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AA UTOFICÇÃO
Esta coletânea reúne ensaios de críticos e escritores franceses
consagrados sobre a autoficção - neologismo criado por Serge
Doubrovsky para definir o pacto de leitura de seu livro Fils, em
1977 -, que já constitui uma categoria conceituai corrente em
nosso campo terminológico teórico-analítico. O que se preten
de é apresentar ao leitor brasileiro tanto a história e a recepção
quanto as diferentes tentativas de teorização e a controvérsia
em torno dessa noção, com o fim de repensá-la em nosso con
texto e buscar respostas para a seguinte pergunta: entre nós,
autoficção seria o nome de quê?
Jovita Maria Gerheim Noronha
Organizadora
ENSAIOS SOBRE
AA UTOFICÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITOR Clélio Campolina Diniz
VICE-REITORA Rocksane de Carvalho Norton Jovita Maria Gerheim Noronha
EDITORA UFMG Maria Inês Coimbra Guedes
DIRETOR Wander Melo Miranda
Tradução
VICE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said
CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (PRESIDENTE)
Ana Maria Caetano de Faria
Danielle Cardoso de Menezes
Flavio de Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares Belo Horizonte
Maria Helena Damasceno e Silva Megale Editora UFMG
Roberto Alexandre do Carmo Said
2014
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© 2014, Os autores
© 2014, Editora UFMG SUMÁRIO
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.
E59Pn Ensaios sobre a autoficção / Jovita Maria Gerheim Noronha
organizadora; tradução [de] Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria
Inês Coimbra Guedes. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2014.
245 p. : il - (Babel)
ISBN: 978-85-423-0060-4
APRESENTAÇÃO
l. Autobiografia - Coletânea. 2. Ficção autobiográfica - Coletânea.
3. Eu em literatura - Coletânea. 4. Ensaios franceses -Coletânea. Jovita Maria Gerheim Noronha 7
5. Literatura - Coletânea. I. Noronha, Jovita Maria Gerheim. II.
Guedes, Maria Inês Coimbra. III. Série.
AUTOFICÇÕES & CIA.
CDD: 809.935.92
Peça em cinco atos
CDU: 82-94
Philippe Lejeune 21
Elaborada pela DITTI -Setor de Tratamento da Informação
Biblioteca Universitária da UFMG
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO
Vincent Colonna 39
COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo AUTOFICÇÃO: UM MAU GÊNERO?
CooRDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro Jacques Lecarme 67
REVISÃO DE PROVAS Bárbara Dantas e Thaís Duarte Silva
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico
FORMATAÇÃO E CAPA Letícia Ferreira O ÚLTIMO EU
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac Serge Doubrovsky 111
A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO
EDITORA UFMG
SOBRE A AUTOFICÇÃO?
Av. Antônio Carlos, 6.627 J CAD II / Bloco III
Campus Pampulha J 31270-901 1 Belo Horizonte/MG Jean-Louis Jeannelle 127
Tel: + 55 31 3409-4650 J Fax:+ 55 31 3409-4768
www.editoraufmg.com.br J [email protected]
APROVA DO REFERENCIAL
Philippe Vilain 163
APRESENTAÇÃO
AUTOFICÇÃO É O NOME DE QU~?
Philippe Gasparini 181
ENTREVISTA A ANNIE PIBAROT
DOIS EUS EM CONFRONTO
Philippe Lejeune
Philippe Vilain 223
SOBRE OS AUTORES 243
Quando, em 1977, o escritor e crítico francês Serge
Doubrovsky forjou o termo "autoficção" para definir o
pacto de leitura de seu livro, Fils, talvez tenha pensado à
semelhança de Rousseau, autor que reivindica como sua
mais importante referência: "tomo uma resolução de que
jamais houve exemplo e cuja execução não terá imitador."
Mas, se o tivesse afirmado, assim como o autor das Confis
sões, muito teria se enganado.
No que diz respeito a seus antecessores, certos críti
cos, dentre os quais o próprio Doubrovsky, estimam que
o neologismo veio nomear uma prática que, de fato, já
existia. Quanto à sua sucessão, a palavra se encontra hoje
dicionarizada na França (dicionários Larousse e Robert)
e cada vez mais se propaga além das fronteiras desse país
para definir práticas de autoescrita, como se constata
7
nos devolve as definições que lhe atribuímos",2 como pro
atualmente entre nós. E essa disseminação é operada em
põe Philippe Gasparini, em seu artigo presente neste livro.
três esferas: os escritores que se apropriam do termo para
Philippe Lejeune foi o primeiro a estabelecer, em 1992,
definir suas próprias obras; o mundo acadêmico, no qual a
a trajetória da autoficção, na abertura do colóquio Autofic
investigação sobre essa categoria conceituai toma corpo em
tions & cie, realizado na Universidade de Nanterre. Lejeune
eventos e comunicações, em teses, dissertações e artigos;
lança mão da metáfora de uma peça em cinco atos, desta
a mídia especializada, que mobiliza o termo em entrevis
cando, de maneira bem-humorada, cinco datas. O primeiro
tas e resenhas. Além disso, a etiqueta "autoficção" não se
ato, "1973", encena a elaboração do conhecido quadro de
restringe mais ao campo da literatura, estendendo-se às
Lejeune que explicita o conceito de "pacto autobiográfico",
outras artes. Mas o que se percebe é que não há de fato
cuja casa vazia combinando homonímia entre autor e perso
consenso nem entre os críticos, nem entre os escritores
nagem e pacto romanesco dará margem a Doubrovsky para
que a praticam, que são, aliás, com frequência, agentes
forjar a noção de autoficção. O segundo ato, "1977", evoca
duplos. Vale lembrar, nesse sentido, as considerações de
o diálogo crítico de Doubrovsky com o quadro de Lejeune,
Silviano Santiago de que "a autoficção não é forma simples
a publicação de Fils e de textos em que o conceito, então es
nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais
treitamente vinculado à psicanálise, começa a ser teorizado.
recente".1 De fato, tanto a fortuna crítica da autoficção,
O terceiro ato, "1984", lembra o trabalho de ampliação do
quanto sua apropriação pelos autores para designar suas
termo por Jacques Lecarme, que transporta a noção para
obras deixam antes a impressão de um debate vertiginoso,
outros textos, afrouxando a definição doubrovskiana. O
à maneira de Pirandello.
quarto ato, "1989", explica como a tese de VincentColonna
Esta coletânea pretende, através de ensaios de críticos
estende a definição de Doubrovsky e dá ao termo ficção
e escritores franceses consagrados, apresentar ao leitor
um sentido "amplo abrangendo tanto o ficcional (a forma
brasileiro um panorama da história da autoficção e de
literária), quanto o fictício (a invenção mesma do conteú
sua recepção na França e trazer as tentativas de teorização
do)". O quinto ato, "1991-1992", coloca em cena o próprio
e a controvérsia em torno da categoria, para alimentar,
colóquio Autofictions & cie, sua organização e realização. O
dentro de nosso contexto, a reflexão e o debate sobre essa
texto de Lejeune antecipa as questões e divergências que se
"palavra-narrativa", "palavra-teste, palavra-espelho, que
APRESENTAÇÃO 9
8 Jovita Maria Gerheim Noronha
revelarão mais tarde na discussão sobre o conceito e em sua é de que a autoficção não se restringiria a um período em
apropriação: "Mas seria de fato um gênero? Como poderia que, como quer Doubrovsky, "a relação do sujeito consigo
ela englobar sob um mesmo nome os que prometem dizer mesmo mudou", mas englobaria um conjunto bem mais
toda a verdade (como Doubrovsky) e os que se entregam amplo de textos de outras épocas e áreas geográficas, daí a
livremente à invenção?", se pergunta o autor. ideia de" extensão máxima" de seu campo, que será sugerida
O segundo artigo que compõe este volume apresenta as e discutida por Jacques Lecarme.
definições propostas por Vincent Colonna, em sua tipo O ensaio de Lecarme, também apresentado no Colóquio
logia, extraídas de seu livro de 2004, no qual ele revisita a de Nanterre de 1992, deve sua importância ao fato de ter
tese mencionada por Lejeune para conceber uma "teoria II inaugurado, como assinala Doubrovsky, a "soma impres
da autoficção", abandonando a narratologia e dando mais sionante de estudos" sobre a autoficção e, nesse sentido,
ênfase à História, às obras e a seus efeitos. Colonna cria resgata os elementos principais da recepção imediata da
o termo "autofabulação" para designar uma prática, um noção. Reconhecendo nas críticas ao modelo autoficcional
procedimento, que remontaria, segundo ele, ao início de doubrovskiano a persistência da tradicional recusa do gê
nossa era, com a obra de Luciano de Samósata, Uma histó nero autobiográfico, a "viva hostilidade contra uma familia
ria verdadeira. A seu ver, o modelo doubroviskiano seria de textos", Lecarme toma a defesa da autoficção - que de
apenas uma das manifestações da autoficção, a "autoficção nomina "autobiografia desenfreada" - tal como é praticada
biográfica", que ele chega a considerar, em carta a Jean-Louis por Doubrovsky e, antes dele, por outros autores. Ele chama
Je annelle, como "o renascimento mascarado do bom e velho a atenção para um aspecto importante da obra de Doubro
romance autobiográfico" e distingue de outras estratégias vsky: o fato de que, depois de Fils e dos textos teóricos sobre
de "autofabulação": a autoficção fantástica, em que o autor o conceito, "a autoficção deixou de se opor à autobiografia,
inventa para si uma vida; a autoficção especular, em que o para se tornar senão um sinônimo, pelo menos uma variante
escritor, através de um "procedimento refletor", se torna um ou um ardil". Lecarme se opõe dessa forma à concepção
dos personagens de sua narrativa fictícia; a autoficção intru extensa da autoficção, proposta por Vincent Colonna, em
siva (autoral), em que um narrador-autor se manifesta, sem seu trabalho de doutorado, e às críticas do orientador da
participar da intriga como personagem. Assim, a hipótese tese, Gérard Genette, que considera, em 1991, esse modelo
APRESENTAÇÃO 11
1O Jovita Maria Gerheim Noronha
- sem de fato citar o autor de Fils - como "autobiografias da concepção expandida de Colonna, que Doubrovsky con
envergonhadas". Para Lecarme, trata-se, ao contrário, de sidera como "uma possibilidade, [mas] um caso particular
"exercícios de ambiguidade que dão lugar a uma irredutível desviante do sentido primeiro". Segundo o autor de Fils,
ambivalência", e constituem uma "população nômade de "isso não poderia de modo algum constituir a natureza e a
textos", sobre os quais não caberia à poética "assistida pela essência da autoficção. A palavra, em seu uso corrente, re
história literária exerc [e r] uma função profilática". O autor mete sempre à existência real de um autor". De outro lado,
estabelece, em sua argumentação, uma distinção entre a Doubrovsky insiste na elaboração ficcional da narrativa, na
concepção de Doubrovsky e a "extensão máxima" dada à criação de "um pacto oximórico". Como já sustentou por
noção por Colonna, para concluir que "nessa extensão do diversas vezes, trata-se de narrativas, nas quais "a matéria é-,
termo, pouco resta de 'auto' e surge algo que faz a ficção estritamente autobiográfica e a maneira, estritamente ficcio- '
transbordar para todo lado e que poderia ser a literatura". nal",3 de uma ficção "confirmada pela própria escrita que se Í
O argumento de Lecarme se harmoniza com a autoanálise inventa como mimese, na qual a abolição de toda e qualquer
1
crítica empreendida por Serge Doubrovsky, em "O último sintaxe substitui, por fragmentos de frases, entrecortadas de
eu" - título que remete ao livro que estava escrevendo na vazios, a ordem da narração autobiográfica". Percebe-se, to- -
quele momento - Un homme de passage [Um homem de davia, em sua proposta, que o ficcional não é compreendido
passagem], publicado em 2011 -, segundo ele, "o último como fictício, como pura invenção, mas como mobilização r
,(
de [sua] obra romanescà'. Partindo da leitura do fragmento de estratégias narrativas tomadas de empréstimo ao roman- \ 1'
inicial, Doubrovsky revisita o conceito criado 40 anos antes, ce moderno e contemporâneo: "a autoficção, para mim, não J
explicitando-o através de uma postura que já se tornou, para mente, não disfarça, mas enuncia e denuncia na forma que\
ele, costumeira: a imbricação do crítico e do escritor. O autor escolheu para si: 'Ficção de acontecimentos e fatos es~rita
reafirma, de um lado, a importância da presença do nome .mente reais."'4 No trecho de Un homme de passage, analisado
próprio - assim como Lecarme e, antes dele, Lejeune -, da pelo autor, a preparação das malas por ocasião da sua volta
"homonímia autor-narrador-personagem [que] dá ao tex definitiva para a França depois da aposentadoria e o reen
to um estatuto que o inscreve no pacto autobiográfico" e, contro com objetos pessoais, alguns esquecidos, propiciam
também, o aspecto referencial de suas obras - o que o afasta a evocação de reminiscências de períodos diversos de sua
12 Jovita Maria Gerheim Noronha APRESENTAÇÃO 13
vida. O fluxo de consciência toma o lugar daquela narração ponto onde a deixara Lejeune. O autor se diz, no entanto,
que segue a ordem da biografia, para colocar em cena um obrigado a adotar outra estruturação para essa história, uma
"vivido [que] se conta vivendo", criando um texto no qual vez que o modelo dramatúrgico "perfeitamente ordenado"
"a enunciação e o enunciado não estão separados por um já não daria conta da trajetória subsequente da noção, que
necessário intervalo, mas são simultâneos", buscando tra-} se assemelha, antes, a "uma novela de episódios pululantes,
<luzir uma mudança entre a percepção que se tinha de si e ricos em reviravoltas e cujos heróis são escoltados por uma
a que se tem hoje. A autoficção é assim, para ele, "a forma multidão de personagens secundários". O modelo da novela
pós-moderna da autobiografia", mas bem diferente de certas enfatiza um ponto essencial de sua argumentação: para
obras classificadas como autoficções, em que um persona ele, a autoficção vem sendo vítima de certa "falta de rigor
gem alter ego do autor protagoniza aventuras inventadas e conceitua!". Jeannelle levanta assim "algumas dificuldades
se move num mundo ficcional bem separado do mundo da que [a autoficção] suscita", ou seja, entraves teóricos que
vida. Como aponta Philippe Gasparini, embora, de início, estão em jogo nesse debate, tais como a indecidibilidade, a
Doubrovsky tivesse "provavelmente em mente aquela acep questão das denominações genéricas, a problemática imbri
ção, bem ampla, da palavra 'fiction', nos Estados Unidos", cação das instâncias do discurso e, ponto importante para
ele explicitará melhor, mais tarde, seu emprego a partir pensar a noção e entender as diversas concepções que dela
da etimologia: "o verbo latino fingere significava de fato resultam, as diferentes acepções do próprio termo ficção.
'afeiçoar, fabricar, modelar'. O fictor era alguém que dava Essa questão atravessa de forma sutil o ensaio autocrí
feição: o oleiro, o escultor e, depois, por extensão, o poeta, tico de Philippe Vilain. Para ele, a fidelidade não estaria
o autor." Em outras palavras, como já sustentava Lejeune na retranscrição do vivido, mas na transposição do que foi
em 1992, "essa ambiguidade do contrato de leitura traduz sentido: "escrevo em primeira pessoa uma história a partir
a ambiguidade de seu projeto: veracidade da informação, de um fato real, verificável ( ... ) mas uma história transposta,
liberdade da escrita". à qual dou um prolongamento romanesco possível, um alar
O sentido que se dá à noção de ficção é também uma das gamento poético sem me nomear, mas sob a caução de meu
problemáticas teóricas que Jean-Louis Jeannelle discute em sobrenome:' O escritor se fundamenta pela primeira vez no
seu ensaio que retoma, em 2006, a história da autoficção no método da crítica genética para pensar sua obra e se propõe
14 Jovita Maria Gerheim Noronha APRESENTAÇÃO 1 5
a ir buscar, na leitura dos manuscritos de três de seus livros problema da recepção, levantado por Philippe Lejeune - a
- Eétreinte [O abraço], La derniere année [O último ano] e ambiguidade pretendida funcionaria na leitura ou o leitor
Eété à Dresde [O verão em Dresde] -, "a prova do referen acaba escolhendo um único pacto? -,. para sugerir que a es
cial", ou seja, "como [s]eus textos autoficcionais apreendem tratégia da ambivalência acaba por se inscrever "na tradição
o referencial e como, em contrapartida, esse referencial é ex do romance autobiográfico". Gasparini mostra como o termo
perimentado ou dá provas de sua existência em um processo "fugiu ao controle de seu criador", através de dois movimen
de autoficcionamento". Mas, embora afirme se inscrever em tos distintos: um alargamento de seu campo genérico e uma
uma escola do eu diferente da de Doubrovsky - que o autor apropriação da categoria que a desviou, dando-lhe um sentido
de Fils denomina "quase-autoficção" -, a postura de Vilain bem diferente: "é preciso constatar que'a utoficção' se tornou,
não representa de fato o abandono completo do vivido, mas hoje, o nome de todos os tipos de textos em primeira pessoa.
uma via oblíqua para sua encenação que leva, sobretudo, Funcionando como um 'arquigênero', ele subsume todo o
em conta o sentimento experimentado que vai interferir no 'espaço autobiográfico': passado e contemporâneo, narrativo
tratamento da rememoração: e discursivo, com ou sem contrato de verdade." O autor su-
gere que é preciso levar em conta as particularidades de cada
obra e postula uma limitação do termo a certos textos: "aos
A factualidade da lembrança se revela insuficiente para a
textos que desenvolvem, em pleno conhecimento de causa, a
autoficção, ( ... ) não se trata mais simplesmente de procurar essa
(
tendência natural a se ficcionalizar, própria à narrativa de si."
lembrança atrás de si, no antetexto, mas também diante de si,
Esta coletânea se encerra com uma entrevista, na qual se
no texto e na própria escrita, tanto na retrospecção quanto na
confrontam duas formas de expressão do eu, a autoficção
prospecção que acompanha a busca inventiva da escrita, pois a
e a autobiografia ou não ficção, representadas, respectiva
lembrança é aqui fonte autoestimulante de recriação.
mente, por Philippe Vilain e Philippe Lejeune. Os autores
respondem às perguntas de Annie Pibarot sobre a especi
Para Philippe Gasparini, "falta ainda entrar em entendi-
ficidade da escrita do eu, as acusações de narcisismo e falta
mento" sobre o conceito de autoficção a começar pelo signi
de pudor dirigidas a essa literatura, a questão do leitor, as
ficado que lhe é atribuído: "se é o nome atual de um gênero
razões e modos de se autonarrar. Em acordo com Vilain,
\ ou o nome de um gênero atual." Ele discute igualmente o
16 Jovita Maria Gerheim Noronha APRESENTAÇÃO 17