Table Of ContentFicha Técnica Copyright © 2015 Paulo Marcelo Rezzutti Copyright
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Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Hugo Langone
REVISÃO
Clarisse Cintra
PROJETO GRÁFICO DO CADERNO DE FOTOS E CAPA Victor Burton
DIAGRAMAÇÃO
Filigrana
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R22d
Rezzutti, Paulo, 1972D. Pedro : a história não contada / Paulo Rezzutti. 1. ed. São Paulo : LeYa, 2015.
Inclui bibliografia
ISBN 9788577345847
1. Pedro I, Imperador do Brasil, 1798-1834. 2. Brasil História I Reinado, 1822-1831. I. Título.
15-24992. CDD: 981.05
CDU: 94(81)'1548/1808'
LEYA EDITORA LTDA.
Avenida Angélica, 2318 – 13º andar 01228-200 – Consolação – São Paulo – SP
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Para Neusa
O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores.
Eles saem de cena e entram em cena, e cada homem a seu tempo representa
muitos papéis.
William Shakespeare, Como gostais.
A história não se compõe somente de fatos registrados e reconhecidos, mas
também de fatos prováveis, mas ignorados.
Paul Gaffarel, em História e verdade, de Adam Schaff.
Foi ele, de nós três, o único que amou.
Júlio Dantas, A ceia dos cardeais.
Um morto e quatro funerais
“O PEDRÃO é nosso!”, exclamou certo funcionário da cripta imperial,
localizada abaixo do Monumento à Independência, no bairro paulistano do
Ipiranga, ao ter certeza de que o sarcófago de granito verde que protegera por
anos não estava vazio. Havia realmente algo lá dentro, ao contrário da
descrença externada por um taxista que conduzira um fotógrafo até lá: “Você
vai fazer o que lá embaixo? Não tem nada lá, não!”
Não apenas o “Pedrão” estava lá, mas também os demais defuntos imperiais:
d. Leopoldina e d. Amélia.
Muito além de encontrar as medalhas de d. Pedro, o trabalho de exumação,
estudo e preservação dos restos mortais dos primeiros imperadores do Brasil,
capitaneado pela arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel, ajudou a lembrar
que os personagens de nossa história foram, algum dia, de carne e osso. A
identificação pelo funcionário da cripta daquilo que ela efetivamente guardava
deixou-o mais perto do que jamais estivera do heroico personagem retratado no
quadro Independência ou morte, do pintor Pedro Américo.
O mito, o “herói” da Independência, transformou-se no “Pedrão”, um homem
cujos restos mortais, posteriormente exibidos nos jornais do Brasil e do mundo,
lembram-nos de que todos retornaremos ao pó.
São raros os biógrafos que podem se dar ao luxo de dizer que conheceram
pessoalmente seu biografado morto há mais de cem anos sem irem parar em
um hospício. Como membro da equipe de Valdirene Ambiel, tive a
oportunidade de ver d. Pedro em algumas ocasiões. Assim como na exumação
de d. Leopoldina, em fevereiro de 2012, também fui convidado para estar
presente na cripta imperial quando da abertura do sarcófago do primeiro
imperador, em 4 de abril de 2012 — três dias antes de se completarem 181
anos de sua abdicação ao trono brasileiro.
Pela experiência obtida com a abertura da urna da imperatriz — com padres,
membros da família imperial, gente subindo e descendo de um tablado
periclitante para ver os restos mortais, preferi não sair na foto oficial e ter um
momento de maior intimidade com meu biografado. Afinal, para mim ele já era
o “Pedrão” muito antes de encontrá-lo face a face. Eu havia trabalhado com as
cartas inéditas enviadas por ele à sua amante, a marquesa de Santos, por mim
localizadas em um museu nova-iorquino no ano de 2010. Conheço sua letra e,
baseado na história factual, sei quando mente ou fala a verdade nas cartas. Até
aprendi a distinguir, pela forma da escrita e pela passionalidade, quando atingia
algum pico abortado de epilepsia. Aquele imperador de espada erguida,
cortando os laços entre Brasil e Portugal, já era para mim o “Demonão”,1 quase
um membro falecido da família, cujas histórias são tantas que é como se
tivéssemos acabado de vê-lo em carne e osso, dobrando a esquina.
Apesar dos diversos alertas de Valdirene ao telefone, informando que o
corpo estava todo revirado no caixão, nada havia me preparado para aquela
manhã. O ataúde fora retirado do sarcófago e colocado sobre o antigo altar da
capela. O fundo estava praticamente se desfazendo, o corpo encontrava-se todo
desconjuntado, o crânio olhava para dentro do caixão. Em meio a uma massa
de terra compacta,2 podíamos ver partes de ossos e medalhas. Tinha-se a
impressão de que, em alguma das exumações anteriores, simplesmente haviam
jogado de qualquer maneira o conteúdo de um caixão ao outro, como se fosse
entulho.
“Ele está todo sujo e quebrado”, pensei, “igual a quando estava vivo”.
D. Pedro sempre foi muito ativo, adorava se exercitar, nadava nu nas praias
de Botafogo e Flamengo sem se importar nem um pouco com a opinião dos
moradores locais. Diferentemente dos dias de hoje, os banhos de mar eram em
geral recomendados como terapia, mas d. Pedro praticava a natação como
exercício para o corpo. Pesquisas revelaram que sua altura seria de 1,66 a 1,73
m,3 pouco maior que a média dos homens da época. Ele tinha tórax e ombros
largos, braços fortes e mãos grandes.
Sua paixão por velocidade levava-o a conduzir, ele próprio, os cavalos de seu
veículo, e a cavalgar a toda carga pelos arredores do Rio de Janeiro. Isso
causou diversos acidentes, como o de 1823 que o prendeu ao leito todo
quebrado e sujo, semelhante ao estado em que se mostrava a meus olhos
naquela manhã de abril.
Quanto a ser aventureiro, então, esse é um capítulo à parte. D. Pedro não
pensou duas vezes antes de se declarar brasileiro e lutar contra Portugal, terra
natal da qual era herdeiro, pela independência do Brasil. Também não temeu
largar tudo neste último país para reunir, após penhorar joias e prataria, um
exército que invadisse Portugal e destronasse o irmão em favor da filha.
Se é na morte, como dizem, que encontramos a paz e o descanso que a vida
nos tirou, d. Pedro não teve essa sorte. Aquela era a quarta vez que o tinham
sepultado. A anterior havia ocorrido em meados de 1987, em virtude das obras
no monumento e de uma das inúmeras inundações ocorridas na cripta. Os
sarcófagos por pouco não acabaram submersos. Seus imperiais ocupantes
viram-se, como diversos outros brasileiros, com a casa inundada e tiveram que
se abrigar em um vizinho ou parente, no caso, o Museu Paulista, mais
conhecido como Museu do Ipiranga.
Os caixões de d. Pedro e de d. Leopoldina ficaram expostos ao grande
público no Salão Nobre do Museu, aos pés do quadro Independência ou morte,
de Pedro Américo; para arrepio de alguns professores que conduziam
excursões escolares e sussurros de rápidas “ave-marias” entre funcionários.
Voltaram à cripta no final dos anos 1980, em cima de um veículo militar
escoltado por oficiais de diversas armas, em mais uma comemoração de 7 de
setembro.
A cripta sob o monumento foi construída no início da década de 1950, com
as paredes revestidas em granito verde e o teto, não mais existente, em
mármore amarelo. O controverso Monumento à Independência, que fica acima,
apelidado de “bolo de noiva”, é de 1922. Inicialmente, a cripta seria um
cenotáfio, espécie de memorial fúnebre em homenagem a d. Pedro e d.
Leopoldina, representados pelos sarcófagos vazios. O corpo da imperatriz
permaneceu de 1826 a 1911 no Convento da Ajuda. Devido às obras de
remodelação da área central do Rio de Janeiro, o convento foi demolido e os
sarcófagos de membros da família imperial, transportados para o Convento de
Santo Antônio. D. Pedro esteve em Portugal desde o falecimento, em setembro
de 1834.
O cenário mudou em 1954, durante a preparação para os festejos do quarto
centenário da cidade de São Paulo. O instituto histórico local resolveu coroar a
festa levando o corpo de d. Leopoldina do Rio de Janeiro para a capital
paulista, a fim de depositá-lo na cripta. Uma longa queda de braço4 entre a
Ordem Franciscana, responsável pela guarda do corpo da imperatriz, e a
comissão dos festejos teve início, com o presidente Getúlio Vargas e o ministro
da Educação e Cultura de um lado, querendo fazer a vontade dos paulistas, e os
franciscanos, protegidos pelo arcebispo do Rio de Janeiro, d. Jaime Câmara, do
outro.
No final, São Paulo ganhou a disputa e ficou com o corpo da imperatriz.
Dessa forma, d. Leopoldina — que escrevera certa vez à irmã Maria Luísa:
“nesta corte é necessário um espírito de sacrifício, sob todos os pontos de
vista” — acabou indo parar em São Paulo, cidade em que nunca estivera em
vida, na famosa colina do “Grito”, 126 anos depois de morta.
A vinda do corpo de d. Leopoldina abria um precedente. A cripta passava de
cenotáfio a um local consagrado pela religião católica, condição imposta pelos
trinetos de d. Leopoldina, d. Pedro Henrique e d. Pedro Gastão, para que
concordassem com o traslado do corpo desde o convento, no Rio de Janeiro,
até a colina do Ipiranga. Era criada, assim, a oportunidade de preencher o outro
sarcófago vazio, dedicado a d. Pedro I.
A possibilidade de trazer o corpo do imperador surgiu 18 anos após a
chegada de d. Leopoldina à cripta. Em 1964, foi instaurado no Brasil, a partir
de um golpe, o regime militar. O nacionalismo, a exaltação dos símbolos
pátrios e das festas cívicas, nas quais se buscava um “simulacro de partição
política no Estado Nacional”, constituíram o cenário perfeito para a apoteótica
festa em homenagem aos 150 anos de independência, em 1972.5 Desse modo,
um comitê foi instituído pelo presidente Médici visando à preparação das
festividades e às tratativas com outra ditadura — a salazarista, de Portugal —
para a vinda do corpo de d. Pedro para o Brasil.
Assim, nosso inquieto imperador atravessaria pela terceira vez o oceano
Atlântico, agora para protagonizar um espetáculo repleto de símbolos
históricos e religiosos. Transformado pela ditadura brasileira em uma
verdadeira relíquia sagrada, é de se considerar a opinião que d. Pedro, paladino
liberal e constitucional sem muita paciência para solenidades, teria a respeito
de ser usado por um sistema de governo contra o qual provavelmente, se vivo,
lutaria.
Opositores e defensores não faltavam à época no Brasil, inclusive entre
descendentes de pessoas ligadas intimamente à vida de d. Pedro, como José
Bonifácio de Andrada e Silva e o marquês de Barbacena. Dois frutos da
linhagem do Patriarca da Independência, o deputado federal Zezinho Bonifácio
e o general Antônio Carlos de Andrada Serpa, estavam ao lado do regime
militar — nada, aliás, muito diferente da índole do famoso antepassado,
reputado como homem autoritário. Por outro lado, Vinícius Caldeira Brant,
sociólogo e ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), bem como
descendente do marquês de Barbacena, era torturado nos porões da ditadura
durante as festividades do Sesquicentenário da Independência.
Portugal preparou-se para o traslado do ex-monarca. Localizaram o corpo no
Panteão dos Bragança, no mosteiro lisboeta de São Vicente de Fora, e
providenciaram três novos caixões para d. Pedro: um de madeira, estofado e
forrado internamente com tecido, onde o corpo foi acomodado, envolvido por
um de chumbo e outro de pau-santo ornado com símbolos portugueses e
brasileiros. O peso total era de 250 kg.
O cerimonial em Portugal teve início em 10 de abril de 1972, quando houve
uma cerimônia religiosa no Panteão dos Bragança. Posteriormente, o esquife
foi conduzido por soldados portugueses até o exterior do templo, onde uma
força do 5o Batalhão de Caçadores, do qual d. Pedro fora comandante, prestou
ao monarca as devidas honras militares. O caixão foi colocado em um veículo
do exército e transportado por Lisboa, sob escolta de um esquadrão de
cavalaria da Guarda Nacional Republicana, até o cais de Santa Apolônia, onde
veio a ser embarcado no navio Funchal por fuzileiros navais de ambas as
nacionalidades. Nesse momento, dois navios de guerra, um brasileiro e um
português, deram uma salva de 21 tiros.
O caixão ficou em uma câmara ardente no Funchal, e a esse navio juntaram-
se tanto os vasos de guerra brasileiros Pernambuco, Santa Catarina e Paraná
quanto os portugueses Gago Coutinho, Sacadura Cabral e João Belo. A
esquadra binacional foi saudada por aviões da Força Aérea Brasileira tão logo
entrou nas águas territoriais do país. Obedecendo ao cerimonial, o Funchal
aportou no Rio de Janeiro em 22 de abril, para que coincidisse com a data em
que Cabral chegou ao Brasil em 1500. Esqueceram-se de que a mesma data
também marcava o aniversário de 151 anos do decreto de d. João VI que
estabelecera o filho como príncipe regente. No monumento aos combatentes
brasileiros mortos na Segunda Guerra Mundial, o presidente português
Américo Tomás entregou oficialmente d. Pedro à pátria adotiva.
A propaganda política da ditadura já havia se utilizado de símbolos
populares, como alguns jogadores de futebol e a própria seleção brasileira,
beneficiando-se muito do prestígio obtido pelo suor e pela garra da equipe que
ganhara a Copa do Mundo de 1970. Dois anos depois, Médici colocaria um
morto e alguns vivos para correr o Brasil inteiro em favor de sua imagem. No
próprio dia 22 de abril, enquanto, sob o clamor de mais de cinco mil pessoas, o
corpo de d. Pedro seguia para seu antigo palácio, na Quinta da Boa Vista,
Description:Ao morrer, d. Pedro deixou para as futuras gerações de brasileiros uma difícil tarefa: entender as muitas contradições da sua vida e extrair das suas memórias uma imagem fiel de sua personalidade, suas ideias, angústias e ambições. Até hoje, esta tarefa não havia sido bem cumprida. Em mei