Table Of ContentHans Ulrich Gumbrecht
Corpo e Forma
ENSAIOS PARA UMA CRÍTICA NÃO-HERMENÊUTICA
Organizador
João Cezar de Castro Rocha
Rio de Janeiro
1998
Copyright © 1998 by EdUERJ
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
___________________________UERJ/SISBI/SERPROT___________________________
G974 Gumbrecht, Hans Ulrich
Corpo e forma : ensaios para uma crítica não-hermenêutica / Hans
Ulrich Gumbrecht; Organizador João Cezar de Castro Rocha. - Rio
de Janeiro : EdUERJ, 1998.
180 p.
ISBN 85-85881-49-6
1. Literatura - Estética. 2. Literatura - História e crítica. 3.
Leitores - Reação crítica. I. Rocha, João Cezar de Castro. II. Título.
CDU82.01
Sumário
Introdução
A Materialidade da Teoria
Capítulo 1
As Consequências da Estética da Recepção:
Um Início Postergado
Capítulo 2
Persuadir a Quem Pensa como Você
As Funções do Discurso Epidictico sobre a Morte de Marat
Capítulo 3
Patologias no Sistema da Literatura
Capítulo 4
“É Apenas um Jogo”: História da Mídia, Esporte e Público
Capítulo 5
O Campo Não-Hermenêutico ou a Materialidade da Comunicação
Capítulo 6
O Futuro dos Estudos de Literatura?
Referências Bibliográficas
Introdução
A Materialidade da Teoria1
A
carreira de Hans Ulrich Gumbrecht sempre seguiu um cami
nho excepcional. Com vinte e seis anos, ele já era professor da Universi
dade de Bochum, após haver preparado sua Habilitationsschrift sob a super
visão de Hans Robert Jauss2. No sistema universitário alemão, a
Habilitationsschrift representa o momento final da formação acadêmica,
correspondendo a uma dissertação a ser apresentada após a aprovação da
tese de doutorado. Somente após esse instante, o doutor pode orientar
teses de doutorado e mesmo Habilitationsschriften. Para que o leitor perce
ba a importância da Habilitationsschrift, basta recordar que Walter Benja
min teve que renunciar à vida acadêmica quando o Ursprung des deutschen
Trauerspiels, originalmente apresentado como Habilitationsschrift, foi recusa
do3. Portanto, não é exatamente comum na Alemanha obter um posto de
professor na idade em que Gumbrecht o fez. A fim de reconstruir sua
carreira, retorno, pois, ao surgimento da estética da recepção. Advirto,
porém, que minha reconstrução da estética da recepção estará limitada ao
aporte de Hans Robert Jauss, pois foi com ele que Gumbrecht concluiu sua
formação e principiou sua carreira. Somente por esta razão não tratarei da
contribuição de Wolfgang Iser. Do ponto de vista teórico, a obra de Iser
é muito mais importante que a de Hans Robert Jauss. O trabalho de Iser
1 A versão inicial deste texto foi escrila, em conjunto com Pierpaolo Antonello, para publi
cação na Itália, com o título “Hans Ulrich Gumbrecht, catalizzatore di complessità". A
Pierpaolo agradeço o benefício de uma interlocução constante. Agradeço a Ivo Barbieri e
a José Jobim a leitura atenta desta Introdução e, sobretudo, inúmeras sugestões valiosas.
2 Hans Ulrich Gumbrecht. Funktionen parlamentarischer Rhetorik in der Französichen Revolution.
Vorstudien zur Entwicklung einer historischen Textpragmatik, München, Fink, 1978.
3 Agradeço a Johannes Kretschmer as informações relativas ao sistema universitário alemão.
Introdução
move-se numa direção muito particular, pois, menos do que a reconstrução
de horizontes históricos de recepção, Iser tem desenvolvido instigante refle
xão heurística sobre o caráter antropológico da literatura, cujo primeiro
passo foi a elaboração da estética do efeito, bastante distinta da estética da
recepção tal como praticada por Jauss.
Hans Robert Jauss se destacou como o principal articulador da
estética da recepção, movimento que se propunha a renovar os estudos
literários numa época em que muitos teóricos e críticos estavam divididos
entre a opção estruturalista e a pesquisa de uma renovada sociologia da
literatura. A estética da recepção almejava inaugurar um novo paradigma,
situado a meio-termo daquelas tendências. Como o público brasileiro não
desconhece a estética da recepção, pois tanto alguns de seus principais
textos se encontram traduzidos4 quanto uma síntese do movimento já foi
produzida3, cumpre observar que a carreira de Gumbrecht inicialmente se
define a partir de um afastamento progressivo em relação aos pressupostos
da Escola de Constança.
Nos ensaios que compõem Corpo e forma: ensaios para uma crítica
não-hermenêutica, o leitor acompanhará o percurso intelectual de Hans Ulrich
Gumbrecht, cujo eixo gira, de um lado, em torno de ativo diálogo entre
literatura e história, num esforço de contaminação no qual o conceito de
literatura é repensado através de uma radical historicização e o ofício do
historiador é redimensionado mediante a investigação da natureza discursiva
da escrita histórica*’. De outro, seu percurso intelectual supõe a superação
das tradicionais fronteiras disciplinares num esforço de transgressão que
pretende contribuir para a reconfiguração do espaço acadêmico contempo
râneo. Ao menos, esta foi a intuição de Jean-François Lyotard ao descrever
o Programa de Doutorado coordenado por Gumbrecht em Siegen: “A
instituição do Seminário contém no seu âmbito uma crítica à própria insti
4 Ver Luiz Cosia Lima. A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, São Paulo, Paz
e Terra, 1979. O leitor deve consultar a Introdução, “O leitor demanda (d)a literatura”,
pp. 9-39. Ver ainda a Seção dedicada às estéticas da recepção e do efeito in Teoria da
literatura em suas fontes, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983, pp. 305-441, vol. II.
5 Ver Regina Zilberman. Estética da recepção e história da literatura, São Paulo, Ática, 1989. Para
uma avaliação mais recente, ver Luiza Lobo, “Leitor”, pp. 231-251, especialmente pp. 232-
242; in José Luís Jobim (org.). Palavras da critica, Rio de Janeiro, Imago, 1992.
6 Nesse contexto, vale recordar que o livro de Hayden While, Metahistory. The Historical
Imagination in Nineteenth-Century Europe, publicado em 1973, foi muito importante para o
pensamento de Hans Ulrich Gumbrecht.
8
A Materialidade da Teoria
tuição. (...) Sonhamos com a estrutura abrangente de uma universidade
européia”.7 A mobilidade institucional e intelectual de Gumbrecht estimula
uma forma de apresentação pouco comum. Nas páginas seguintes, propo
rei uma topologia do seu pensamento, assinalando os espaços acadêmicos
e os encontros teóricos que marcaram sua trajetória. A trajetória de um
“catalisador de complexidades”8; que não apenas se encontra em curso,
uma vez que o atual esforço de Gumbrecht constitui-se num work in progress,
mas que, como toda viagem, apresenta uma inevitável dose de
imprevisibilidade. Neste sentido, o ponto de partida de seu percurso tem
um sabor levemente irônico.
Constança; A Complexidade é Sempre Inconstante
A característica mais saliente da teoria literária contemporânea é
a pluralidade; traço, aliás, presente em outras áreas do conhecimento. De
fato, no âmbito das ciências humanas, o estruturalismo representou o úl
timo movimento que, por algum tempo, pretendeu impor-se como teoria
hegemônica, unificadora de métodos diferentes. Nesse contexto, a estética
da recepção apresentou-se como uma tentativa sistemática para fornecer
uma resposta ao problema da elaboração de um paradigma capaz de subs
tituir o estruturalismo, cuja deficiência principal, em relação aos estudos
literários, revelara-se na impossibilidade de incluir, em suas análises, o
leitor como elemento histórico. Oficialmente lançada na aula de abertura
dos cursos da Universidade de Constança, proferida por Jauss em 19679, a
estética da recepção almejava o desenvolvimento de uma abordagem que
superasse a concepção autocentrada do texto literário, direcionando assim
os estudos literários para uma retomada da história que, em alguma me
dida, convergia com a motivação política do movimento estudantil de final
7 Jean-François Lyotard. “Ersiegerungen", in Political Writings, Bill Readings (org.). Minneapolis,
University of Minnesota Press, 1993, pp. 80-81. O texto é de 1989.
8 A expressão é de Rudolf Maresch. “Kalalisator von intellektueller Komplexität sein. Gespräch
mit Rudolf Maresch”, in Rudolf Maresch (org.), Am Ende vorbei, Viena, Turia & Kant, 1994,
pp. 206-238.
9 Hans Robert Jauss. “Was ist und zu welchem Ende studiert man Literaturgeschichte?” (“O que
é e com que fim se estuda história da literatura?”). A versão final deste texto foi publicada
com o título “Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft”, in Literaturgeschichte
als Provokation, Frankfurt, Suhrkamp, 1970. Ver a tradução brasileira de Sérgio Tellaroli. ,4
história da literatura como provocação à teoria literária, São Paulo, Ática, 1994.
9
Introdução
dos anos sessenta10. Regina Zilberman já o havia sugerido: “a estética da
recepção apresenta-se como uma teoria em que a investigação muda de
foco: do texto (...) passa para o leitor. (...) Essa transferência, por sua vez,
explica-se historicamente: é contemporânea às revoltas estudands, ao mesmo
tempo representando uma resposta a elas”.11 Não se trata de uma resposta
automática, por certo, mas de uma elaboração teórico-metodológica tanto
favorecida pelas condições contemporâneas quanto alimentada por debates
próprios da teoria literária.
Inspirado em Hans-Georg Gadamer, Jauss privilegiava a recons
trução do horizonte histórico no qual determinado texto fora produzido e,
sobretudo, atualizado, ou seja, lido. Seu esforço pretendia conceituar o
modo em que se processava a interação das expectativas tradicionais do
leitor com um texto específico numa circunstância histórica particular. A
análise da fusão do horizontes de expectativa com o ato de leitura tornou-
se extremamente relevante para a corrente da estética da recepção preocu
pada com aprofundar a compreensão hermenêutica de Gadamer no que se
refere ao relacionamento do passado com o presente12.
A visão otimista da estética da recepção compreendida como
uma mudança de paradigma capaz de assumir a hegemonia dos estudos
literários foi claramente expressa por Jauss no ensaio “O leitor como ins
tância de uma nova história da literatura”.13 Segundo Jauss, a estética da
recepção representava a verdadeira alternativa de superação do impasse no
qual os estudos literários se encontravam desde o final dos anos quarenta.
Esse impasse seria ultrapassado porque, sem negligenciar os elementos
dinâmicos próprios da formulação literária, a estética da recepção incluía
em seu programa a reconstrução do horizonte de atos particulares de
leitura. Desse modo, criava-se novo modelo de historicidade para o objeto
literário, que contemplava uma instância externa ao texto. É precisamente
10 Wolfgang Iser ofereceu importante depoimento sobre esta convergência na primeira das
cinco conferências proferidas num Colóquio dedicado ao exame de sua obra, realizado em
1996, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ver VII Colóquio UERJ - Wolfgang Iser.
João Cezar de Castro Rocha e Johannes Kretschmer (orgs.), Rio de Janeiro, EdUERJ, (no
prelo).
11 Regina Zilberman. Op. cit., p. 11.
12 Um exemplo desta corrente é o texto de Jauss, Der Text, der Vergangenheit im Dialog mit
der Gegenwart (Klassik - wieder modern?). “O texto do passado no diálogo com o presente
- classicismo - de novo moderno?”, in Sprache und Welterfahrung, J. Zimmermann (org\),
München, Gink, 1978.
13 Hans Robert Jauss. “Der Leser als Instanz einer neuen Geschichte der Literatur”, in
Poetica, 7, 1975, pp. 325-344.
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