Table Of ContentEsperando Foucault, ainda
Marshall Sahlins
TRADU9AO
Marcela Coelho de Souzae
EduardoViveiros de Castro
COSACNAlfY
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...._ ..ntretenimento pes-prandial oferecido por Mar
shall Sahlins ii IV Conferrmcia Decenal da Associa,ao de
Antropelogos Sociais da Commonwealth, Oxford, iulho de
1993- agora em sua4"edi,ao, ampliada.)
LORD JENKINS, PROF. STRATHERN, PREZADOS COLEGAS...
E DEMAIS COLEGAS:
Fui encarregado pela Profa. Strathern de agracia-los com
trinta minutos ou menOS de "entretenimento digestivo",
possivelmente para que voces nao caiam no sono antes cia
conferencia Huxley do Prof. Stocking. Nao sei 0 que liz
para merecer tal hanra academica, e menos ainda 0 que
fazer para satisfazer as expectativas correspondentes - a
nao serpelo fata de que, como muitos devoces, mantenho
urn caderno de notas e observa~6es clandestinas, que 'lao
de uma hnha a muitas paginas, e do qual pensei oferecer
Ihesumaselec;aodecomentariosrabugentosaprop6sitode
coisas que estao em voga na antropologia de nossos dias e
provavelmentenao deveriam estar. Desafda, todavia, cleva
confessarque,folheando minhacaderneta,Gconeu-meque
Lord Keynes naodissetodaaverdade sobre 0 que acontece
a
alongoprazo. PeIDmenOSnoqueconcerne antropologia,
e
duascoisassaocertas,alongoprazo:umadelas queestare
e
mas todos mortos; mas aDutra que estaremos todos erra
e
dos. Evidentemente,umacarreiraacademicafeliz aquela
em que aprimeira coisa acontece antes cia segunda. Outra
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".
ideia que me ocorreu eajudou a inspirar 0 titulo de minha
e
conferencia, foi que minha caderneta muito semelhante
a
concep,ao de poder de Michel Foucault: como esta,
aquelatambemeperversamentepoli-amorfa.Assim, enesse
espirito pas-estruturalista que Ihes ofere,o aseguinte pasti
cherieaguisa de sobremesa.D
a inven~aoda tradi~ao
SendoaCra-Bretanha a patria da "inven,aoda tradi,ao", e
desnecessario explicaraqui aexpressao. Todos sabem, igual
mente; como as antrop61ogos apressaram-se em adaptar tal
ideiaanostalgia culturalhajecorrente entreaspovosoutrara
coloniais. Pelo Terceiro e Quarto Mundos afora, as pessoas
andamaproclamar0 valorde seuscostumestradicionais (tal
como elas as concebem). Infelizmente, uma certa atmos
fera livresca de inautenticidade paira sabre esse moderno
movimento pro-cultural. 0 rotula acadernico"invenc;ao" ja
sugere artifIcio, e a litetatura antropal6gica transmite, com
demasiada freqi.iencia, a impressao de urn passado meio[a1
sificado, improvisadopara fins politicos, que provave1mente
deve rnais afor,as imperialistas que afontes indigenas.Ati
tulodeantidotopassive1,chamoaatenc;aoparaurncasonota
vel de inven,ao da tradi,ao, cuja respeitabilidade nenhum
academico do Ocidentesera tentadoa negar.
Pois deu-se que, nos seculos xv e XVI, urn punhado de
intelectuais e artistas nativos europeus reuniu-se e p6s-se a
inventarsuastradiC;6es, easimesrnos,tentando revita1izar0
4 5
-.
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saberdeumaantigaculturaqueconsideravamteTsidoobra Por outro lado, a li\=ao hist6rica poderia ser a de que
de seus ancestrais, mas que nao compreendiam plenamen nem ludo esla perdido (Journal ofModem History, prima
te, paisessaculturaestavaperdidahamuitosseculos, esuas vera de 1993).0
linguas(lalimegrego)andavamcorrompidasouesquecidas.
Muitos seculos antes, igualmente, esses europeus tinham
se convertido ao Cristianismo; mas isso naD os impedia sobre
agora de clamar pela reslaura<;ao de sua heran<;a paga: vol 0 i l l
tariam a praticar as virtudes cIassicas, chegariam ITIesmo a
invocar os deuses pagaos. Seja la como for (e como foil,
nessascircunsblneias - asde umaenormedistancia asepa
rar esses intelectuais aculturados de urn passado efetiva
mente irrecuperavel -.nessascircunstanciasanostalgia ja
as
naa era 0 que costumavaser. textos e mOll11mentos que
esses intelectuais construfram eram, 0 mais das vezes, me
IDS simulacros servis de modelos classicos. Criaram assim
umatradi\=aoconscientedecanonesfixos eessencializados;
escreveram hist6ria no estilo de Lfvio, poesia em urn latim
amaneirado, tragedia ao modo de Seneca e comedia coo
forme Terencio; decoraram igrejas cristas com fachadas de
templos cIassicos e seguiram, de modo geral, os preceitos
daarquiteturaromanaestabelecidosporVitnlvio - semse
darem conta de que esses preceitos eram gregos. Tudo isso
veioaserchamado, na hist6riaeuropeia, de Renascimento,
pois deua luza "eiviliza\=aomoderna".
o
que mais se pode dizerdisso, senao que algumas pes
soassempre tiram a sorte grande hist6rica? Quandosao os
europeus que inventamsuas tradi\=oes - com os turcos as
partas - trata-se de urn renascimento cultural genuIno, 0
infcio de urn futuro de progresso. Quando Ol1tros povos 0
e
fazem, urn signa de decadencia cultural, uma recupera
c;ao faetfcia, que nao pode produzir senao simulacros de
urnpassado marto.
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'.
Iterialismo
o materialismo cleve ser uma forma de idealismo, ja que
esta errado - tambem.o
Heraclito Her6doto
X
Urn dos argumentos canentes contra a coerenciadas cultu
ras e a possibilidade de se realizar qualquer tipo de etno
e
grafia sistematica que, como urn cefto rio £1los6£1co de
e
rename, as culturas estao sempre mudando. 0 f1.uxo de
tal natureza que jamais se pode mergulhar duas vezes na
meSIlla cultura. E, todavia, a naa ser que alguma iden
as
tidade e consistencia sejam simbolicamente impostas
pra:ticas sociais, como tamhem aos riDs, naG apenas pelos
antrop61ogos mas tambem pelas pessoas em geral, a inteli
gihilidade, ou meSilla a sanidade, para nao falar na socie
dade, seriam impossiveis. Pais,parafraseandoJohn Barth,a
realidade e urn bela lugar para se visitar (filosoficamente),
mas ninguem nUllea morou la.D
8 9
It.
-.
o
mesmosentido.Tresarbitrosde beiseboldeprimeiradivisao
estavam debatendocomomarcarballsestrikes.I "Ellasmar
co conforme sao", disse 0 primeiro. "Ell", disse 0 segundo,
"eu as marco conforme os vejo." "Nao", declarou 0 terceiro,
que tinha mais estrada que as OlltroS, "eles nao existem ate
que eu os marque." Tecnicamente,segundo 0 Cours degim
nastiquegenerale, isso econhecido como 0 "carMer arbitra
rio dosigna doarbitro". De ondevemamaximap6s-estrutu
ralista: "don'tbeSaussure'" (Eric Hamp).
Chicago Tribune, 23 de maio de 1993: Jim Lefebvre tor
nOll-se 0 primeiro tecnico expulso cia hist6ria do EShidio
Joe Robbie com 0 incidente de sexta-feira a noite. 0 arbi
tro principal Ed Rapuano realizou este feito depois que
Lefebvre protestoll contra urn terceiro strike marcado COTI
tra Sammy Sosa. "A bola estava baixa", disse Lefebvre...
"Quandoele mepasparafora, disse: 'Naome importaonde
abola passou'. Um arbitro que nao daa minimapara onde
e e
a bola passou? Isso que serarbitrario!"o
IBalls estrikes sao os arremessos ou lan~amentosde bola do pit
cher,0 arremessador, para0 batedor.abatedorterntreschances
para bater abola: "strike" euma bola valida que ele nao acerta;
e a
"ball" Uinabolaforadaareadestrikee,assim,naovalida. arbi
troentaofaz urnsinalparaquem estamarcandoospontos.
2Trocadilho intraduzfvel com "don't beso sure", "nao esteja tao
certodisso".[N.T.]
10 II
h
-.
a cultura japonesa esbi sempre em transforma~ao
Urn amigo japones disse-me que 0 famosa santuario impe
rial em Ise se mantem inalterado desde 0 secula VII
identico ao que era quando foi construfdo pela primeira
e tao
vez. Para as ocidentais, claro, ele nao pareee assim
velho. Eque, segundo a tradic;ao corrente, os ediffcios em
Ise tern sido reconstrufdos (em locais altemados) a cada
vinteanos, exatamenteciamesma maneira - llsando-seos
mesmos instrumentos antigos e as meSilla materiais -, e
e
cadapassodoprocesso marcadopeIosritllaisantigosapra
e
priados. Mas 6bvioqueosinstrumentosnaopoderiamser
exatamenteasmesmos,poderiam?ElesnaGteriamdurado
treze steuJos. E 0 que significa dizer que as materiais sao
osmesmos,vistaque acadavez se usa madeira nova? E de
que modo duas performances rituais poderiam jamais ser
"a mesma"?
(Naverdade,0 ciclodereconstrw;aofoi certafeita inter
rompidopormaisde150anos,eosedificioseinstrumentos
sofreram algumas mudanc;as. Mas esta nao e atradic;ao ou
percep~ao japonesa dominante. A tradi~ao diz que eles
e
nao mudaram, e apercepc;ao de que sao os mesmos.)
Urn crftico de arte ocidental explica que os ediffcios
reconstrufdos naosao"replicas", mas sim"Ise recriado".
Nosso conceito da continuidadede uma floresta talvez
seja algo de mais proximo da concepc;ao xintofsta, ja que
eleenvolveriadefato anatureza: aflorestaamazonicavern
existindohaseculosoumilenios,mesmosetodasasanrores
originais perecerarn e foram substitufdas varias vezes. Em
e e
todocaso, obvio que a identidade uma construc;ao rela
tiva, baseadaem umavalorac;ao seletivade similaridadese
12 lJ
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•
diferen~as. Em 1st, eirrelevante que os materiais tenham ~
sido renovados - e assim nao sejam os mesmos aDS olhos e l e o (
ocidentais -,contantoquepermane~amsendodomesmo
tipo e que sua combinac;;ao obedeS;3 ao antigo regime tee
nico e ritual. Segundo tais criterios, aquila que chamamos
Abadia de Tinturn1 nao poderia reeeber tal nome, a des
peito da "autenticidade" au da idade de suas pedras. Nao
e
seria aAbadia deTinturn, pOTgue uma mlna.
Em sua Vida deTeseu, Plutarco conta a seguinte hist6
riasabre0naviaemque0her6i retornollaAtenas,aposter
vencido 0 Minotauro:
Agale de trinta remos na qual Teseu velejou com as jovense
retomollsaoesalvofoi preservadapelosateniensesateaepoca
de Demetrio de Falera (317-3°7 a.c.). De tempos em tempos,
removiam 0 madeirame velho e 0 substituiam por urn novo,
de modo que 0 navio tornou-se uma ilustra<;ao classica, para
os fi16sofos, da polemica sobre 0 crescimento e a mudan<;a,
alguns argumentando que ele continuava 0 mesmo, outros
defendendoquesetransformaraem umaembarca<;aodistinta.
o
que pensar, assim, da observa,ao tao popularsegundo a
qual "acultura estasempre emtransforma9ao"?0
I Famosas"minas, situadas no Pais de Gales, de igreja reconstrufda no
seculoXIII, pertencenteaabadiafundada noseculoanteriorpormonges
cisterciences. Inspirou0poemadeWordsworth,"Lines".[N.T.]
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t
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•
A
Tom Frank - parecempensarqueaantropologiase esgota
e
e l e o oaetnografia. Antes0 oposto: etnografia ant.ropologia, ou
e
nao nada.o
•
a·poe~ tlca (
Toda "-Olica" ou linguagem de descri<;ao cientifica (dita)
objetiva baseia-se em uma grade de distin<;6es dotadas de
e,
sentido, ista em distim;6es "-emicas".Tome-se oAlfabeto
Fonetico Internacional, por meio do qual os sons significa
tivos de qualquer lfngua podem ser "objetivamente" regis
e
trados e reproduzidos. 0 alfabeto fondieo constitufdo de
todas as distin<;6es fonemicas conhecidas: de todas as dife
ren<;;as entresegmentossonoras que, segundosesabe,signi
ficam diferen~as de sentido nas lfnguas naturais existentes
no mundo. Assim, em principia, a descri~ao objetiva de
qualquerlfngua consiste emsua compara~aocom aardem
significantedetodas as outras linguas.
o
mesmovaleparaaetnografia. Nenhuma boa etnogra
e
fia autocontida. Implicita ou expIicitamente,a etnografia
e
urnatadecomparac;ao. Emvirtudeciacomparac;ao,ades
cri~ao etnogra.fica torna-se objetiva. Nao no sentido inge
nuo, positivista, de uma percepc;ao nao-mediada - justa
o contrario: ela acede a uma compreensao universal na
medida em que faz incidirsobre a percep<;ao de qllalqller
sociedade as concepc;6es de todas as outras. Alguns dos
adeptosdosCulturalStudies - cultstuds,' comoos chama
Ilogodepalavrasintraduzfvelentreculturalstudents,i.e.ospraticantescia
novadisciplinados CulturalStudies, tida comode "vanguarda",e"gara
nh6es [studs]emvoga[cult]". [N.T.]
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