estória da galinha e do ovo

144 Pages·2016·1.19 MB·Portuguese

REVISTA TEMA 62
Janeiro/Julho, 2016
REVISTA TEMA – ISSN 0103-8338
Desde 1986.
Publicação indexada ao IBICT, no ULRICH’S International Periodicals
Directory e no Latindex.
Publicação semestral da Rede Educacional UNIESP.
Editor
: Prof. Dr. João Adalberto Campato Jr.
CONSELHO EDITORIAL:
Prof. Dr. Alamir Aquino Correa (UEL), Prof. Dr. Altamir Botoso (UEMS),
Prof. Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva (Universidade Estadual Paulista
-UNESP), Profa. Ma. Atilas Cardoso da Silva (Université des Antilles e de
La Guyane – Guiana Francesa), Prof. Dr. Eugênio Pagotti (Universidade
Federal de Sergipe), Profa. Ma. Flavia Wegrzyn Martinez (UNIESP), Prof.
Dr. Ivan Marcos Ribeiro (Universidade Federal de Uberlândia), Prof. Dr.
Jean Pierre Chauvin (USP), Profa. Dra. Letícia J. Storto (Universidade
Estadual do Norte do Paraná – UENP), Profa. Dra. Lívia Apa (Università
degli studi di Napoli “L’Orientale” – Itália), Profa. Dra. Luciana Ferreira Leal
(FACCAT), Profa. Dra. Maria Antonia Soares (UNIESP), Profa. Dra. Maria
Bernadete Marques Abaurre (UNICAMP), Profa. Dra. Paula Tavares Pinto
(Universidade Estadual Paulista – UNESP), Prof. Dr. Paulo Sérgio da Silva
(FAI), Profa. Ma. Rosa Maria Beloto (UNIESP), Prof. Dr. Roberto Acízelo
de Souza (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Profa. Dra. Márcia
Lígia Guidin (Academia Paulista de Educação), Prof. Dr. Roger Fernandes
Campato (Universidade Presbiteriana Mackenzie), Profa. Dra. Roselis M.
Batista Ralle (Université de Reims Champagne-Ardenne – França), Profa.
Dra. Simone Caputo Gomes (USP), Profa. Dra. Sonia Pascolati (UEL), Prof.
Dr. Wagner Corsino (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul).
UNIESP
Presidente
Vice-Presidente
: Doutor José Fernando Pinto da Costa
: Doutora Cláudia Pereira
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SUMÁRIO
Apresentação - 5
João Adalberto Campato Jr.
“Anedota Pecuniária”, de Machado de Assis: Ideologia e 7
Subjetividade do Narrador
– Thais Gimenes
A Mascaralização, A discussão da arte e os Aspectos do 19
Trágico em Querida (2009) de Lygia Bojunga
– Luciana
Ferreira Leal
Multiculturalisme, histoire et littérature: d’Aragon à 45
Kourouma
– Alain Trouvé
A cultura francesa (entre outras) e a formação dos 59
intelectuais africanos dos Cinco países de língua
oficial portuguesa: alguns exemplos e questões
– Pires
Laranjeiras
Retórica e Militância em “Estória da Galinha e do Ovo”, de 71
Luandino Vieira
– João Adalberto Campato Jr.
Alfabetizar-letrando: concepções e propostas 81
– Filomena
Elaine Assolini
O trabalho com a segunda articulação da linguagem no 109
livro didático do Ensino Fundamental: uma abordagem
funcionalista
- Daiane Karla Correia Jodar
A Instituição Pública e o Discurso da Persona Autoritária 125

– Jean Pierre Chauvin

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APRESENTAÇÃO
Revista Tema
Eis aqui publicado o número 62 da , consolidando a fi-
losofia editorial do periódico, a qual se reflete na observância da eleva-
da qualidade dos artigos, bem como na pluralidade de pontos de vista e
Revista Tema
no produtivo intercâmbio de ideias que os textos ora reunidos propor-
cionam. Dito de outra forma: a prossegue no caminho de
equiparar-se aos melhores periódicos científicos brasileiros.
Os artigos, conforme já se sabe, são do âmbito de Letras e de Linguís-
tica, que compõem, justamente, a grande área do conhecimento na qual
se insere a revista corporativa do Grupo Educacional UNIESP. Nada obs-
tante, este número vem enriquecido com textos que sinalizam, por dife-
rentes estratégias, para importantes questões que tocam a educação e a
Tema
política educacional.
Na esteira das orientações da CAPES, a , para além de dar voz aos
docentes da casa (a UNIESP), tem a honra de acolher artigos de destaca-
dos pesquisadores de outras universidades brasileiras e estrangeiras, tal
é o caso da Universidade de Coimbra, da Universidade de Reims Cham-
pagne-Ardenne, da Universidade de São Paulo, da Universidade Estadual
de Maringá, entre outras.
No que atende aos artigos e numa visada didática, torna-se razoável
reparar que podem se enfeixar em dois grupos gerais: 1) Os que colocam
a literatura em língua portuguesa no centro das atenções, com sensível
destaque para as letras africanas. 2) Os que chamam o debate de concei-
tos mais para para o domínio da língua e, especialmente, para o terreno
do discurso e, aí, articulando-o com aspectos mais próximos da educação
Tema
e, mesmo, do poder político.
O Editor da deixa manifestos seus melhores agradecimentos
aos autores dos artigos e ao Conselho Editorial da Revista. Uma saudação
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Tema
muito efusiva segue endereçada à Dra. Claudia Pereira e à Dra. Rosa Belo-
to, sempre atentas e empenhadas para que a não deixe de ganhar
a luz do dia.
João Adalberto Campato Jr.
1º Semestre de 2016
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“ANEDOTA PECUNIÁRIA”, DE MACHADO DE ASSIS:
IDEOLOGIA E SUBJETIVIDADE DO NARRADOR
1
Thais GIMENES
RESUMO
: Entende-se por ponto de vista um conjunto de
questões entre o narrador e o narrado, ou a enunciação e o
enunciado. A escolha do ponto de vista nunca é neutra, sem-
pre supõe uma visão de mundo; escolher um ponto de vista é
escolher um modo de transmitir valores. Nesse sentido, a es-
colha do narrador é um dos fatores decisivos de composição
da narrativa, pois é a partir da perspectiva dele que a história
é contada. Dessa forma, objetivamos estudar o modo como o
discurso do narrador, enquanto porta-voz de ideologia, que
cPaArLrAegVaR mASa-rCcaHsA dVeE seu tempo, deixa entrever a estrutura so-
cial presente no conto de Machado de Assis.
: Machado de Assis. Narrador. Ponto de
vista. Ideologia; subjetividade.
ABSTRACT
: It’s understood by viewpoint a number of issues
between the narrator and narrated, or the enunciation and
the statement. Never, the choice of viewpoint is neutral,
always implies a worldview; choose a point of view is choose
a way of transmitting values. In this sense, the choice of the
narrator is one of the decisive factors of composition of the
narrative, because it’s from his perspective, the story is told.
Thus, we aimed to study the way of the narrator’s speech,
wKEhYilWe iOdReoDlSogy spokesman, that carries marks of his time,
hints at the social structure present in Machado de Assis tale.
: Machado de Assis. Narrator. Viewpoint. Ideolo-
gy. Subjectivity.
1
Professora da UNIESP - Faculdade do Noroeste Paranense (FANP), de Nova Esperança -PR.
Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
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Madame
O Realismo foi um movimento literário que se iniciou na Europa, na
Bovary
segunda metade do século XIX, com a publicação do romance
, de Gustave Flaubert (1821-1880), como uma reação ao senti-
mentalismo romântico. Essa estética é marcada pela consolidação da
burguesia, pelo triunfo definitivo do poder econômico e do capitalismo
Memórias Póstu-
avançado.
masde Brás Cubas
O Realismo, no Brasil, tem como marco inicial a obra
(1881), de Machado de Assis. Essa estética encontrou,
no Brasil, uma realidade propícia para a ascensão da literatura, já que es-
critores como Castro Alves e José de Alencar haviam preparado o terre-
no. O país havia vivenciado fatos importantes como a Guerra do Paraguai
(1864-1870), a campanha abolicionista e o fortalecimento da economia
agrária. A queda da escravidão e do Império criaram uma nova realidade
no país; a vida social e cultural tornou-se mais ativa, ambas influenciadas
por ideais europeus: liberalismo, socialismo, positivismo, cientificismo etc.
Coutinho (1986) afirma que é impossível uma definição completa do
Realismo, que, antes, é uma tendência, um estado de espírito do que um
gênero literário acabado. Entretanto, descreve as suas características
principais: o Realismo procura apresentar a verdade; procura essa verda-
de por meio do retrato fiel das personagens; encara a vida objetivamente;
retrata a vida contemporânea; a narrativa realista move-se lentamente,
apoiando-se, sobretudo, nas impressões sensíveis, e escolhe a linguagem
mais próxima da realidade, da simplicidade e da naturalidade.
Fazendo oposição ao idealismo do movimento romântico, os realis-
tas concebiam os fatos de forma mais objetiva e fiel à vida real. Assim, o
romance deixa de ter a função de distrair e entreter, como boa parte da
produção folhetinesca do Romantismo, e toma nova importância: mos-
trar a realidade, diagnosticar as patologias humanas e sociais, apontar a
corrupção e os desvios de caráter de toda a sociedade.
Dentre os escritores de ficção realista brasileiros estão: Manuel An-
tônio de Almeida, Aluísio Azevedo, Inglês de Souza, Adolfo Caminha, Jú-
lio Ribeiro, Machado de Assis e Raul Pompéia. Os dois últimos estão em
posição singular. No caso de Machado de Assis, por ter criado um estilo
que reproduzia a realidade, utilizando-se de relativa indiferença formal.
Já Raul Pompéia, pela dependência dos tons impressionistas que são ca-
racterísticas marcantes de sua obra.
É nesse contexto que surge um dos mais importantes escritores da nos-
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sa literatura - Joaquim Maria Machado de Assis -, que nasceu em 1839, no
Rio de Janeiro, filho de um operário mulato e de uma lavadeira portugue-
sa dos Açores. Tendo vivido a infância em condições humildes, começou
a trabalhar muito jovem na imprensa, publicando versos e crônicas. Aos
27 anos de idade, ingressou na carreira burocrática, tornando-se, mais
tarde, alto funcionário.
Como escritor, Machado foi poeta, cronista, tradutor, crítico e come-
diógrafo, mas destacou-se, sobretudo, como contista e romancista. Em
1897, fundou a Academia Brasileira de Letras, da qual foi presidente.
Machado faleceu em 1908, tendo sido enterrado com muitas honras e
discursos.
A preocupação com as aparências, as ideias políticas, a ambição, as
mesquinharias, as convenções sociais, as relações amorosas, os dilemas
morais, todos esses temas, e muito mais, são retratados pelo escritor em
mais de 60 contos.
Hist em Data
Abordamos aqui “Anedota Pecuniária”, um dos contos incluídos na co-
letânea órias s , de 1884. O contexto político da época era o
reinado de D. Pedro II, em que, apesar de o Brasil não ser mais uma colônia,
conservava ainda quase todas as suas características: ainda era um país
escravagista e predominantemente rural. Mas, apesar disso, estava às vés-
peras de algumas de suas mais importantes transformações político-so-
ciais: a abolição da escravatura e a Proclamação da República. O café era o
grande propulsor desse sistema e o que estimulava e mantinha o mercado
interno e externo. Tal prosperidade da economia cafeeira acabava por sus-
tentar o sentimento de esperança de um surto modernizador.
Mas como a arte tem como essência a impossibilidade de fugir às con-
tradições sociais de sua época, o que se vê da literatura local é um ressoar
de ecos da literatura europeia: uma forte influência dos anseios nacio-
nalistas do Romantismo, vestida em trajes do Naturalismo de Zola e de
Flaubert e sustentada nos calçados apertados do cientificismo darwinia-
no e da luta da classe operária da Revolução Industrial.
Passemos, agora, à fábula do conto. “Anedota” retrata a figura do ado-
rador do ouro, Falcão, que se maldiz por ter vendido a sobrinha Jacinta a
Chico Borges, em troca de dez contos de réis; promete, então, não recair
no mesmo erro, mas, incapaz de resistir ao interesse pelo dinheiro, rein-
cide vendendo a outra sobrinha, Virgínia, para Reginaldo, em troca de
uma coleção de moedas.
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A narrativa inicia-se com a presença de um narrador heterodiegético,
que conta as ações fabulares utilizando a 3ª pessoa do discurso, mas fo-
caliza a narrativa a partir de um “autor” onisciente intruso, que se propõe
revelar a história de seu personagem: “Chama-se Falcão o meu homem”.
A escolha da técnica do ponto de vista nunca é neutra, sempre supõe
uma visão de mundo; escolher um ponto de vista é escolher um modo de
transmitir valores. O fato de o narrador não se situar no nível da diegese
não o impede de manifestar os valores da sua subjetividade, como no
excerto: “basta ver este olhar felino, estes dois beiços, mestres de cálculo,
que ainda fechados, parecem estar contando alguma coisa, para adivi-
nhar logo que a feição capital do nosso homem é a voracidade do lucro”.
Em qualquer narrativa, o narrador sempre manifestará os sinais de sua
presença como sujeito enunciador. Logo, o nosso acesso à história está
condicionado pelas palavras do narrador, pelos pensamentos e pelos
sentimentos que relata. Ele é o mediador que se interpõe entre o leitor e
a história (ARRIGUCCI Jr., 1998).
Nesse sentido, a escolha do narrador é um dos fatos decisivos da arti-
culação orgânica da narrativa. Assim sendo, objetivamos estudar o modo
como o discurso do narrador, enquanto porta-voz de ideologia, carrega
marcas de seu tempo, revelando as estruturas sociais presentes no conto
de Machado.
O narrador interfere nos acontecimentos da narrativa com um comen-
tário irônico e até mesmo sarcástico da paixão de Falcão pelo dinheiro,
como neste trecho:
se eu disser que este homem vendeu uma sobrinha, não me hão de
crer; se descer a definir o preço, dez contos de réis, voltar-me-ão as
costas com desprezo e indignação [...] Entendamo-nos: ele faz arte pela
arte, não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si
mesmo! Ninguém lhe vá falar dos regalos da vida. Não tem cama fofa,
nem mesa fina, nem carruagem, nem comenda. Não se ganha dinheiro
para esbanjá-lo, dizia ele. Vive de migalhas; tudo o que amontoa é para
a contemplação.
Na concepção de Flaubert, a figura do narrador não deve interferir nos
acontecimentos da narrativa. No entanto, Machado de Assis contraria
essa concepção adotada pela maioria dos escritores realistas, priorizan-