcadordasequência
umasériedetransformaçõesdiscursivasfortemente
englobadaquenosinteressa: noinício,Pinóquioestá
ressaltadaspornumerososcontrastesfigurativosque
correndorumoàcasadafadae,nofinal,nósorevemos
manifestamariquezasemânticadatramadotexto.
correndorumoàmesmameta. Acasadafadaconsti-
tuievidentementeoobjetodevalordeseuprograma
narrativo, uma vez que a urgência manifestada pela
2.2 A cena discursiva
corridaparecemodalizarcontemporaneamentesejao
sujeito, Pinóquio, segundo um querer-fazer intenso, Procuramosmostrar,antesdetudo,queasduas
seja o objeto-valor, casa, por conta de seu caráter sequências, a englobante e a englobada, constituem
desejável. duas cenas discursivas bem distintas temporal e es-
Asequênciainteiraseapresenta,dessemodo,como pacialmente: a primeira é diurna, ao passo que a
umaespéciedesuspensão,semumaverdadeirafun- segundaénoturna(luzversusnoite);aprimeiraéca-
ção narrativa, uma vez que, antes e depois desta, o racterizadaporumaespacialidadelineareorientada
programa narrativo parece inalterado. Na realidade, pelaestradaaolongodaqualPinóquiopodecorrerem
hásimumadiferençaenosperguntaremosaofinalda uma direção precisa; a segunda é caracterizada por
análisequalasuarelevância: noiníciodasequência, umaespacialidadenãoorientada,aqueladoscampos,
Pinóquioesperachegaràcasa“antesqueanoiteça”,e, quesurgelocalizadaemtornodacasadocamponêse
portanto o objeto-valor surge condicionado por uma semdireçõesmarcadas. Aescassavisibilidadenoturna
cláusulatemporal,aopassoque,aofinal,Pinóquiore- e a ausência de uma orientação linear da sequência
tomaacorridarumoàcasadafada,massemcláusula englobada,emoposiçãoàvisibilidadeeàlinearidade
temporal. A noite já transcorreu e Pinóquio deverá da estrada, caracterizam as duas sequências como
descobririssodemodotrágico. “cognitivamente”opostas: nasequênciaenglobante,a
Opulonoscampos,motivadopelodesejodecomera identidadedasfiguraseoseuvalorsemostramclaros
uva,contradizimediatamenteaurgênciamanifestada eestáveis,enquantonasequênciaenglobadaaidenti-
7Desdeofinaldosanos1960,comolembraGreimas(1983),asemióticaéatravessadaporumdebate,estéril,acercadeumpresumido
conflitoentre“abertura”e“fechamento”,entrepráticasruinsdofechamentotextualepráticasvirtuosasdaaberturatotal. Duvidoque
asduasviassejampraticáveis. Nãopodemosestudarumfenômenoanãoser“fechando-o”,ouentão,constituindo-ocomofenômeno,
justamente. Mastal“fechamento”dependeemgrandepartedopontodevistaapartirdoqualéconduzidaaanáliseedoscritériosadotados
paraaprópriaanálise. Asequênciaaquianalisadanãopodeser“fechada”senãodeummodomomentâneoerelativo. Omesmovalepara
todooPinóquionoqueconcerneaouniversoliterárioouàculturaàqualpertence,eistovaletambémparaasisotopiasquealirastreamos.
Porexemplo,comojáemergedobreveresumo,notextoselecionado,surgeumaisotopiaconcernente àrelaçãoentreohomemediversas
figuras“animais”taiscomoocachorro,afuinhaeovaga-lume. Essaisotopiaencontraumarealizaçãodentrodasequência,tantoquenão
encontraremosmaisnemcachorros,nemfuinhas,nemvaga-lumesnorestodePinóquio. Trata-se,justamente,deumfechamentorelativo,
porque,setrocamossomentedenível,vemosreaparecer,emoutrolugar,ascategoriastaxonômicasqueessasmesmasfigurasmanifestam:
ogatoearaposaformamumaduplaparalelaàqueladocachorroedafuinha,aopassoqueovaga-lume,comojáfoiacenado,constituiuma
boa“réplica”dogrilo. Noprimeirocaso,vemoscolocadoemjogooestatutoproblemáticodosanimaisdomesticados(cãoegato)que,porum
ladosãochamadosadefenderasprovisõeshumanascombatendoospredadoresprovenientesdomundo“selvagem”(araposaeasfuinhas
predadorasdasprovisõesanimaiseosratospredadoresdasprovisõesvegetais);poroutrolado,enquantoanimaisdomesticados,cãese
gatosparecemestarsujeitoscontinuamenteao“chamadodafloresta”deseusparentesselvagens,ocupandosempreumaposiçãoincerta
entreomundo“social”eaquele“selvagem”;aopassoqueosinsetos,animaissociais,parecemcontinuamentecolocarotemadasregras
deconvivênciacoletivaemoposiçãoaosimpulsosegoístaseindividualistas. Tambémessaextensãoatodoocontopodeserconsiderada
relativa,jáqueaisotopia“animal”convocaparadentrodotextoumaquestãoculturalmaisampla,aqueladosvaloresdosanimaisno
universocamponêsdaépoca,aoqualotexto,justamente,remeteeque,aomesmotempo,convocaecomenta. Os“fechamentos”,porisso,
nãopoderãosermaisdoque“operativos”,eomelhorcritérioquecontinuamosaterparageri-loséaqueledacompletudesintagmáticadas
isotopiasinternasaofenômenoconstruídocomoobjetodeanálise,juntamenteaocritériodesua“densidade”paradigmática.
117
TarcisioLancioni
dadedasfiguraseoseuvalorsemostraminstáveise Pinóquio corre rumo à casa da fada para “se tornar
mutáveis,tantoquePinóquioserá,antes,umafuinha menino”, ao passo que, depois do salto nos campos,
e, depois, um cachorro; antes um predador e depois será“rejeitado”,rumoaomundoanimal,terminando
umantipredador;e,aofinal,massomentecomavolta porsealojarnacasinhadocachorro. Portanto:
dodia,umbomrapaz.
Casa: casebre=humano: animal
Aessescontrastesespaciaisetemporaisquedeter-
minam o caráter oposto das cenas relativas às duas O contraste é evidenciado pela diferença entre o
sequências,acrescenta-setodaumasérieposteriorque casebre de cachorro e a casa em que o camponês se
colocaemtensãodiversos“paresfigurativos”,dissemi- fecha,acentuandoatotalseparaçãoentreosdoisam-
nadosnotextocomominissistemassemissimbólicos bientes. No conjunto, o contraste entre a sequência
que reforçam e acentuam o valor distinto das duas englobante – caracterizada por um movimento auto-
sequências. determinado que deve conduzir Pinóquio à casa da
Comecemospelocontrasterelativoàfigurativização fada,e,comisso,auma“promoçãosocial”,comuma
dosmovimentosdePinóquio: enquanto,aolongoda completaintegraçãonomundo“humano”–easequên-
estrada, o boneco corria, o surgimento repentino do cia englobada – caracterizada pela incapacidade de
novoprogramasemanifesta,primeiramente,porum Pinóquiodeautodeterminar-seeporsuaassimilação
“salto”, e, depois, na imobilidade, primeiro completa pelomundoanimal,selvagem–colocaemtensãodois
(armadilha)edepoisrelativa(coleira). Paraotododa “destinos”diferentesparaPinóquio:
sequência de que se fala, de fato, Pinóquio não será
Sequênciaenglobante: sequênciaenglobada=
maiscapazdesemoverautonomamente,nãoatéque promoçãohumana: degradaçãoanimal
ocamponêsolibere,permitindo-lhevoltaracorrer. Se
Além desses contrastes que marcam o valor dis-
a corrida, dissemos, parece manifestar a urgência e,
tintodasduassequências,podemosdestacaroutros
emtodocaso,aprecisaorientaçãodoprogramanar-
contrastesinternosàsequênciaenglobada. Dissemos
rativodePinóquio, aimobilidade, introduzidacoma
que, durante toda a sequência, Pinóquio se encon-
interrupçãodosalto,parece,aocontrário,manifestar
traprivadodaliberdadedemovimento,masissonão
a ausência da capacidade de Pinóquio de perseguir
acontece de modo contínuo e homogêneo. Podemos,
umprogramapróprio: Pinóquiopoderáfazerapenas
de fato, ver que os dois “instrumentos” que servem
aquilo que lhe é imposto e nos limites consentidos
para a coerção de Pinóquio, a armadilha e a coleira,
pelosmeiosdecoerção aosquaisestásubmetido.
apresentamdealgumaformaumevidenteparentesco,
Deriva, daí, um sistema semissimbólico que ma-
seja enquanto instrumentos de constrição, seja pela
nifesta uma oposição semântica posterior entre a
presença de traços figurativos em comum. Citemos,
sequênciaenglobanteeasequênciaenglobada:
paraaarmadilha: “Tendoapenaschegadosobasvidei-
ras,crac... sentiuseremesmagadasaspernaspordois
Corrida: imobilidade=autodeterminação: ferros cortantes quelhefizeramverquantas estrelas
heterodeterminação.
havia no céu”9 (cap. XX, grifo nosso); e pouco de-
Umsegundocontrastefigurativoimportante,que pois: “Pobrefilhinho! Replicouovaga-lume,parando
marca a diferença entre a sequência englobante e apiedadoaoolhá-lo. ’Mascomoficoucomaspernas
aquelaenglobada,concerneàcaracterizaçãodoobjeto- espremidasentreessesferrosafiados?’”10 (Cap. XXI,
valordoprogramadePinóquio. Conformedestacado, grifo nosso). Para a coleira: “[...] Dito e feito, colo-
Pinóquiopretendechegaràcasadafadaantesdeanoi- couemseupescoçoumagrossacoleiratodacoberta
tecer,todavia,comaescuridão,nocoraçãodanoite, de pontas de bronze, e apertou de tal modo que não
Pinóquio se encontra em outra casa, a “casinha do pudessetirá-la,passandopelacabeça”11 (cap. XXI).
cachorro” Melampo, um casebre de madeira que se Osdoisinstrumentos,deformacircular,sãoambos
opõe, com toda a evidência, à casa da fada, sendo cheiosde“pontas”,adiferençaéqueasdaarmadilha
representada de forma degradada. O abrigar-se no estão voltadas para dentro, de modo a ferir quem a
casebrecaracterizaopercursodePinóquiocomoper- “veste”contraasuavontade, enquantoasdacoleira
curso“descendente”,comoverdadeiroepróprio“ritual estãovoltadosparafora,paraferirnãoquema“veste”,
dedegradação”8 aoqualésubmetidooboneconode- masaquelescontraosquaisavançaquemaveste. A
correr da sequência narrativa: ao longo da estrada, oposição,nessecaso,parececoncerniràorganização
8Imediatamenteantesdaatribuiçãode“cachorro”,Pinóquio,quehaviasidocarregadopelocamponês(“comoselevaumcordeirode
leite”),éjogadoporterraeocamponêsoimobilizacomumpésobreopescoço,demarcandoopontomaisbaixode“descida”dePinóquio.
9Traduçãonossaparaotrechooriginal: «Appenagiuntosottolavite,crac... sentìstringersilegambedadueferritaglientichegli
fecerovederequantestellec’eranoincielo».
10Traduçãonossaparaotrechooriginal: «Poverofigliolo! replicòlaLucciola,fermandosiimpietositaaguardarlo. “Comemaiseirimasto
conlegambeattanagliatefracodestiferriarrotati?” »
11Traduçãonossaparaotrechooriginal: «[...] Dettofatto,gl’infilòalcolloungrossocollaretuttocopertodispunzonidiottone,eglielo
strinseinmododanonpoterselolevarepassandocilatestadentro.»
118
estudossemióticos,vol. 13,no2(ediçãoespecial)—dezembrode2017
plásticadasduasfiguras: armadilhaecoleira,exempli- tamente: pragmaticamente Pinóquio pode se mover
ficandoomodocomoadimensãoplásticadasfiguras dentrodeumraiolimitadodeespaço,oquelhepermite,
não concerne apenas ao plano da expressão das se- primeiramente,refugiar-senacasinhadecachorroe,
mióticasplanares,mas,podesurgirdentrodoplano depois,chegaraogalinheiro,Aomesmotempo,cogniti-
do conteúdo como forma de organização interna da vamente,Pinóquioécapazderefletirativamentesobre
figuratividade,quepodeserexplícita(descrição)ouim- a sua situação, de responder, positivamente, e com
plícitaepassíveldereconstruçãopormeiodaanálise umaadesãovoluntária,àmanipulaçãodoDestinador-
semânticadasprópriasfiguras. Seocontraste“casa camponês,e,negativamente,àmanipulaçãotentada
versuscasebre”concerniaaoreconhecimento“objetal” peloAntidestinador,manifestadonessecasopelasfui-
deduasfigurasdomundo,comasrelativascaracteri- nhas. Opoder-fazerpragmáticoecognitivosetraduz,
zaçõessociais;ocontrasteentrearmadilhaecoleirase pois,emumaadesãovoluntáriaeconvencidaaosis-
apoia,aocontrário,antesdetudo,sobreomodocomo temadevaloresdoDestinador,emoposiçãoaomero
taisfigurassão“feitas”,sobreasuaaparênciavisual dever-fazermanifestadonainteraçãocomovaga-lume,
que apresenta de fato marcas claramente opostas, e emarcatodaadiferençaquesedáentreaidentidade
quepodemosreportaràquiloquefoidenominado“figu- dePinóquio,noiníciodasequência,esuaidentidade
rativoabstrato”ou“figural”. Umaoposiçãoquepode ao final. De um Pinóquio que aceita de má vontade,
serlexicalizadacomo“introvertido”versusextrovertido, sobcoerção(dever-fazer),asregrassociaisemoraisdo
ou,sequiséssemosaproveitaroléxicofonológico,como Destinador,aumPinóquioqueparticipaativamente
sugereZilberberg(2006[1988]), poderíamosusaros (querer-fazer)dessemesmosistemadevalor.
termos“implosivo”versus“explosivo”.
Osdoisobjetossequalificamcomoinstrumentos Armadilha: coleira=pragmático: cognitivo
de contenção, a diferença é que, com a armadilha, o Armadilha: coleira=Dever-fazer: Querer-fazer
sercontidoéopredadordoqualsedesejadefendera
propriedade12,aopassoque,comacoleira,osercon-
Essatransformaçãoéacentuadatambémpelaarti-
tidoéalguémchamadoadefenderapropriedade. Sob
culaçãoespacialdessapartefinaldasequência,que
essaperspectiva,teremos,pois,umahomologação:
sedesenvolvenoquintaldacasacamponesa. Assim
quechegaàcasadocamponês,comovisto,aPinóquio
Armadilha: coleira=implosivo: explosivo
éimpostaacoleiraelheéentregueocasebredeMe-
Implosivo: explosivo=predador: antipredador
lampo, enquanto o camponês se fecha em casa com
Se considerarmos que as posições de predador e uma grande barra de ferro (“[...] o camponês entrou
deantipredadorsãoreferentesaocomportamentoem em casa, fechando a porta com uma grande barra
relaçãoao“mundohumano”eàssuaspropriedades, deferro”14[cap. XXI]),acentuandoassimaseparação
depredadasoudefendidas,podemosdizerquetambém entre o espaço “humano” da casa e aquele externo
essa oposição retoma e reafirma aquela já indicada estipuladoaPinóquioequeoexpõeaoconfrontocom
entre“animal”e“humano”. as fuinhas. Recusada a manipulação delas, que, re-
Asduasposiçõesimplicamumacaracterizaçãomo- cordemos, incide sobre o mesmo instinto que havia
daldistinta. Aprimeira(armadilha)impedePinóquio, causado o primeiro desvio, a fome, já que lhe ofere-
dequalquerformaqueseja,de“fazer”,sejaumfazer cemcomidaemtrocadeseusilêncio,Pinóquio,enfim
pragmático,sejadeumcognitivo;tantoéquePinóquio conscientedosvaloresaosquaisaderir,move-separa
nãosemostracapaznemdeargumentarcomovaga- trancarasfuinhasnogalinheiro: (“Mas,nemhaviam
lume e nem mesmo de afirmar a própria identidade. terminadodeentrar,sentiramaportinholafechar-se
Pinóquioéconfrontado,portanto,comumainterdição comgrandíssimaviolência. Aquelequehaviafechado
“moral”(nãoserouba)quesetraduzemumainterdi- aportaeraPinóquio,que,nãocontenteportê-lasfe-
ção“física”(impossibilidadedemovimento). E,desse chado,colocoualiemfrenteumagrandepedra,para
modo,Pinóquionãodeveenãopodefazer. Poroutro servirdetrava”15 [cap. XXI).Defato,Pinóquiorepete
lado,osistemadevaloresqueodestinador-vaga-lume o movimento do camponês, mas separando-se das
exprimeéassumidoporPinóquioinvoluntariamente, fuinhas. Imediatamentedepois,coloca-sealatirpara
como algo externo a que é constrangido a obedecer, queocamponêsreabraaporta: reconstrói-se,desse
massemumaplenaadesão;logo,um“dever-fazer”13. modo,aligaçãoespacialentrePinóquioeoambiente
Asegundaposição(coleira)limitaapossibilidade “humano”,umavezqueserompe,definitivamente,a
do“fazer”dePinóquiosem,todavia,impedi-locomple- relaçãocomoambiente“selvagem”dasfuinhas.
12Segundoopontodevistainstituídonoconto,queéaqueledocamponês-Destinador.
13AanálisejádesenvolvidaemLancioni2009insistia,sobretudo,nesseaspectodarelaçãocomoDever.
14Traduçãonossaparaotrechooriginal: «[...] ilcontadinoentròincasachiudendolaportacontantodicatenaccio».
15Traduçãonossaparaotrechooriginal: «Manoneranoancorafinited’entrare,chesentironolaporticinarichiudersicongrandissima
violenza. Quellochel’avevarichiusaeraPinocchio;ilquale,noncontentodiaverlarichiusa,viposòdavantipermaggiorsicurezzauna
grossapietra,aguisadipuntello».
119
Description:bolismo nos textos literários, com base nos ensaios “Semiótica figurativa e semiótica tados das pesquisas do atelier de sémiotique visuelle,.