Table Of ContentENTRE SAIAS JUSTAS
E JOGOS DE CINTURA
Gênero e etnografia
na antropologia brasileira recente
Alinne Bonetti e Soraya Fleischer
Organizadoras
Porto Alegre
2006
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À Claudia Fonseca, pelas lições, inspiração e generosidade.
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Muitas vezes retornei do chamado “campo”, que será isso,
um capim de gado, paisagem pastagem, esvaziada de mim e
repleta dos outros... quase cheia, de ossos fraturados;
atropelada. Nossos valores mais caros espocam ou colidem. (...)
Passam-se os dias e a sensação muda. Conforme escrevo
preencho-me novamente de mim. Esta sou eu, com minhas
dúvidas e inseguranças combalidas, em eterno questionar.
Parece que preciso esvaziar-me do outro, aquilo que se
convenciona como sendo “outro”. E que não passa do “eu” em
choque; eu questionado e sem sossego.
Andréa Martini
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Diário de campo. (Sempre) um experimento etnográfico-literário?
Alinne Bonetti e Soraya Fleischer
CAPÍTULO 1
Vicissitudes da subjetividade: Auto-controle, auto-exorcismo e liminaridade na
antropologia dos movimentos sociais
Carmen Susana Tornquist
CAPÍTULO 2
A pesquisa tem “mironga”: Notas etnográficas sobre o fazer etnográfico
Mônica Dias
CAPÍTULO 3
“No salto”: Trilhas e percalços de uma etnografia entre travestis que se prostituem
Larissa Pelúcio
CAPÍTULO 4
Um olhar sexual na investigação etnográfica: Notas sobre trabalho de campo e
sexualidade
Nádia Elisa Meinerz
CAPÍTULO 5
Entre homens: Espaços de gênero em uma pesquisa antropológica sobre masculinidade
e decisões sexuais e reprodutivas
Paula Sandrine Machado
CAPÍTULO 6
Onde estão as b.girls? A pesquisa antropológica numa roda de break
Fernanda Noronha
CAPÍTULO 7
Entre o familiar e o exótico: Compartilhando experiências de campo na Boa Vista, Cabo
Verde
Andréa de Souza Lobo
CAPÍTULO 8
O poder do campo e o seu campo de poder
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Kelly Cristiane da Silva
CAPÍTULO 9
Casos e acasos: Como acidentes e fatos fortuitos influenciam o trabalho de campo
Daniela Cordovil
CAPÍTULO 10
Ser mujer y antropóloga en la escuela: Una experiencia de trabajo de campo con niños y
ninas
Diana Milstein
CAPÍTULO 11
Ritual de iniciação: Quando o campo evoca o próprio objeto através da experiência
Patrícia de Araújo Brandão Couto
CAPÍTULO 12
Entre colinas verdes: Trabalhos espirituais, plantas e culinária. Reflexões sobre
experiências de campo numa comunidade do Santo Daime
Isabel Santana de Rose
AS AUTORAS
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DIÁRIO DE CAMPO
(Sempre) um experimento etnográfico-literário?
27 de janeiro de 2006
“A narrativa é o foro da liberdade e da sanidade.
Embate, encontro, exercício de sentimento:
sentido no pensamento”.
(Andréa Martini)
Desci do ônibus e caminhei até o endereço que elas haviam me passado por telefone. Era
apenas um par de quarteirões pelas ruas arborizadas e movimentadas do Bom Fim. Passava
um pouco das 16h, justamente quando o calor intenso de Porto Alegre começava a dar trégua.
A confeitaria ficava eqüidistante da casa das duas antropólogas, por isso a conveniência de
nos encontrarmos ali. Logo avistei o nome espanhol, as grandes vidraças que serviam de
portas e janelas e as mesinhas de madeira. Eu esperava que, lá dentro, o ar condicionado
criasse um clima mais ameno, especialmente nesta circunstância: entrevistar meus pares. Toda
vez que eu precisava sair de casa para entrevistar outras antropólogas, ficava ansiosa: Serão
amistosas? Entenderão meu tema de pesquisa? Sentir-se-ão invadidas? Estas perguntas me
dispersavam, confundiam-se com outras tantas que eu tinha preparado para esse encontro. Eu
trazia algumas notas no caderno de campo, mas tentava também elencar as perguntas
mentalmente, para que a conversa fluísse melhor.
Um segurança de terno estava à porta, como parece ser o costume por esses tempos no bairro.
Entrei e continuei a observar o ambiente. Algumas pessoas, de pé, dirigiam seus pedidos aos
atendentes atrás do longo balcão de vidro. Três senhoras mais velhas desfrutavam da
companhia uma da outra e de vários petit-fours coloridos. Um jovem de cabelos bem pretos
digitava freneticamente em seu lap top. Chajás – esse delicioso doce gelado do Uruguai –
absorviam a atenção de um casal que parecia apaixonado. Na única mesa vazia, uma moça lia
um livro de capa dura. Ela aparentava seus 30 e poucos anos. Vestia uma frente única laranja
com uma saia esvoaçante preta. Cabelos curtos e levemente encaracolados pareciam recém-
lavados. Do pescoço, desciam vários colares finos de miçangas em tons solares. Nos pés, as
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sandálias verdes – era por elas que esta informante havia se identificado. Tomei fôlego e
caminhei até ali. Quando ela sentiu minha proximidade, logo levantou os olhos de seus óculos
verdes (parece que lhe agradava combinar todas as cores da roupa). “Tu deves ser a
antropóloga que está nos procurando”, ela disparou sorridente, ao fechar o livro sobre o colo.
Por que decidi fazer um estudo do familiar?, era a pergunta que eu sempre me repetia no
início do contato. Por que escolhera um grupo tão inquisidor, arisco, observador? Eu me
apresentei e pendurei a bolsa de brim no espaldar da cadeira. De lá, fui tirando meus
instrumentos de trabalho, gravador, caderno de campo, canetas. Ao escrever essas linhas,
envergonho-me da rapidez com que já passei ao “trabalho”. Ela me olhava curiosa, talvez ela
censurasse minha ansiedade, talvez eu lhe remetesse às suas primeiras experiências de
trabalho de campo. Foram suas perguntas corriqueiras que me deixaram mais à vontade. Ela
queria saber onde eu morava na cidade, se meus pais haviam vindo do interior, se eu já tinha
planos de entrar no doutorado, se eu conhecia aquela confeitaria e os outros tantos cafés do
bairro, se neste final de ano eu tinha veraneado nalguma praia do litoral gaúcho. Eu percebi
que ela me etnografava discretamente, invertendo o jogo. Será que isso também teria
acontecido se eu entrevistasse outra pessoa que não uma antropóloga? Será que o
entrevistador também desperta a curiosidade de seus interlocutores?
Enquanto ela engatava uma pergunta na outra e eu me embaralhava com essas dúvidas
metodológicas, a segunda informante chegou um pouco apressada. Ela foi logo pedindo
desculpas pelo atraso, culpando o gato que resolvera ter fome bem no momento que ela
deixava o apartamento. Essa outra era tão jovem e elétrica quanto a primeira, cabelos ainda
mais curtos e roupas ainda mais coloridas. A diferença é que não combinava tão bem as cores.
Parecia um arco-íris ambulante. Cumprimentou a amiga com os três beijinhos típicos aqui do
Sul e depois me beijou da mesma forma. Um tanto informal e sinestésica essa outra. Sentou-
se e logo pediu um guaraná bem gelado. Reclamou do calor e perguntou se já havíamos
começado. Eu expliquei que ainda não, mas já poderíamos fazê-lo se assim o desejassem. Ela
não me respondeu, mas agradeceu a garçonete que irrompeu nesse momento. Virou pra a
amiga e comentou da ressaca que lhe assolara naquela manhã. As duas comentaram
rapidamente sobre a animada festa da noite anterior. A segunda soltou uma gargalhada quase
contagiante e eu vi as três velhinhas lhe repreenderem com o olhar. Depois do momento de
cumplicidade e do refrigerante, eu lhes lancei a primeira pergunta, bastante ampla. Queria
testar porque caminho seguiriam. Eu torcia para que o barulho ambiente não interferisse na
gravação. Abaixo, transcrevo a entrevista dessa tarde.
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Entrevistadora: Como vocês sabem, minha pesquisa é sobre a nova geração de antropólogas
do Rio Grande do Sul. Eu decidi entrevistar vocês porque fiquei sabendo que organizaram um
livro justamente com esse duplo foco: gênero e juventude.
Alinne Bonetti: É, mais ou menos isso.
Entrevistadora: Como assim?
Alinne: Bom, primeiro não sei se podemos ser consideradas exatamente do Rio Grande do
Sul. Eu sou gaúcha, mas faço doutorado na UNICAMP. A Soraya é de Brasília, mas faz
doutorado aqui.
Soraya: Temos laços com o estado. E, sobretudo, vivemos e convivemos uma com a outra
aqui. Isso foi muito importante pra terminar o livro.
Entrevistadora: Um minuto, há muitas informações aqui. Como vocês se conheceram se são
de cidades e universidades diferentes?
Soraya: Ah, essa história é importante mesmo. Está diretamente relacionada com a história do
livro. Em agosto de 2004, eu já morava em Porto Alegre e me dirigia pra Recife, onde eu ia
começar a segunda parte do trabalho de campo, dentro de uma ONG feminista que trabalha
com parteiras, que são meu foco de estudo. Mas, no caminho, eu planejei parar no “Fazendo
Gênero”, que é um evento feminista que acontece bienalmente em Floripa. Lá, eu encontrei
com a minha orientadora, a professora Claudia Fonseca.
Alinne: Na real, a Claudia é meio “culpada” por tudo isso. (Risos). Não, eu estou brincando.
Acho que seria mais apropriado defini-la como uma madrinha dessa amizade, desse encontro
e, porque não, desse livro.
Soraya: Isso mesmo. Foi a Claudia que nos apresentou, ali no meio do saguão da reitoria,
onde aconteciam as inscrições do evento, as grandes palestras e a sociabilidade do final de
tarde.
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Alinne: Eu fui orientanda dela na graduação. A Claudia, sabendo dos meus interesses de
pesquisa, que envolve ativismo político, feminismo, gênero e família, achou que seria
interessante nós duas nos conhecermos.
Soraya: E ela acertou em cheio. A gente nunca mais se desgrudou desde então. (Risos).
Depois do evento, eu segui pra Recife e a Alinne voltou pra casa que, à época, era em
Campinas. A gente se falava por e-mail de vez em quando. Nessa época, ela não tinha
definido onde iria fazer o campo dela. E eu sugeri que ela pensasse em Recife porque, pelo
que eu já tinha percebido, ali era, como eu passei a chamar, a atual “Meca do feminismo” no
Brasil.
Alinne: Eu já tinha lido textos sobre a efervescência do feminismo de Recife e quando a
Soraya colocou essa pulga atrás da minha orelha eu comecei a cogitar seriamente essa
alternativa. Eu nunca tinha ido pra um lugar tão longe, nunca tinha feito campo numa cidade
nova pra mim, como Recife. E aí a Soraya me estimulou muito: ela disse que estava morando
num quarto com espaço pra nós duas e com uma bela vista pro Atlântico e ela já conhecia um
pouco da cidade. Então, aceitei o desafio e me mandei pra lá. De fato, conviver com a Soraya
naquelas três semanas foi muito importante pra mim e pra pesquisa. Ela me ajudou a conhecer
os primeiros caminhos daquela metrópole e as primeiras ONGs e feministas dali.
Soraya: Eu não sei se ajudei tanto assim. A Alinne ficou muito mais tempo lá do que eu e ela
se embrenhou super bem pela “Meca”. (Risos). Só sei que nossa convivência foi super intensa
naquelas semanas. Eu estava no final de meus meses de campo ali, rumo pra outro canto do
país, o Pará, onde eu conviveria mesmo com as parteiras. E a Alinne estava começando sua
incursão pelo Recife. Eu queria descrever um pouquinho nosso convívio porque é daí que
nasce a idéia do livro.
Entrevistadora: Claro, boa idéia. Como era esse convívio?
Soraya: A gente acordava bem cedo.
Alinne: Bem mais cedo do que eu gostaria. (Risos).
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Soraya: É verdade. Mas como não tinha cortina no quarto, a gente levantava com os primeiros
raios de sol. A gente comia alguma coisa de café da manhã e depois, descíamos juntas o Alto
da Sé, em Olinda. Nem sempre pegávamos o mesmo ônibus, porque eu estava etnografando
uma única ONG e a Alinne estava com uma perspectiva mais ampla, isto é, conhecendo o
universo de ONGs, associações comunitárias, grupos de mulheres da cidade. No final do dia a
gente se falava.
Alinne: Às vezes, a gente marcava de se encontrar pra almoçar também. Mas geralmente, o
“cafofo” era o ponto de encontro “natural” ao entardecer.
Entrevistadora: Como assim “cafofo”?
Alinne: A gente chamou nosso quartinho assim. (Risos). Era um quarto de madeira pré-
fabricada. Devia medir o que, Soraya, uns 20 metros quadrados? Dois colchões no chão, uma
mesinha redonda com duas cadeiras, um frigobar, uma estante pras roupas, sapatos e livros e
um banheiro separado por uma cortina. Não tinha porta. (Risos). Ah, claro, e uma varanda que
dava pro mar. A coisa mais linda do mundo. Acho que, brincando com o nome do livro, posso
dizer que estávamos fisicamente justas. (Risos)
Entrevistadora: Parece bem paradisíaco esse lugar onde vocês moravam. Será que seus pares
não desconfiariam que vocês estavam mais a turismo do que a trabalho em Olinda? (Admito
que eu soltei um olhar irônico nesse momento).
Soraya: (Risos). A gente se perguntou muitas vezes isso. Há um subtexto na Antropologia de
que a qualidade dos dados de campo é proporcional aos sacrifícios que se enfrenta durante o
mesmo. Isso nem sempre é verdade. Sim, morávamos num lugar lindo que justamente nos
dava um pouco de tranqüilidade emocional depois de longos dias de trabalho.
Alinne: E, além de passarmos horas debruçadas sobre nossos lap tops velhos, escrevendo
nossos diários de campo (que, por mais que fôssemos disciplinadas, estavam sempre
atrasados), ainda passávamos horas, madrugada adentro, falando das aventuras e desventuras
das experiências de campo. Na real, essa troca de confidências, angústias e descobertas foi o
que inspirou a idéia do livro. Geralmente, fazemos pesquisa de forma muito solitária. Vamos
e voltamos sozinhas pro campo. Depois, pensamos e escrevemos sozinhas sobre ele.
Description:Como você reagiria se, em meio as sessões do terreiro umbandista que pesquisa, você desmaiasse e seus informantes desconfiassem de que era um sinal para que desenvolvesse seu 'santo'? E se os seus informantes Ihe exigissem sua participação como 'militante na causa', dificultando seu posicioname