Table Of ContentComo era fabuloso o meu francês!
Imagens e imaginários da França no Brasil (séc. XIX-XXI)
Coleção FCRB Estudos 19
Como era fabuloso o meu francês!
Imagens e imaginários da França no Brasil (séc. XIX-XX)
Organização
Anaïs Fléchet
Olivier Compagnon
Sílvia Capanema P. de Almeida
Rio de Janeiro 2017
Presidente da República Sumário
Michel Temer
Ministro da Cultura
Sérgio Sá Leitão
Fundação Casa de Rui Barbosa Introdução
Presidente
Estereótipos, modelos e caricaturas:
Marta de Senna
as imagens contrastadas da França no Brasil
Diretor Executivo
Marcelo Viana Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon,
Diretor do Centro de Pesquisa Sílvia Capanema P. de Almeida 7
Antonio Herculano Lopes
Chefe do Setor de Historia
I. Civilização e barbárie
Joëlle Rouchou
Chefe do Setor de Editoração Napoleão Bonaparte e o Brasil:
Benjamin Albagli Neto
representações, política e imaginário (1808-1822)
Projeto Gráfico da Coleção FCRB
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves 25
Angelo Venosa
Produção Editorial À la française: a educação das elites paulistanas
7Letras
na Primeira República
Revisão de texto (FCRB): Lucas Bastos, Patrícia Baroni e Roberta Basto Ingrid Hötte Ambrogi 43
Assistente Editorial (FCRB): Rowena Esteves
Um sonho comum: invadir Paris.
Estagiária Editorial (FCRB): Iohanna Sanches, Sara Ramos
O humor brasileiro e a caricatura dos franceses
Imagem de capa
durante a Primeira Guerra Mundial
J. Carlos
Careta, 10/10/1914, ano vii, n. 329. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil. Sílvia Capanema P. de Almeida 58
Como era belicoso o meu francês: as elites
intelectuais brasileiras e a França no contexto
C735 Como era fabuloso o meu francês! : imagens e imaginários da França no Brasil
(séc. XIX-XX) / organização Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon, Sílvia Capanema P. da Primeira Guerra Mundial
de Almeida. — Rio de Janeiro : Fundação Casa de Rui Barbosa : 7 Letras, 2017.
Olivier Compagnon 88
192 p. ; 14 x 21 cm – (Coleção FCRB Estudos ; 19)
ISBN (FCRB) 978-85-7004-371-9 II. A França, mãe das artes
ISBN (7Letras) 978-85-421-0637-4
Nicolas-Antoine Taunay e a Arcádia francesa no Brasil
1. França – aspectos culturais – Séc. XIX-XX. 2. Relações culturais – Brasil – França
Lilia Moritz Schwarcz 113
– Séc. XIX-XX. I. Fléchet, Anaïs, org. II. Compagnon, Olivier, org. III. Almeida, Sílvia
Capanema P. de, org. IV. Série.
Uma Marianne negra no Brasil de Jean Baptiste Debret?
CDD 306.0944 Heloisa Pires Lima 145
Discussões acerca da modernidade e transculturação
Fundação Casa de Rui Barbosa Viveiros de Castro Editora Ltda. nas artes decorativas nacionais nos anos 1920 e 1930:
Rua São Clemente 134, Botafogo Rua Visconde de Pirajá, 580/ sl. 320, Ipanema
console Luís XV, bufete de bolacha ou mesa de aço e vidro?
22260-000, Rio de Janeiro, RJ 22410-902, Rio de Janeiro, RJ
Telefone (21) 3289-4600 Telefone (21) 2540-0076 Marize Malta 170
[email protected] | www.casaruibarbosa.gov.br [email protected] | www.7letras.com.br
Matrizes francesas na gravura artística brasileira: Introdução1
Rio de Janeiro, anos 1960
Maria Luisa Luz Tavora 189 Estereótipos, modelos e caricaturas: as imagens
contrastadas da França no Brasil
III. Grandeza e decadência da mulher francesa
Haute bicherie no Rio de Janeiro: reconfigurações Anaïs Fléchet
do olhar iluminista no imaginário franco-brasileiro
Olivier Compagnon
Mônica Pimenta Velloso 204
Sílvia Capanema P. de Almeida
“Civilização” pelo avesso: cocottes francesas
no Rio de Janeiro imperial
Lená Medeiros de Menezes 230
Imagens em trânsito: Salomé e a mulher moderna
As relações culturais entre o Brasil e a França já se consoli-
na cultura finissecular carioca
Cláudia Oliveira 246 daram como um profícuo campo de pesquisa que deu origem a
diversas publicações dos dois lados do Atlântico, tanto na área
IV. O espelho do outro das ciências humanas quanto dos estudos literários. Em 1940,
Pontes míticas entre França e Brasil: justamente quando o exército francês capitulava em poucos dias
diálogo de imaginários diante da invasão das tropas alemãs de Hitler, Gilberto Freyre
Monique Augras 261 publicava uma obra sobre Louis-Léger Vauthier (1815-1901),
Brasil e França: intercâmbios culturais. engenheiro francês que se instalou em Recife um século antes e
Artes, autores e letras coordenou a construção de diversos edifícios e obras de infra-
Tania Maria Tavares Bessone da C. Ferreira 277 estrutura em Pernambuco. No prefácio do livro, o já famoso
A polêmica França-Brasil no Segundo Reinado: autor de Casa-grande e senzala homenageava a “alta cultura
o nascimento do nacionalismo cultural brasileiro francesa – a arte, a literatura, a ciência, a filosofia” –, sem a qual
através do espelho francês “algumas das melhores obras brasileiras não teriam sido escri-
Sébastien Rozeaux 298
tas nem teriam se realizado algumas das nossas maiores voca-
Vou a Paris... Si tu vas à Rio! ções de artistas e de homens de ciência”.2
Imagens cruzadas da França e do Brasil
na música popular do século XX
1 Este livro tem origem nas discussões realizadas na ocasião do colóquio orga-
Anaïs Fléchet 324
nizado na Fundação Casa de Rui Barbosa em 2009 no quadro das comemora-
ções do Ano da França no Brasil, com apoio da Association pour la Recherche
V. À guisa de conclusão sur le Brésil en Europe (ARBRE) e do consulado da França no Rio de Janeiro.
2 FREYRE, Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro:
Mentalidades, opinião, representações,
J. Olympio, 1940. p. 15. Sobre os anos de Vauthier no Brasil, ver o trabalho de:
imaginários e relações internacionais
PONCIONI, Cláudia. Pontes e ideias: Louis-Léger Vauthier, um engenheiro
Robert Frank 353 fourierista no Brasil. Recife: Cepe, 2010.
7
Quinze anos mais tarde, Roger Bastide publica, em um No âmbito dessa historiografia abundante, e referindo-se
catálogo de uma exposição na sede dos Arquivos Nacionais de especificamente aos séculos XIX e XX, a maior parte das análises
Paris, um breve texto no qual evoca a persistência das referên- preferiu enfocar a importância das referências francesas para
cias francesas na vida cultural brasileira: “o naturalismo, o par- a construção de uma modernidade política e cultural brasi-
nasianismo, o simbolismo introduzem no Brasil Balzac e Zola, leira. Da filosofia das Luzes como ingrediente da Inconfidência
Heredia ou Mallarmé; a flauta de Verlaine encanta os fantasmas Mineira em 1789 até o sucesso da french theory (Foucault,
das cidades moribundas de Minas Gerais e os sonetos viajam Derrida, Deleuze, Lyotard, Guattari e outros) nos meios acadê-
sozinhos como se fossem caixinhas de música”.3 Dando sequên- micos tupiniquins a partir dos anos 1970, passando pela apro-
cia a essas figuras de referência da antropologia contemporânea, priação do lema “Ordem e Progresso”, de Augusto Comte, na
os trabalhos universitários se multiplicam. Na virada dos anos bandeira da República ou pela renovação urbanística do Rio de
1980 e 1990, é publicada uma importante obra bilíngue sobre as Janeiro conforme as regras e preceitos do barão de Haussmann
imagens recíprocas da França e do Brasil.4 Além disso, os livros sob o impulso de Pereira Passos, poderíamos tranquilamente
de Mário Carelli e de Pierre Rivas, hoje considerados “clássicos” ser levados a deduzir que o Brasil contemporâneo – da mesma
do tema, exploram amplamente a história dessas trocas tão ou forma, aliás, que os outros países da América Latina – seria
quase tão antigas quanto a chegada de Cabral às costas do atual um herdeiro tropical de uma França concebida como a matriz
estado da Bahia.5 Muitos outros trabalhos desenvolvem diferen- de todas as liberdades, a mãe das letras e das artes, o coração
tes aspectos particulares desses intercâmbios franco-brasileiros, da civilização por excelência. Ora, a primeira revista literária
que se mostram tão densos quanto diversificados desde a efê- brasileira, Nitheroy, não teria sido justamente criada em Paris
mera experiência da França Antártica na baía de Guanabara em em 1836? E não era com uma estadia na Cidade Luz, de pre-
meados do século XVI, e que – devemos ressaltar – são com ferência durante uma Exposição Universal, como em 1889 ou
frequência apresentadas sob a forma da metáfora amorosa.6 1900, que deveria se concluir a boa educação da elite brasi-
leira? Resolutamente afrancesadas pelo menos até a Primeira
3 BASTIDE, Roger. Échanges culturels entre la France et le Brésil. In: FRANCE et Guerra Mundial, as elites brasileiras teriam, entretanto,
Brésil: exposition à l’hôtel de Rohan. Paris: Archives Nationales, 1955. p. 81. [N.
E.: as traduções neste texto são nossas]. PEIXOTO, Fernanda Arêas. Diálogos
brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2000.
MUZART-FONSECA, Idelette; ROLLAND, Denis (Dir.). Modèles politiques et
4 PARVAUX, Solange; REVEL-MOUROZ, Jean (Dir.). Images réciproques du culturels au Brésil: emprunts, adaptations, rejets: XIXe et XXe siècles. Paris:
Brésil et de la France. Paris: Éditions de l’IHEAL, 1991. v. 2. Publications de la Sorbonne, 2003; MARTINS, Carlos Benedito (Org.).
5 CARELLI, Mário. Cultures croisées: histoire des échanges culturels entre la Diálogos entre o Brasil e a França: formação e cooperação acadêmica. Recife:
France et le Brésil de la Découverte aux temps modernes. Paris: Nathan, Fundação Joaquim Nabuco: Ed. Massangana, 2005. v. 2; “A França e o
1993; RIVAS, Pierre. Encontro entre literaturas: França, Portugal, Brasil. São Brasil”, número especial da Revista Brasileira. Rio de Janeiro, fase 7, ano 11,
Paulo: Hucitec, 1995. n. 43, abr./maio/jun. 2005; VIDAL, Laurent; LUCA, Tania Regina de (Org.).
6 A título de exemplo, ver: HAMBURGER, Amélia. A ciência nas relações Franceses no Brasil: séculos XIX-XX. São Paulo: Ed. Unesp, 2009; ABREU,
Brasil-França: 1850-1950. São Paulo: Edusp, 1996; NAVAS, Cássia. Dança Márcia; DEACTO, Marisa (Org.). A circulação transatlântica dos impressos:
e mundialização: políticas de cultura no eixo Brasil-França. São Paulo: conexões. São Paulo: Edusp: Unicamp/IEL, 2014. Para mais referências, a
Hucitec, 1999; NITRINI, Sandra (Org.). Aquém e além mar: relações cultu- bibliografia no site da Biblioteca Nacional da França é bastante enriquece-
rais Brasil e França. São Paulo: Hucitec, 2000; MATTOSO, Katia de Queirós; dora: <http://bndigital.bn.br/francebr/frances/bibliographie.htm>.
8 9
progressivamente se emancipado da tutela francesa, isso em violência imóvel nas estradas do sertão. Claudel escreve no
grande parte devido ao desenvolvimento do nacionalismo Rio La messe là-bas, em que os Trópicos dão uma réplica a
Verdun, e encontramos referências à macumba carioca até
cultural – cujo momento forte é a Semana de Arte Moderna
no Le soulier de Satin.10
realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922 – e da afirmação
crescente do imperialismo sedutor dos Estados Unidos,7 sem Há aproximadamente uma década se apoiando nas noções
perder, contudo, os laços privilegiados com Paris, essa “antiga de transferências culturais, de história comparada, de história
namorada” cantada por Vinícius de Moraes.8 Nessa perspectiva, cruzada, de história atlântica e de história global,11 diversos tra-
a comemoração do ano da França no Brasil em 2009 teria sido a balhos vêm destacando as circulações no sentido Brasil-França
última celebração de uma velha história de amor transatlântica em diferentes áreas, da constituição dos saberes científicos na
marcada por uma dissimetria estrutural de longa data – entre virada do século XIX para o XX até as experiências da democra-
uma França vista com fascinação e um Brasil cego pela atração. cia participativa brasileira em solo francês, passando pela lite-
Se não se trata de negar a existência efetiva de dinâmicas ratura ou pela música popular.12 Além disso, as representações
circulatórias da Europa para a América Latina desde a época das da França nem sempre foram entusiastas e uniformes, como
Grandes Descobertas,9 é também evidente que a realidade das deixou entender, aliás, o próprio Gilberto Freyre em seu ensaio
relações culturais franco-brasileiras é infinitamente mais com- sobre Vauthier, evocando os “exageros de francesismos”.13 Ao
plexa que essa visão etnocêntrica, às vezes ainda perpetuada de longo dos séculos XIX e XX, a francofilia das elites sempre con-
viveu com as expressões de crítica ou rejeição da França, que
maneira mais ou menos explícita por alguns discursos políticos
nunca deixou de veicular sistemas de representações contradi-
e trabalhos universitários. Porém, como bem lembrou Roger
Bastide já em 1955, as trocas nunca foram unilaterais, indo de tórios. Se já é de praxe opor um século XIX dominado por um
um pretendido centro francês em direção a uma suposta peri-
10 BASTIDE, Roger. Échanges culturels entre la France et le Brésil, p. 82-83.
feria brasileira:
11 Sobre essas diferentes noções, ver entre outros: GRUZINSKI, Serge. Les
pirates chinois de l’Amazone. Sur les traces de l’histoire-monde. Le Débat,
[...] nossos escritores e nossos músicos [franceses] vão bus-
Paris, p. 171-179, févr. 2009; BOUCHERON, Patrick; DELALANDE, Nicolas
car no Brasil novas músicas e cores. O próprio Sainte-Beuve
(Org.). Pour une histoire-monde. Paris: PUF, 2013; OLSTEIN, Diego. Thinking
já observava a influência da literatura de Minas nas origens history globally. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014.
do romantismo francês [...]. Blaise Cendrars descobre a 12 Ver, por exemplo: COMPAGNON, Olivier; DROULERS, Martine (Dir.). Dossier
Le Brésil et la France au XXe siècle. Cahiers des Amériques latines, n. 48-49,
p. 17-106, jánv./févr. 2005; OLIVEIRA, Osmany Porto de. Le transfert d’un
7 Segundo os termos de: TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a ame- modèle de démocratie participative: paradiplomatie entre Porto Alegre et
ricanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia Saint-Denis. Paris: Éditions de l’IHEAL, 2010. (Coleção Chrysalides);
das Letras, 2000. RIAUDEL, Michel. Le Fleuve palimpseste. L’Amazone de Jules Verne, des
8 MORAES, Vinicius de. Vale bem uma missa (Paris). Última Hora, Rio de sources à la fiction. In: FARRÉ, M. J.; MARTINEZ, F.; OLIVARES, I. (Org.).
Janeiro, 1º jun. 1952. Hommes de science et intellectuels européens en Amérique latine: XIXe-
9 Ver: GUERRA, François-Xavier. L’Euroamérique: constitution et perceptions XXe siècles. Paris: Le Manuscrit, 2005. p. 397-411; FLECHET, Anaïs. Si tu
d’un espace culturel commun. In: LES CIVILISATIONS dans le regard de vas à Rio: la musique populaire brésilienne en France au XXe siècle. Paris:
l’autre. Paris: Unesco, 2002. p. 183-192. Ver também: LAPLANTINE, François. Armand Colin, 2012.
Transatlantique, entre Europe et Amériques Latines. Paris: Payot, 1994. 13 FREYRE, Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil, p. 15.
10 11
modelo francês a um século XX mais crítico e distante – durante ao olhar curioso da mídia em sua passagem por Búzios em
o qual os intelectuais brasileiros, possuídos pelo “mal-estar da 1964, personifica uma das vertentes do ideal feminino francês,
cópia”,14 teriam rejeitado as influências culturais estrangeiras, assim como as cocottes parisienses que, chegadas “diretamente”
privilegiando a caricatura da França e de seus habitantes –, a de Montmartre, ocupam os bordéis do Rio de Janeiro da Belle
galofobia e a galofilia convivem de fato há muito tempo e deram Époque e o imaginário da cidade, ou como Joana Francesa
origem a um conjunto complexo de estereótipos, marcado ao representada por Jeanne Moreau no filme de Carlos Diegues,
mesmo tempo por uma busca de paralelismos (“Nós como os em 1973.16 Se a notoriedade da rua do Ouvidor nasceu da pre-
Outros”) e por um efeito de contraste (“Nós contra os Outros”). sença maciça da moda parisiense no século XX, o estereótipo
Modelo da modernidade política quando dá lugar a uma segundo o qual “os franceses não tomam banho”, popularizado
Assembleia Constituinte, suprime os privilégios e proclama a no Brasil por meio do personagem Pepé Le Pew ou Pepê Le
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, a Gambá,17 de Tex Avery, encontra-se ainda hoje profundamente
França se torna para muitos um objeto de repulsa quando é cor- inscrito no imaginário coletivo.
tada a cabeça de Luís XVI em 1793, quando é proclamada, em Cada clichê positivo parece, assim, dispor de seu contrário
1804, a República Negra do Haiti, ou durante a Primeira Guerra negativo: os franceses podem até ter lutado pela liberdade e pela
Mundial, quando a defesa da “civilização francesa” frente aos igualdade, mas são tradicionalmente mal-humorados, ranzin-
“bárbaros alemães” provoca o massacre de milhões de homens. zas, e a greve já se tornou um “esporte nacional” na esperança
de uma hipotética revolução. Falar francês é um signo de dis-
Nesse sentido, a França, ao mesmo tempo que inspirava mode-
tinção, mas o homem que fala “fazendo biquinho” é logo visto
los e “modas”, também suscitava o medo e podia representar
projetos políticos divergentes.15 como afeminado. A cozinha francesa é refinada, mas suas por-
ções são tão pequenas “que não dá nem para sujar o prato” etc. É
Objeto de fantasias de toda uma geração de brasileiros para
além das clivagens sociais, Brigitte Bardot, que expõe seu corpo
16 Sobre essas imagens contraditórias da França, ver: PERRONE-MOISÉS, Leyla.
Gallophilie et gallophobie dans la culture brésilienne: XIXe-XXe siècles. In:
14 Segundo a expressão de: SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: MATTOSO, Kátia de Queirós; MUZART, Idelette; ROLLAND, Denis (Dir.).
Companhia das Letras, 1987. Ver também sobre o tema a ideia de “nacional Modèles politiques et culturels au Brésil: emprunts, adaptations, rejets: XIXe et
estrangeiro” desenvolvida em: MICELI, Sérgio. Nacional estrangeiro: histó- XXe siècles. Paris: Publications de la Sorbonne, 2003. p. 23-54.
ria social e cultural do modernismo em São Paulo. São Paulo: Companhia 17 Esse personagem da série de desenhos animados Looney Tunes, da Warner
das Letras, 2003. Bros., é representado por um gambá de nacionalidade francesa que persegue
15 Sobre o medo das ideias francesas no Brasil do século XIX, ver: MOREL, uma gata, Penélope Pussycat, que teve as costas marcadas acidentalmente por
Marco. O abade Grégoire, o Haiti e o Brasil: repercussões no raiar do século uma faixa branca, confundindo-se com uma fêmea da mesma espécie. Porém,
XIX. Almanack Braziliense, n. 2, p. 76-90, 2005. Ver também, sobre a mesma Pepê nunca consegue seduzi-la, sobretudo devido ao seu mau cheiro extremo.
questão no Rio de Janeiro do século XIX: MOREL, Marco. As transforma- Dentre os maiores sucessos do desenho, estão Odor-able kity (1945) e For
ções dos espaços públicos, imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade scent-imental reasons (1949), que contribuíram para divulgar o clichê dos “fran-
imperial: 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005. E sobre o impacto da Primeira ceses malcheirosos” no mundo ocidental. Na série, Pepê apresenta ainda dois
Guerra Mundial no Brasil, ver: COMPAGNON, Olivier. O Adeus à Europa: a traços tipicamente atribuídos ao imaginário sobre os franceses: se expressa com
América Latina e a Grande Guerra (Argentina e Brasil, 1914-1939). Rio de um sotaque carregado, exagerando na pronúncia gutural da letra “r”, e mostra
Janeiro: Editora Rocco, 2014. ser um excelente amante, na busca incansável pelo carinho da fêmea desejada.
12 13
a essa constante superposição de representações contraditórias a percepção do Outro na história das relações internacionais18
que dedicamos este livro, buscando dar conta – ao menos par- e no texto publicado na conclusão do presente livro. Os ima-
cialmente – da complexidade das imagens e do imaginário do ginários da França no Brasil não foram somente um produto
Outro que orientam as relações culturais franco-brasileiras. dos discursos e das práticas que se cristalizaram num dado
Diferentes eixos problemáticos perpassam essa reflexão momento em algumas representações simplificadas. Essas ima-
sobre as representações da França no Brasil e possibilitam lan- gens foram também alimentadas – desde o final do século XIX
çar novas luzes sobre a questão das relações culturais. Em pri- com a fundação das primeiras Alianças Francesas no exterior,
meiro lugar, a abordagem apresentada não restringe a análise e ainda mais a partir dos anos 1920, com o desenvolvimento de
somente às elites que, na historiografia das trocas franco-bra- uma diplomacia especificamente destinada à América Latina –
sileiras, ocupam tradicionalmente um lugar privilegiado. Com por uma política cultural cujos principais componentes foram
efeito, a partir da segunda metade do século XIX, emerge certo revelados por um grande número de trabalhos.19 O estereótipo,
número de mídias ou de transformações midiáticas que prefi- frequentemente pensado como inerente, pode às vezes escon-
guram a cultura de massa tal qual ela se desenvolve nos anos der uma verdadeira política da imagem cujos efeitos convêm
1930 e 1950, tornando possível uma difusão de imagens cada analisar de um lado e de outro do Atlântico.
vez mais ampla. A imprensa ilustrada, os periódicos de grande Em terceiro lugar, a fabricação das imagens do Outro acon-
tiragem, o rádio, o cinema e, em seguida, a televisão no último tece raramente numa dinâmica estritamente bilateral e é cons-
terço do século XX constituem diversos vetores de representa- truída num processo de constantes desvios. Pensar as relações
ções e imagens da França, num sentido amplo, que não con- culturais franco-brasileiras e as representações que elas veicu-
cernem apenas às elites urbanas apaixonadas por Paris e ávidas lam supõe levar em conta o peso relativo das outras potências
de estratégias de distinção. Emergem também de uma cultura estrangeiras, como a Inglaterra, para o século XIX, e os Estados
popular cujos principais elementos circulam mais eficazmente
de um estrato social ao outro e à escala do território brasileiro
como um todo, como ilustra o sucesso, em 1959, de O homem 18 FRANK, Robert. Images et imaginaires dans les relations internationales
depuis 1938. Cahiers de l’IHTP, n. 28, p. 5-11, juin 1994.
do Sputnik, uma chanchada de Carlos Manga que oferece aos
19 Ver, em especial: MATTHIEU, Gilles. Une ambition sud-américaine: politique
telespectadores uma síntese de todos os clichês das grandes culturelle de la France (1914-1940). Paris: L’Harmattan, 1991; LESSA, Monica
nações em tempos de Guerra Fria, entre as quais a França, Leite. L’influence intellectuelle française au Brésil: contribution à l’étude d’une
politique culturelle (1886-1930). Paris, 1997. Tese (Doutorado em História)
representada pela sensualidade feminina.
– Université Paris X Nanterre; SUPPO, Hugo Rogelio. La politique culturelle
Em segundo lugar, a atenção dada às imagens e aos ima- française au Brésil: 1920-1959. Paris, 2000. Tese (Doutorado em História)
ginários internacionais nos convida a não considerar os siste- – Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, Université Sorbonne
Nouvelle, Paris III. E, como contraponto sobre o caso da política cultu-
mas de representações como dados invariáveis em sua forma e
ral alemã: GOBBEL, Michael. Decentring the German spirit: the Weimar
imutáveis no tempo, mas, ao contrário, a pensá-los de maneira Republic’s cultural relations with Latin America. Journal of Contemporary
resolutamente dinâmica e a colocar em evidência a diversidade History, v. 44, n. 2, p. 221-245, 2009; LANOE, Élise. La culture au service de
la diplomatie?: les politiques culturelles extérieures de la RFA et de la France
de agentes que intervêm na gênese dos imaginários, como bem
au Brésil (1961-1973). Villeneuve-d’Ascq, 2012. Tese (Doutorado em Estudos
mostrou Robert Frank em seus estudos sobre os xenótipos e Germânicos) – Université de Lille 3, Charles de Gaulle.
14 15
Unidos, país que, em razão do poder de suas indústrias cultu- É a partir dessas questões transversais que o presente
rais, tem um papel de primeira ordem na gênese das mitologias livro foi concebido, dividindo-se em quatro grandes partes.
contemporâneas. Para citar apenas um exemplo, é na capi- Buscando repensar a representação tradicional da França como
tal francesa, e não em Nova York ou em São Francisco, onde “lugar da civilização por excelência”, a primeira parte explora
Paul e Jeanne, heróis de O último tango em Paris, de Bernardo diferentes desdobramentos dessa crença profundamente disse-
Bertolucci (1972) – representados por Marlon Brando e Maria minada no meio das elites do século XIX, bem como algumas de
Schneider –, vivem uma paixão ardente e transgressora, ali- suas críticas, em especial em tempos de guerra.
mentando a lenda de uma Paris mundana forjada a partir da A segunda parte discute como a referência francesa em
segunda metade do século XIX. matéria artística e estética, presente desde a época colonial com
Enfim, não poderíamos pensar nas representações da a difusão no Novo Mundo ibérico de cânones do neoclassi-
França no Brasil sem envolver ao mesmo tempo as representa- cismo, fixou-se de maneira durável no Brasil a partir da instala-
ções do Brasil na França. Como mostraram inúmeros trabalhos, ção de uma colônia de artistas no Rio de Janeiro em 1816, sendo
o espaço de circulação transatlântico deve ser pensado como o ainda objeto de apropriações e de variações, de tal maneira que
lugar de vaivéns incessantes e de idas e voltas complexas, ates- a terra brasilis não poderia ser considerada simplesmente como
tando a existência de uma verdadeira circularidade cultural um espaço de “transplantação cultural”,22 mas preferencial-
internacional muito mais evidente do que a simples presença mente como um “domínio de metamorfoses”, conforme sugere
de um fluxo indo das hegemonias culturais europeias para as Roger Bastide, para quem as modas francesas surgem, no Brasil,
periferias latino-americanas.20 Como escreve Lucien Febvre já “nas massas por meio, por intermédio, dos nativos e não dos
em 1948 a propósito das relações entre a Europa e a América estrangeiros. Por isso mesmo, os elementos de civilização que
Latina, as trocas culturais entre a França e o Brasil configuram: são adotados no país não são impostos, mas selecionados [...],
transformados pela inteligência brasileira que os pensa, meta-
Uma história que é parte integrante das nossas histórias
morfoseados pela sensibilidade brasileira que os vive”.23
nacionais, e mais ainda da nossa história cultural. Uma his-
tória de vaivéns, de ofertas e de devoluções, de empréstimos Já a terceira parte trata do caso particular das imagens da
concedidos e negados, de idas aventurosas e de voltas com mulher francesa, encarnação da modernidade graças ao estilo
lucros. Um dos primeiros, um dos mais importantes capítu- chic parisiense, objeto de desejos e de fantasias por sua beleza
los dessa história das trocas do mundo que cada um de nós
sublime aliada ao refinamento mais extremo, mas também
começa, já nos sonhos, a elaborar para o futuro.21
objeto de repulsão na medida em que propõe a subversão de
todas as normas morais que asseguram a ordem social.
20 Sobre essa ideia de circularidade cultural, ver, sobretudo: BURKE, Peter.
Cultural hybridity. Cambridge: Polity Press, 2009; e, do mesmo autor: Cultural 22 Retomamos a expressão utilizada por MARTINIÈRE, Guy. Les aspects de la
history as polyphonic history. Arbor, v. 186, n. 743, p. 479-486, maio/jun. 2010. coopération franco-brésilienne: transplantation culturelle et stratégie de la
21 FEBVRE, Lucien. L’Amérique du Sud devant l’histoire. Annales. Economies, modernité. Paris: Maison des Sciences de l’Homme, 1982. (Coll. Brasilia).
Sociétés, Civilisations, Paris: Armand Colin, n. 4, p. 390, out./dez. 1948. 23 BASTIDE, Roger. Brésil, terre des contrastes. Paris: Hachette, 1957. p. 259.
16 17
Finalmente, o último momento deste livro coletivo busca REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
compreender as representações da França no Brasil na perspec-
“A França e o Brasil”, Revista Brasileira, Rio de Janeiro, Fase VII, ano
tiva de uma histoire à part égales (história em partes iguais),24
XI, n. 43, abril-maio-junho 2005.
estabelecendo um paralelo com as representações do Brasil na
BASTIDE, Roger. Échanges culturels entre la France et le Brésil. In:
França, e explorando fontes dos dois lados do oceano Atlântico.
France et Brésil. Exposition à l’hôtel de Rohan, Paris, mai-juin 1955.
No caso brasileiro, é possível transitar entre a ideia de barbá-
BASTIDE, Roger. Brésil, terre des contrastes. Paris: Hachette, 1957.
rie, em um mundo ainda considerado selvagem e fundamental-
BERTRAND, Romain. L’histoire à parts égales. Récits d’une rencontre
mente mestiço nos primórdios do século XIX, e a autenticidade
Orient – Occident (XVIe-XVIIe siècles). Paris: Le Seuil, 2011.
de uma identidade cultural no fim do século XX, passando pelos
BURKE, Peter. Cultural Hybridity. Cambridge: Polity Press, 2009.
apelos do exotismo entre os anos 1920 e 1950. Constata-se princi-
BURKE, Peter. Cultural history as polyphonic history. Arbor, Madrid,
palmente que as representações recíprocas podem ser objeto de
vol. CLXXXVI, n. 743, maio-junho 2010, p. 479-486.
violentos contrastes em uma dada época – como quando Louis
CARELLI, Mário. Cultures croisées: Histoire des échanges culturels
de Chavagne, num conhecido artigo da Revue des Deux Mondes,
entre la France et le Brésil de la Découverte aux temps modernes.
de 1844, critica severamente o Brasil, enquanto as elites cariocas
Paris: Nathan, 1993.
continuam venerando Paris e forjando a partir da cidade seus
COMPAGNON, Olivier; DROULERS, Martine (Dir.). Le Brésil et la
ideais de modernidade –, mas também que existem verdadeiras
France au XXe siècle, Cahiers des Amériques latines, Paris, n. 48-49,
lógicas simétricas de imaginários, que nos permitem ultrapassar
2005 / 1 et 2, p. 17-106.
de maneira definitiva uma linha de leitura das relações interna-
DOUKI, Caroline; MINARD, Philippe. Histoire globale, histoires
cionais,25 que se limitaria às noções de centro e de periferia.
connectées: un changement d’échelle historiographique?, Revue
d’histoire moderne et contemporaine, Paris, 2007/5, n. 54, p. 17-21.
DULPHY, Anne; FRANK, Robert; MATARD-BONUCCI, Marie-Anne;
ORY, Pascal (Dir.). Les Relations culturelles internationales au XXe
siècle. Bruxelles: Peter Lang, 2010.
FEBVRE, Lucien. L’ Amérique du Sud devant l’histoire. Annales.
Economies, Sociétés, Civilisations, n. 4, Paris, Armand Colin, octobre-
décembre 1948, p. 390.
24 Ver: BERTRAND, Romain. L’histoire à parts égales: récits d’une rencontre
Orient-Occident: XVIe- VIIe siècles. Paris: Éditions du Seuil, 2011; e, em particu- FLECHET, Anaïs. Si tu vas à Rio. La musique populaire brésilienne en
lar, a introdução intitulada “L’archive du contact et les mondes de la rencontre”. France au XXe siècle. Paris: Armand Colin, 2012.
25 No cruzamento da história cultural e da história das relações internacionais,
FRANK, Robert. Images et imaginaires dans les relations internationales
esse campo de estudos atravessa na França um momento de renovação e
desenvolvimento. Sobre a produção recente, ver: DULPHY, Anne et al. (Dir.). depuis 1938, Cahiers de l’IHTP, Paris, n. 28, juin 1994, p. 5-11.
Les relations culturelles internationales au XXe siècle. Bruxelles: Peter Lang, FREYRE, Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro:
2010. Sobre o caso brasileiro, ver também: SUPPO, Hugo Rogélio; LESSA,
José Olympio, 1940.
Mônica Leite (Org.). A quarta dimensão das relações internacionais: as rela-
ções culturais. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
18 19