Table Of ContentGEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, pp. 77 - 103, 2004
COTIDIANO, ESPAÇO E TEMPO DE UM ANTIGO BAIRRO
PAULISTANO: TRANSFORMAÇÕES DA CIDADE E A DIMENSÃO DO
VIVIDO
Aluísio Wellichan Ramos*
RESUMO:
Este artigo procura discutir as diversas espacialidades de uma porção da cidade de São Paulo
conhecida por Água Branca, procurando ressaltar a importância da interação constante entre a
observação e análise empíricas e as teorias sobre a indústria e o urbano. Neste sentido, há uma
tentativa de mergulho na dimensão do vivido para compreender de forma mais ampla a realidade
objeto deste estudo.
O foco da discussão é o bairro e a sua concepção, o que, na verdade, é o ponto de partida da
análise. Como tentaremos mostrar, o bairro aqui é descoberto e redescoberto, a partir do movimento
inseparável do espaço-tempo. No entanto, tal movimento de suas espacialidades, que vão do rural
(localidade) ao urbano (porção imersa na metrópole), passando pelo industrial (bairro), não pode
negligenciar a dimensão do vivido.
PALAVRAS-CHAVE:
Bairro, cidade, metrópole, urbanização, modo de vida.
ABSTRACT:
This article tries to discuss some of the spacialities of a sector of São Paulo City, known as Água
Branca. We will try to put in evidence the importance of the constant interaction between the
empirical analysis and the theories about the industry and the urban. In this sense, there is a
tentative to go deep in the lived dimension, in order to understand better the reality of this study.
The focus of the discussion is the neighborhood and its conception, which is, actually, the starting
point of the analysis. As we will try to show, the neighborhood is discovered and rediscovered,
starting from the inseparable movement of the space-time. But the movement of its spacialiaties,
which goes from the rural (local) to the urban (portion immersed in metropolis), passing through the
industrial (neighborhood), can not council the lived dimension.
KEY WORDS:
Neighborhood, city, metropolis, urbanization, way of life.
I - Introdução tem sua gênese enquanto bairro paulistano
O ponto de partida deste artigo é a vinculado ao início da industrialização da cidade
discussão sobre as transformações de um local no final do século XIX. Tal local, no entanto, deixa
da cidade de São Paulo, conhecido por “Água de ser um bairro a partir de meados do século
Branca”, localizado em seu oeste próximo, o qual XX, devido à combinação de um duplo processo:
* Mestre e Doutorando em Geografia Humana pelo Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo.
E-mail: [email protected] ou [email protected]
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por um lado, o avanço e transformação da compreensão desta história têm como ponto de
urbanização, com a formação da metrópole, e, partida o presente. A nosso ver, o passado só é
por outro lado, o recuo da indústria na área a potente para a compreensão da realidade
partir de um processo de desindustrialização. presente quando analisado tendo como início o
Iniciamos este artigo procurando, em próprio presente, isso porque temos como base
primeiro lugar, fazer uma breve reconstituição desta pesquisa o método regressivo-progressivo,
histórica deste local, para em seguida que será elucidado mais adiante.
tentarmos trazer a dimensão do vivido como
um elemento de suma importância na
II - Um Local de Movimento
compreensão do movimento histórico das
espacialidades1 deste local. A Água Branca, tida numa concepção
mais ampla2, está situada administrativamente,
Cumpre esclarecer que toda a
em sua porção leste, no subdistrito de Perdizes,
reconstituição histórica aqui realizada e a
Mapa I: MAPA TOPOGRÁFICO DA ÁGUA BRANCA E IMEDIAÇÕES – 1971
Mapa Topográfico do Instituto Geográfico e Geológico de São Paulo (IGGSP). Trecho da folha 4. Escala
aproximada: 1:14.125
Cotidiano, Espaço e Tempo de um antigo bairro paulistano, pp. 77-103 79
e em suma porção oeste, no subdistrito da Lapa. D’ Alincourt)3 em descrições de viagens em 1819/
Localiza-se, portanto, no setor oeste de São 1821, além de ter sido constatada, algum tempo
Paulo, entre a Vila Romana a oeste (subdistrito depois, a instalação de chácaras, que passaram
da Lapa) e a Barra Funda ao norte e nordeste; a dar vida ao local.
ao sul, encontra-se com a Vila Pompéia O ponto principal que explica o
(subdistrito de Perdizes) e a leste e sudeste surgimento da localidade (e suas funções –
com o bairro de Perdizes. pouso de tropas e chácaras) é o fato desta
Sem nos preocuparmos com a infrutífera estar situada às beiras do antigo caminho de
tarefa de estabelecer limites fixos, podemos Jundiaí4, o que desde logo lhe trouxe o
dizer que a Água Branca compreende uma área movimento das tropas de muares que se
(na verdade uma estreita faixa) ao longo do dirigiam para a região de Jundiaí e Campinas e
trecho final da Avenida Francisco Matarazzo (a também para o núcleo colonial de Nossa
partir das imediações da Avenida Antarctica até Senhora do Ó5, uma vez que a estrada do Ó
seu término no Largo Pompéia), da Rua Carlos tinha seu início numa bifurcação a partir do
Vicari e do trecho inicial da Rua Clélia, seguindo antigo caminho de Jundiaí, exatamente no local
ainda por um trecho dos arredores da Rua denominado Água Branca6. Tratava-se,
Guaicurus e da Avenida Santa Marina, a partir portanto, de um local de convergência de duas
da Praça dos Inconfidentes. importantes estradas.7 Além disso, é importante
O entendimento do local passa, salientar, que o núcleo inicial da Água Branca
necessariamente, pela reconstituição e está situado em torno da confluência dos
compreensão de sua história e de sua inserção córregos da Água Branca e da Água Preta,
no conjunto da cidade. Nesse sentido, confluência na qual situa-se hoje o Largo
buscaremos fazer uma síntese da inserção da Pompéia, onde terminam as avenidas Pompéia
Água Branca na história da cidade de São Paulo. e Francisco Matarazzo.8
Com esse intuito, recuamos até meados do Quanto às funções sócio-econômicas que
século XIX, momento no qual localizamos as a localidade desenvolvia antes de ser
primeiras menções à este local sob a designação incorporada como bairro à cidade de São Paulo,
de Água Branca, quando este espaço integrava podemos citar duas como as principais: o
os arredores rurais da pequena São Paulo, que fornecimento de produtos primários à cidade de
contava por essa época com cerca de 20.000 São Paulo, através de alguns sítios e chácaras
habitantes. formados ao longo do século XIX e o apoio à
A Água Branca como uma porção urbana circulação extra-regional, através da existência
da cidade (como bairro integrado à cidade) tem de um pouso de tropas na localidade.
sua gênese por volta de meados da década de O mapa II, a seguir, é uma reconstituição
1880. Por sua vez, é difícil precisar quando a geral de como seria São Paulo em 1840, feita
localidade rural da Água Branca passou a ser por Frederico H. Gonçalves em 1937 e na qual
denominada e reconhecida como determinada vemos a Água Branca já figurar como uma
porção rural dos arredores do oeste do localidade, a oeste da cidade de São Paulo na
“município” de São Paulo. No entanto, pelo confluência dos córregos da Água Preta e Água
estudo retrospectivo que empreendemos, Branca. Vemos também, passando pela
consultando variada série de mapas, cartas, localidade, as estradas de Jundiaí e do Ó. O
croquis, documentos e textos, podemos concluir ponto a oeste da dita confluência, de onde
que essa porção oeste de São Paulo passou a divergem as estradas é o local em que
ser conhecida como Água Branca por volta do encontramos hoje a Praça dos Inconfidentes,
início do século XIX, em algum momento de suas também conhecido anteriormente como Largo
duas primeiras décadas, tendo aí se da Água Branca. Como se vê, a designação
estabelecido um pouso de tropas, mencionado “Água Branca” é bem anterior ao aparecimento
por viajantes (Auguste de Saint-Hilaire e Luiz do bairro e, portanto, à urbanização da área.
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Mapa II: RECONSTITUIÇÃO DE COMO SERIA SÃO PAULO EM 1840
Fonte: GONÇALVEZ, Frederico H., São Paulo em 1840 – reconstituição geral feita em 1937, In: BARRO,
Máximo, História dos Bairros de São Paulo: Nossa Senhora do Ó, v. 13, São Paulo, Divisão do Arquivo
Histórico do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do
Município de São Paulo, 1977, modificado por Aluísio Wellichan Ramos.
com que diminuísse, até cessar, o movimento
Vale insistir que a localidade era cortada
de tropas pelas estradas da localidade.
por uma importante estrada, a de Jundiaí/
Portanto, sua função de abrigar um pouso de
Campinas e ali ainda iniciava-se a estrada para
tropas, provavelmente, logo chegou ao fim,
a Freguesia de Nossa Senhora do Ó, portanto
antes do início (meados da década de 1880)
um local de interesse para os chacareiros, na
daquilo que podemos chamar propriamente de
medida em que tinham a comunicação e o
bairro da Água Branca. Outra importante ferrovia
transporte facilitados.
concorreu para a ocupação da localidade,
No entanto, o interesse pela localidade sobretudo para a formação do emergente bairro
passou a ser ainda maior quando da construção da cidade, a E.F. Sorocabana, inaugurada em
da antiga São Paulo Railway. A estrada de ferro, 1874, situando-se paralela à São Paulo Railway
inaugurada no início de 1867, e que teve desde neste trecho da cidade.
o seu princípio uma estação intermediária, entre
O mesmo processo não ocorreu com as
Perus e Luz, na Água Branca, sem dúvida fez
chácaras que conviveram por algumas décadas
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com o bairro nascente. Em realidade, as e relativamente baratos e da presença das duas
chácaras aumentaram a partir de 1870/80, não importantes ferrovias citadas, principal meio de
devido à instalação da ferrovia, mas ao transporte, sobretudo em âmbito regional, da
crescimento demográfico da cidade de São época.
Paulo. Segundo LANGENBUCH (1971), os O ponto chave para o entedimento da
“chacareiros portuguêses” foram instalados “em formação do bairro nascente é a industria-
áreas que estavam sendo difusamente ocupadas lização. Foi a instalação de inúmeras fábricas
pela expansão urbana, tais como Água Branca, Vila (dentre as quais grandes estabelecimentos
Pompéia, Lapa, Tatuapé, Penha, Itaim-Bibi, para a época, como a Cia. Antarctica Paulista em
Santana, Casa Verde, etc. Êstes chacareiros 1885, a Vidraria Santa Maria em 1896, a
produtores de legumes e verduras após 1920 Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo em 1920,
passariam a se deslocar, em sua maioria, para entre outras) que levou à formação do bairro.
áreas mais afastadas da cidade.”(p.118) Este abrigou, ao longo de sua história, variados
De maneira explícita ou, por vezes, tipos de indústrias, de diversos setores, porém,
implícita, mostramos até aqui a importância das predominaram largamente as de bens de
vias de circulação para a gênese da localidade. consumo não duráveis, indústrias típicas da
A conformação tanto da localidade, quanto do primeira fase da industrialização na cidade de
bairro nascente está vinculada aos caminhos. São Paulo durante o período aproximado de
Se fôssemos classificar a Água Branca, quanto 1880 a 1930, ou seja, o do início do processo
à forma, falaríamos em “localidade/bairro de de industrialização, o qual, cumpre notar, vem
beira de estrada”. Este fato perdura de certa acompanhado nesta fase por um intenso
forma até os dias atuais, na medida em que, processo de imigração, o que concorre também
quanto mais nos afastamos, para o sul ou para para a ocupação do nascente bairro.10
o norte, das citadas vias (que formavam os Do final do século XIX até meados do
antigos caminhos), mais distantes ficamos da século XX, a área vai industrializando-se e
Água Branca. Nos dias atuais, muito em urbanizando-se, paralelamente ocorrendo a
conseqüência das características que formação e o desenvolvimento do bairro e da
apontamos até aqui, a Água Branca não tem vida de bairro. A partir de meados do século
uma área core, um coração, mas uma artéria, e XX, no entanto, a urbanização assume uma nova
quanto mais longe dela, mais longe do bairro. dimensão, com a formação da metrópole
Por vezes, basta andar um ou dois quarteirões paulistana.
distanciando-se da artéria para que a Água
Assim, com o avanço da urbanização, com
Branca se mescle com outros bairros: Perdizes,
a formação da metrópole, a Água Branca é
Vila Romana, Vila Pompéia, Barra Funda ou
“reincorporada” à cidade, assumindo novas
Lapa.
funções, novas formas e conseqüentemente
A partir de 1870/1880, na localidade rural novas estruturas. A área é revalorizada em
passa a se configurar o bairro da Água Branca relação à cidade, ocorrendo um processo de
no momento em que a cidade de São Paulo, desindustrialização e um paralelo avanço do
impulsionada pela industrialização e pela setor terciário, isso em razão de inúmeros
expansão da cafeicultura no Oeste Paulista, fatores que vão desde os macroeconômicos até
passa a crescer como se tivesse acordado de às transformações significativas no modo de
um sono profundo.9 vida de seus habitantes, conforme veremos a
A ocupação mais intensa da área, o seguir, processo esse pautado em larga medida
parcelamento do solo através de loteamentos na grande valorização imobiliária que vem
e o conseqüente início do processo de ocorrendo no local.
urbanização da área, dão-se a partir de 1880,
com a instalação de inúmeras fábricas, em razão
da disponibilidade de terrenos amplos, planos
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III- O Movimento do Local – Água Branca: de mantém por inércia” devido ao peso da história;
Localidade a porção imersa na metrópole b) os bairros também podem ser tidos como
Antes de avançarmos na compreensão “uma unidade sociológica relativa, subordinada, que
das espacialidades da Água Branca é importante não define a realidade social, mas que é necessária.
tecermos algumas considerações sobre a Sem bairros, assim como sem ruas, pode haver
definição de bairro que utilizamos neste aglomeração, tecido urbano, megalópoles. Mas não
trabalho. Um primeiro ponto que deve ser há cidade.” c) O bairro pode ter “uma existência
levado em conta no que concerne ao bairro, é pela metade, simultaneamente para o habitante e
que este só pode ser definido a partir da cidade para o sociólogo. Constituem-se relações
enquanto totalidade (LEFEBVRE, 1975). Ou seja, interpessoais mais ou menos duradouras e
o bairro não existe enquanto uma unidade profundas. É o maior dos pequenos grupos sociais
isolada e autônoma. Trata-se, pois, de uma e o menor dos grandes.” Ao bairro, corresponde,
“unidade sociológica relativa”, que não pode ser pois, “um equipamento mais ou menos suficiente
tida como a base ou essência da vida urbana. e completo. Não só um monumento (igreja), mas
Ao contrário, a base da vida urbana para uma escola, uma agência dos correios, uma zona
LEFEBVRE (1975) é o centro. É a noção de comercial, etc. Um determinado bairro, desta
centralidade que constrói, que torna possível a forma, não é por si só auto-suficiente. O equipa-
cidade e seus bairros. Por isso, a centralidade mento depende de grupos funcionais mais amplos,
é a essência da cidade. Assim, o bairro só existe ativos à escala da cidade, da região, do país. A
diante da cidade, não podendo ser pensado estrutura do bairro depende estreitamente de
dela desvinculado. Segundo SEABRA (mimeo), outras estruturas mais vastas: municipa-lidades,
“a todos quantos vivam a qualquer distância do poder político, instituições.” Porém, é ao nível do
centro mas se reconheçam nele pertence a bairro que “o espaço e o tempo dos habitantes
cidade.”(p.2) tomam forma e sentido no espaço urbano.”
(LEFEBVRE, 1975:201-202)
Por isso, o bairro não pode ser pensado
de forma a-temporal, ou seja, ignorando a Por outro lado, o bairro também pode ser
história da cidade, pois ele não tem um grau de entendido como uma mediação entre o espaço
realidade constante ao longo dela e sua privado (da casa, da família) e o público, entre
existência histórico-concreta depende da a vida familiar e as relações societárias mais
conjunção de vários aspectos da sociabilidade amplas. De tal forma que ele é o locus de uma
de um local ao longo de um dado período11. Daí sociabilidade intermediária, baseada em larga
afirmar LEFEBVRE (1975), que o bairro não é a medida no compartilhamento de referenciais
essência da vida urbana, sendo uma espaciais comuns, como o espaço do encontro,
organização espacial mais conjuntural do que construído no nível da vida cotidiana.
estrutural. De acordo com SEABRA (2000: 11), Além disso, segundo Marcelo de SOUZA
“torna-se, portanto, necessário compreender qual (1989), o bairro é definido, ao mesmo tempo,
é o estatuto do bairro na história urbana e porque por uma existência concreta-objetiva e por uma
tanto se evoca o bairro. Afinal, é preciso não deixar existência subjetiva-intersubjetiva. Ou seja, o
margem às ontologias e nem às nostalgias. bairro é definido a partir de critérios objetivos,
Impõe-se compreender a historicidade do bairro.” apurados objetivamente diante do espaço
Assim, os bairros terão graus de realidade sensível e, simultaneamente, a partir de critérios
diferentes para momentos diferentes de sua que mergulham na intersubjetividade do grupo
história, de acordo com as suas singularidades social que nele vive e o aceita enquanto bairro.
no interior de uma cidade. Lefebvre aponta Estas duas dimensões interpenetram-se,
algumas características e idéias que podem condicionam-se, não se separam e definem o
orientar o estudo metódico dos bairros: a) bairro ao longo do processo histórico. Assim,
existem bairros que podem ser definidos como segundo SOUZA (1989), “a rigor, a realidade social
“uma pura e simples sobrevivência (que) se como um todo estabelece-se como uma dialética
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entre o objetivo e o subjetivo. No entanto, o bairro existência, conforme discutiremos a seguir,
pertence àquela categoria de ‘pedaços da realidade permaneçam.
social’ que possuem uma identidade mais ou
No entanto, se o bairro e a vida de bairro
menos inconfundível para todo um coletivo; o
têm uma existência que é datada, isso quer
bairro possui uma identidade intersubjetivamente
dizer que existiram outras espacialidades que
aceita pelos seus moradores e pelos moradores
o precedem e outras que são posteriores à sua
dos outros bairros da cidade, ainda que com
desestruturação. Quais são estas outras
variações. (...) A atribuição de um significado ao
espacialidades? O que nos levou a constatar a
bairro, a formação de uma imagem mental forte,
real existência do bairro? Como ocorreu a
a construção da identidade do bairro na mente do
gênese do bairro e o que explica a sua
indivíduo, a própria bairrofilia, dependem de
dissolução?
diversas circunstâncias”, as quais estão
compreendidas nos meandros que percorrem os Tendo-se em mente a breve reconstituição
diversos aspectos da relação dialética objetivo- histórica feita anteriormente, podemos concluir
subjetivo (p. 149). Sem esta interação que este espaço, denominado de Água Branca,
mutuamente determinada (objetivo-subjetivo), surgiu, num primeiro momento enquanto uma
os bairros ou são coisificados, pela objetividade localidade, o que, nos limites deste estudo,
extrema, ou, por outro lado, fantasmagorizados, significa, um espaço rural, amplo, no qual os
através da subjetividade extrema. poucos moradores estavam dispersos em
fazendas, sítios e chácaras. O tempo era lento,
SOUZA (1989) esclarece ainda que “as
o ritmo era mais ditado pela natureza, pela
pessoas inconsciente ou conscientemente sempre
chuva, pelo sol. A despeito de provavelmente
‘demarcam’ seus bairros, a partir de marcos
serem menos freqüentes, devido as distâncias
referenciais que elas, e certamente outras antes
que separavam as famílias, as relações eram
delas, produzindo uma herança simbólica que
possivelmente mais pessoais (primárias). Além
passa de geração a geração, identificam como
disso, tratava-se de uma localidade importante,
sendo interiores ou exteriores a um dado bairro.
na medida em que por ela passava uma das
Os limites do bairro podem ser imprecisos, podem
principais estradas que demandavam o interior
variar um pouco de pessoa para pessoa. Mas se
da Província. Era, pois, um local de movimento,
essa variação for muito grande, dificilmente estar-
de passagem, de um último descanso antes de
se-á perante um bairro, porque dificilmente haverá
se chegar no centro da Capital da Província e
um suporte para uma identidade razoavelmente
dali seguir para o porto de Santos ou para a
compartilhada, ou um legado simbólico
Capital do Império.
suficientemente expressivo. Para existir um bairro,
ainda que na sua mínima condição de referencial Não se trata de um espaço bucólico,
geográfico, é necessário haver um considerável calmo, livre de conflitos, mas de um espaço
espaço de manobra para a intersubjetividade, para permeado de um tempo lento, que marca uma
uma ampla interseção de subjetividades forma datada e específica de espacialidade: a
individuais.” (p. 150) da localidade.
Este breve entendimento sobre o bairro Num segundo momento, a industrialização
foi nosso ponto de partida para a busca da e a urbanização por ela induzida marcam uma
compreensão da realidade do bairro na nova passagem, que não é linear e tampouco
localidade designada Água Branca. Nesse isenta de novos conflitos e contradições. É o
sentido, o bairro deve ser entendido como uma tempo da formação e da estruturação do bairro.
espacialidade que tem sua existência Um bairro específico, que nasce com a
determinada pela relação dos processos industrialização, mas que permite uma
históricos mais amplos com os processos sociais determinada sociabilidade que podemos
que ocorrem na escala local e portanto tem uma entender como associada ao sentimento de
existência datada, ainda que resíduos dessa vizinhança, determinando uma outra forma
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predominante de espacialidade: a do bairro. mais estranhos devido à falta de experiências
O tempo, já não é mais o tempo lento da comuns, apesar da aparência superficial de
localidade, embora, persistam resquícios deste civilidade entre eles, à medida que a rede pessoal
tempo lento de outrora. O tempo agora, é o de transportes substitui a comunidade localizada
tempo do apito das fábricas, do turno de do passado com suas relações sociais outrora
trabalho ininterrupto, do homem que bate de densas. As novas áreas de comunhão são
porta em porta por volta da meia-noite para enclausuradas dentro de mundos sociais
chamar, em suas casas, para o trabalho na engendrados pela lógica do consumo – os shopping
fábrica, os operários que entram no turno que centers, bares de solteiros, parques de diversão e
começa a uma hora da madrugada.12 É o tempo quintais suburbanos.”(p.271-272)
rápido dos bondes lotados, do trabalho árduo O bairro e a vida de bairro que este
e sem perspectivas, da corrida diária pela suporta não resistem ao avanço da urbanização,
sobrevivência. a partir do momento que este processo passa
Terceiro momento: a desindustrialização, a configurar esta imensa aglomeração urbana,
acompanhada pela intensa valorização dos a metrópole. Segundo LEFEBVRE (1991), a
terrenos da Água Branca e, sobretudo, a cidade explode, ou seja, a sociedade urbana se
expansão da metrópole com a intensificação da generaliza, entra em todos os lugares e tende
urbanização, marcam um novo tempo e também a se tornar universal. E ao mesmo tempo, ela
uma nova espacialidade: a da porção imersa na implode, é destruída, restando apenas
metrópole. O bairro e a vida de bairro sucumbem fragmentos dispersos. A cidade que se expande
diante da explosão-implosão da cidade e a partir na explosão não é a cidade obra, apropriada
do novo modo de vida e da nova sociabilidade pelos seus cidadãos, mas a cidade produto, a
engendrada pela intensa urbanização (LEFEVRE, cidade do capital, aquela em que os valores de
1991). Neste momento, “a vizinhança se esfuma, troca predominam sobre os valores de uso, uma
o bairro se esboroa; as pessoas (os ‘habitantes’) cidade fragmentada, recortada, reconstruída
se deslocam num espaço que tende para a isotopia sobre si mesma constantemente para maximizar
geométrica, cheia de ordens e de signos, e onde a reprodução do capital. Ao comentar a obra de
as diferenças qualitativas dos lugares e instantes Lefebvre, KOFMAN & LEBAS (1996), sintetizam
não têm mais importância.” (LEFEBVRE, 1991:76- que suas análises sobre este tema, “giram em
77). É o tempo de acentuação das relações torno da profunda contradição da desestruturação
impessoais, mediadas pela mercadoria, triunfo da cidade e da intensificação e extensão do
do capitalismo em sua fase monopolista urbano.” (p.18)
avançada, do consumo em massa em templos Diante disso, quando falamos da Água
fechados: os shopping centers. Sem dúvida que Branca enquanto porção imersa na metrópole
neste novo momento os conflitos não como uma nova espacialidade, isto significa, além
desaparecem e, como tentaremos mostrar ao do mais, que tal espacialidade, ao contrário do
longo deste item, mostram que as contradições bairro, não é mais individualizada com facilidade
do espaço são produzidas e reproduzidas diante do todo (metrópole). A porção imersa não
constantemente pelo capital. GOTTDIENER se comporta como um todo no todo, como o
(1997), em sua tentativa de propor uma teoria bairro. Trata-se simplesmente de uma fração,
para a explicação da produção social do espaço uma porção do todo, e uma fração que é com-
urbano, entre outros pontos, também chega a posta de fragmentos. Claro que uma porção com
mesma conclusão ao afirmar que “a ação do características próprias, diferentes das outras
espaço abstrato fragmenta todos os grupos porções que também compõem o todo metropoli-
sociais, e não apenas o menos poderoso, de tal tano. O antigo bairro foi destruído, inclusive
forma que a vida da comunidade local perde a rua fisicamente, foi recortado por viadutos, grandes
e áreas públicas de comunhão em favor da avenidas, muros, enfim, obras que a confi-
privacidade do lar. Os vizinhos se tornam cada vez guração da grande metrópole demandava. O
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bairro foi assim recortado, fragmentado pelas resume o preceito que está por trás deste
obras demandadas pela metrópole e deixou de método: “o que existiu sempre existe, ainda que
existir, pois perdeu sua vida. seja nos seus fragmentos.” (p.4)
Um outro nível de entendimento desta Tal método supõe os seguintes
passagem do bairro a porção imersa na metrópole momentos: primeiro faz-se uma descrição
nos leva a pensar que houve uma centralização horizontal da realidade presente, observando,
do antigo bairro. Ou seja, com o avanço da ouvindo, levantando elementos, descrevendo,
urbanização e a conseqüente configuração da sem nos preocuparmos ainda com a análise das
metrópole, o centro “tradicional” se amplia, ao diversas temporalidades existentes e
mesmo tempo que novos centros são sobrepostas.
produzidos. Como sabemos, o bairro só existe Num segundo momento, com os olhos do
diante da cidade. Para haver bairros é presente, voltamos ao passado para
necessário que haja um centro. Assim, a compreendê-lo, desvendá-lo, elucidá-lo. Trata-
metrópole é policêntrica e, no caso da Água se do momento analítico-regressivo, que parte
Branca, ao mesmo tempo em que o local deixa do preceito formulado inicialmente por Marx, de
de ser um bairro, ele passa a ser parte do que “o atual permite compreender o passado e a
centro. Portanto, nesse caso, a porção imersa é sociedade capitalista as sociedades anteriores,
centro, comportando-se sócio-espacialmente porque desenvolve as categorias essenciais
como tal. dessa”(LEFEBVRE, 1975:17)15. É neste momento
No entanto, essas espacialidades analítico que procuramos compreender as
datadas estão sobrepostas. Uma não significa diversas temporalidades da história que
o fim da outra. Ou seja, tanto a localidade quanto continuam presentes no atual, mas que datam
o bairro ainda permanecem como resíduos de de outros tempos. Trata-se, pois, de um
tempos passados na porção imersa na metrópole. mergulho vertical na realidade social. “O que no
Em suma, o movimento do local13 apurado aqui primeiro momento parecia simultâneo e
revelou três espacialidades (pelo menos três contemporâneo é descoberto agora como
momentos do movimento da história): a da remanescente de época específica”(MARTINS,
localidade, a do bairro e a da porção imersa na 1996:17).
metrópole. O terceiro momento é o histórico-genético,
No que concerne ao questionamento “no curso do qual o proceder do pensamento volta
sobre a existência do bairro na Água Branca, até o atual, a partir do passado já decifrado,
pode-se concluir que este local vive o conflito e apreendido em si mesmo.”(LEFEBVRE, 1975:17)
a contradição de ter sido um bairro, cuja gênese Daí, a partir deste reencontro com o presente
se encontra no final do século XIX, no sentido já elucidado pelo realizado, pode-se entender
de ter tido vida de bairro, e estar atualmente o possível, o virtual (futuro). “Tendências e
imerso na metrópole, configurando-se como uma virtualidades são sempre plurais, e o que é
porção desta metrópole, não somente como impossível hoje pode tornar-se possível no futuro
porção física, mas sobretudo por causa das e vice-versa.” (KOFMAN & LEBAS, 1996:9)
significativas mudanças no seu modo de vida, Este método permite, como se vê, uma
marcado cada vez mais pelo individualismo, pela ampla compreensão da realidade vista em sua
impessoalidade e pela diminuição das relações complexidade, não a partir de uma história da
face a face, etc. simples sucessão linear de fatos. O tempo não
O que possibilitou aqui este entendimento é definido somente por linearidades, mas
das espacialidades diversas e sobrepostas foi também por seus desencontros e desconti-
o método regressivo-progressivo14, proposto por nuidades. Além disso, segundo LEFEBVRE (1997)
Henri Lefebvre, e no qual procuramos nos esse método deixa lugar para estudos locais
apoiar. Em breves palavras, SEABRA (mimeo) (como o aqui realizado), em diversas escalas,
inserindo-os na análise geral, na teoria geral.
86 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, 2004 RAMOS, A. W.
Atualmente vivemos, segundo Henri não se dá de forma linear, mas com passagens
Lefebvre, numa sociedade que tende para a críticas (zonas ou pontos críticos), repletos de
urbanização completa, da qual ainda não conflitos e contradições, além do que, vale
conseguimos compreender bem a lógica e as insistir, tais passagens não se dão de forma
contradições concretas, porque um “campo cego” absoluta, na medida em que a sociedade urbana
se define, ou seja, olhamos para o urbano com sempre vai trazer consigo resíduos das eras
os olhos e a perspectiva da sociedade industrial industrial e agrária. “A cidade, sua explosão, a
(sua antecessora). Assim, olhamos e não sociedade urbana e ‘o urbano’ em emergência,
enxergamos o que está diante dos olhos na superpõem suas contradições às da era industrial
realidade sensível em sua turva transparência. e da era agrária” (LEFEBVRE, 1975:12).
(LEFEBVRE, 1999b) Daí, também, a dificuldade Pois bem, tendo-se em conta a definição
de entender o processo de desestruturação dos de bairro e a teoria exposta neste item, bem
bairros, que nas condições atuais da como a reconstituição histórica da Água Branca,
urbanização transformam-se no que aqui propomo-nos agora, retomar algumas questões
denominamos de porção imersa na metrópole. centrais expostas neste artigo, a partir do plano
Agora, discutidos ainda que brevemente propriamente empírico, restabelecendo a
o método e a teoria que dão sustentação a esta discussão em outro patamar, ensaiando um
pesquisa, é possível afirmarmos que é a porção mergulho no cotidiano. Isso porque é a
imersa na metrópole que revela o bairro e as suas perspectiva do cotidiano que irá fundamentar
características, assim como a porção imersa e o com mais clareza as descobertas deste trabalho.
bairro revelam a localidade rural. Como dissemos
na Introdução, devemos partir sempre do
IV- O Cotidiano como Base da Compreensão
presente. A regressão sempre parte do
das Espacialidades
presente, em enorme complexidade.
O cotidiano implica, ao mesmo tempo, no
Tais espacialidades (localidade, bairro e
repetitivo e no criativo, na alienação e na
porção imersa) comportam-se, em realidade,
desalienação, nas manutenções e nas possíveis
como camadas superpostas, interpenetradas e,
transformações. Ambigüidades apenas apa-
eventualmente, absorvidas umas nas outras.
rentes, já que estamos debruçados num
Essas espacialidades podem ser compreendidas
movimento dialético que revela a todo instante
a partir da teoria do espaço diferencial, segundo
unidades de contrários. É, pois, na vida cotidiana
a qual “as diferenças que emergem e se
que estão as possibilidades de apropriação do
instauram no espaço não provém do espaço
tempo e do espaço pelo cidadão. Simultanea-
enquanto tal, mas do que nele se instala, reunido,
mente o lugar da pobreza e da miséria, a coti-
confrontado pela/na realidade urbana. Contrastes,
dianeidade revela a criatividade e a renovação
oposições, superposições e justaposições
incessante do homem. (LEFEBVRE, 1975)
substituem os distanciamentos, as distâncias
espaço-temporais” (LEFEBVRE, 1999b:117). Por isso, neste estudo, a dimensão do
vivido tem importância fundamental para as
Além disso, cumpre esclarecer que essas
conclusões a que chegamos no que diz respeito
espacialidades diversas da Água Branca estão
ao movimento das espacialidades da Água
vinculadas a um movimento mais amplo (que
Branca, isso porque os espaços assumem
se dá em escala planetária, não ao mesmo
diferentes significados e são diversamente
tempo e no mesmo ritmo em todos os lugares),
utilizados pelos moradores/usuários em
decifrado por Lefebvre, que vai do rural ao
diferentes momentos históricos.
urbano, passando pelo industrial. “Nesse
percurso, (há uma) complexificação da sociedade, Daí a importância das entrevistas. Aliás
quando ela passa do rural ao industrial e do foram os relatos de alguns moradores antigos
industrial ao urbano” (LEFEBVRE 1999b:153). O da Água Branca que ajudaram de forma
espaço e a sociedade têm esse movimento, que preponderante para a conclusão de que aquele
Description:PAULISTANO: TRANSFORMAÇÕES DA CIDADE E A DIMENSÃO DO. VIVIDO starting from the inseparable movement of the space-time. But the