Table Of ContentSumário
Nota do autor
1. Cem quilos de ouro
2. O sonho da Transamazônica acabou
3. Primeiro rascunho de A Ilha
4. O homem de Fidel na cia
5. A guerrilha na Nicarágua
6. República fantasma
7. Confissões do frade
8. O Napoleão do Planalto
9. O solitário da Dinda
10. Entre Kane e os malditos da beat generation
11. Encontro marcado com Chatô
12. Ele mandou prender Pinochet
Para os queridos Jujo, Valentia e Saladino,
que há trinta anos compartilham estas aventuras comigo.
Nota do autor
Este livro foi concebido originalmente para ser lançado na coleção Jornalismo
Literário, da Companhia das Letras. O editor Luiz Schwarcz sugeriu que eu
reunisse trabalhos publicados por mim para que fizéssemos uma seleção, a qual
seria submetida ao jornalista Matinas Suzuki Jr., organizador da série.
Durante dois meses, o jovem jornalista Marcos Simieli varejou redações,
departamentos de documentação, acervos particulares (alguns localizados em
cidades do interior), arquivos de grandes jornais e revistas, da imprensa nanica e
de jornais clandestinos. Conseguiu assim localizar quilos de material de minha
autoria.
Havia, claro, coisas impublicáveis (ou irrepublicáveis), mas o que me
surpreendeu foi encontrar reportagens de que já não me lembrava mais (como
uma entrevista com Geraldo Vandré para o Jornal da Tarde, na véspera do
Festival da Canção de 1967). No decorrer da leitura, acabei me convencendo de
que um livro que resultasse da seleção não se encaixaria na série Jornalismo
Literário, por mais diversas que sejam as definições do conceito. Havia ali
reportagens escritas dentro de um estilo que se poderia chamar de “jornalismo
literário”, sim, mas também perfis que estavam muito distantes desse gênero,
entrevistas do tipo pingue-pongue (pergunta-e-resposta) e até trabalhos, como
no caso da conversa com Otto Lara Resende, Rubem Braga e Moacyr Werneck
de Castro, em que o autor nem sequer aparecia no texto.
Expus meu ponto de vista a Luiz Schwarcz, que tinha opinião um pouco
diferente. Depois de ter lido o material e ajudado na seleção final, ele concordou
quanto à não-inclusão na coleção, mas continuou acreditando que tínhamos um
livro na mão. Foi dele, também, a sugestão para que cada capítulo fosse
precedido de um breve texto revelando como aquela matéria tinha sido feita.
Concordei entusiasticamente. A idéia me trouxe à lembrança a maior parte das
questões levantadas por jovens jornalistas e estudantes de comunicação em
debates pelo Brasil afora: como tal reportagem foi feita? Foi pauta sua ou do
jornal? Em que circunstâncias o trabalho se desenvolveu? Quanto tempo você
levou para conseguir essa ou aquela entrevista? Que dificuldades enfrentou? Que
dilemas éticos? Havia censura? Como era o Brasil daquela época?
Não sei se terei conseguido, mas minha intenção, ao escrever os textos de
apresentação sugeridos pelo editor, foi tentar responder a pelo menos algumas
dessas perguntas.
Os títulos de parte dos trabalhos publicados a seguir foram substituídos para
facilitar a compreensão do leitor.
À exceção da reportagem “Cem quilos de ouro”, que abre o livro, as demais
foram organizadas cronologicamente.
Agradeço a colaboração especial do jornalista Ricardo Setti, que ajudou do
começo ao fim, e a Claudio Marcondes, Emanuela Vercesi, Ewaldo Dantas
Ferreira, Luiz Schwarcz, Maria Emília Bender, Marília Cajaíba, Marisilda
Valente, Nelson Lopes, Rolf Kuntz e Wagner Homem.
F. M.
São Paulo, novembro de 2003
1. Cem quilos de ouro
No final de 1988 eu trabalhava na pesquisa e nas entrevistas que iriam se
transformar no livro Chatô, o rei do Brasil. Certa noite, em um jantar com
amigos, o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira contou que acabara de voltar
da Bahia, onde vivera uma dramática experiência. Seu irmão mais novo, o
empresário Guilherme Affonso Ferreira, o Willy, fora libertado depois de passar
cinco dias em poder de seqüestradores, que exigiam nada menos que cem quilos de
ouro para libertá-lo.
Naquela época os seqüestros não eram um crime tão comum quanto hoje (o
mais célebre deles, o do empresário paulista Abílio Diniz, só aconteceria um ano
depois). Mas como esse teve lugar na Bahia, acabou recebendo uma cobertura
discreta nos jornais do Rio e de São Paulo. Pedi a Manuel Alceu que consultasse o
irmão para saber se aceitaria contar os detalhes do seqüestro para uma
reportagem. Com o sinal verde da Bahia, ofereci a matéria a Juca Kfouri, diretor
de redação da revista Playboy, e me preparei para ir a Salvador. Na véspera do
embarque, porém, recebi um inesperado telefonema do governador de São Paulo,
Orestes Quércia, que eu não via desde sua eleição, em 1986:
— Vou reformular meu secretariado e estou te convidando para ser o novo
secretário da Cultura do Estado.
Pedi um tempo para pensar e consultar a família, mas ele foi peremptório:
— Nada feito. A posse dos novos secretários será daqui a três dias e você tem
que decidir agora. É pegar ou largar.
Pegar significava largar a matéria que já me deixava com água na boca. Contei
a história do seqüestro e propus uma solução de compromisso: eu aceitava o
convite, desde que pudesse ir para a Bahia atrás da reportagem. Ele podia me
nomear, mas minha posse ficaria adiada por cerca de dez dias.
Desembarquei em Salvador já com meu nome publicado no Diário Oficial de
São Paulo. Eu pressentia que, apesar de ser um ótimo assunto, essa não seria uma
reportagem trabalhosa. Na verdade, foram menos de quatro dias de trabalho
ininterrupto: tomei um longo e minucioso depoimento de Willy, ouvi os policiais e
as pessoas da família encarregadas das negociações (entre elas o irmão Manuel
Alceu), falei com gerentes de bancos e donos de supermercados, reconstituí o
trajeto de Willy antes que fosse apanhado pelos criminosos, fiz uma pesquisa nos
jornais e nos arquivos da polícia de Salvador e retornei a São Paulo. Cinco dias
depois o texto estava na redação de Playboy.
Realizado em dezembro de 1988 e publicado em fevereiro de 1989, “Cem quilos
de ouro” seria meu último trabalho como repórter antes do retorno à política. Só
quase quatro anos depois, em 1992, é que eu voltaria a escrever.
Quando a primeira luz do dia entrou pelas frestas do barracão já deviam ser
seis da manhã. A claridade iluminou e identificou o objeto que alguém enfiara
sob a lona, na escuridão da noite. Era uma Bíblia encadernada, provavelmente
subtraída de algum criado-mudo de hotel. Aos 37 anos, o empresário Guilherme
Affonso Ferreira, o Willy, nunca havia tido a curiosidade de abrir uma Bíblia.
Mas a vida inteira ouvira o avô, o pensador cristão Alceu Amoroso Lima, e a tia
Lia Amoroso Lima — a “irmã Maria Tereza”, abadessa do Convento das
Beneditinas Enclausuradas em São Paulo — dizerem que ali, naquele livro, estava
o conforto dos aflitos e desesperados. Nas circunstâncias em que se encontrava,
era um presente sob medida. Abriu o volume nas primeiras páginas, ao acaso, e
deu com os olhos no seguinte trecho:
Ló sumiu de Segor e foi morar nas montanhas com as duas filhas, pois tinha
medo de ficar em Segor. Instalou-se numa caverna com as duas filhas e a mais
velha disse à mais nova: “Nosso pai já está velho e não há aqui homens com
quem nos possamos casar, como faz todo mundo. Vamos embebedar o pai
com vinho e dormir com ele para ter filhos dele”. Embebedaram o pai naquela
noite e a mais velha foi dormir com ele sem que ele nada percebesse, nem
quando ela se deitou nem quando se levantou. No dia seguinte a mais velha
disse à mais nova: “Ontem eu dormi com o pai. Vamos embebedá-lo também
esta noite e tu vais dormir com ele para gerar descendência de nosso pai”.
Também naquela noite embebedaram o pai e a mais moça dormiu com ele.
Ele, porém, nada percebeu, nem quando ela se deitou nem quando se
levantou. Assim as duas filhas de Ló conceberam de seu pai. A mais velha deu
à luz um filho a quem chamou Moab, que é o antepassado dos atuais
moabitas. Também a mais nova deu à luz um filho a quem chamou Ben-Ami,
que é o antepassado dos atuais amonitas. (Gênesis 19:30-38)
Fechou o livro com raiva e jogou-o num canto da jaula. Para quem recorria à
Bíblia em busca de apoio espiritual, encontrar um pai engravidando as próprias
filhas parecia um mau presságio para o primeiro dia de cativeiro. Tudo começara
na noite anterior, uma sexta-feira de dezembro de 1988. Willy deixara seu
moderno gabinete de presidente da Bahema, empresa distribuidora de máquinas
Caterpillar para o Norte e Nordeste, para repetir uma rotina diária: pegou seu
carro, um Fiat Uno azul-metálico, e guiou durante meia hora pelo trânsito
caótico de Salvador, na Bahia, até a academia de ginástica, que fica a quinhentos
metros de sua casa, no ermo e elegante bairro do Horto Florestal. Ao terminar os
exercícios eram oito da noite. Decidiu tomar banho em casa e saiu de bermudas,
camiseta e tênis. Ao chegar perto do carro, estacionado sob um poste de luz na
rua deserta, havia um Monza escuro parado ao lado do Fiat, com três homens
dentro. Quando o viram chegar, os homens desceram do carro e um deles, de
boné na cabeça, fez um sinal para os outros. Willy se assustou, caminhou alguns
passos de costas, mas já não havia tempo de escapar. Os três o cercaram — eram
fortes e aparentavam ter entre trinta e quarenta anos — e Willy agitou o chaveiro
no ar:
— Podem levar o carro.
Infelizmente não eram ladrões. Um deles, com uma algema saindo pelo bolso
da calça, aproximou-se com uma carteirinha e anunciou:
— Polícia Federal!
Willy foi agarrado pelos três, algemado com as mãos nas costas e colocado aos
safanões no banco de trás do Monza. Enfiaram um capuz de tecido grosso na sua
cabeça e o deitaram no banco. Um dos homens ia sozinho na frente, guiando o
carro, e os outros foram atrás, segurando a presa. Com 1,80 metro de altura,
Willy ia meio dobrado, com a cabeça sobre o colo de um e os joelhos dobrados
junto às canelas do outro. Mal o carro arrancou, um deles perguntou:
— Como é o seu nome?
— Guilherme Affonso Ferreira.
— Quanto tempo faz que você voltou do Japão?
— Uns vinte dias.
— Quanto tempo ficou por lá?
— Uns cinqüenta dias, mais ou menos.
O que perguntava dirigiu-se aos outros:
— É ele mesmo.
O que a Polícia Federal poderia querer com ele, um empresário sem nenhum
deslize em sua vida pessoal e profissional, sem problemas com a polícia, com a
Justiça, com ninguém? A curiosidade sobre a viagem ao Japão o deixou
apavorado. E se ele tivesse sido transformado, inocentemente, em uma dessas
“mulas” que sempre aparecem nos noticiários de TV? Será que alguém tinha
colocado cocaína na sua bagagem, na viagem do Japão ao Brasil? O pensamento
foi interrompido por mãos que agarraram sua cabeça e tentaram obrigá-lo a
aspirar um chumaço de algodão embebido em éter, espremido contra a boca e o
nariz por fora do capuz. Willy se debateu, tentando dizer que não era preciso
violência, que não ia reagir, mas na confusão os homens não entenderam nada.
O que ia na direção ordenou:
— Ele não vai ficar quieto, dá logo a injeção.
Agarraram seu braço, passaram cuidadosamente o chumaço com éter sobre a
pele, como fazem os farmacêuticos, e enfiaram a agulha. O líquido injetado não
produziu nenhum efeito, mas Willy achou mais prudente fingir que estava
dopado. O carro rodou por duas horas, mais ou menos, com os quatro em
silêncio. Pelas gretas do capuz dava para ver que os três gesticulavam muito,
como quem não conhece direito o caminho. Andaram no meio do trânsito e
depois pegaram algo que parecia ser uma estrada asfaltada. Como Willy se
mexesse muito, tentando arrumar uma posição menos incômoda para o corpo,
eles pararam o carro no meio do trajeto e um dos homens que ia atrás passou
Description:"Cem Quilos de Ouro" reúne doze reportagens de Fernando Morais, escritas ao longo de uma carreira de quase quarenta anos. Elas são uma amostra do trabalho de um autor que, como escreve Ricardo Setti , tem "sangue, nervos, vísceras e alma de repórter". Acrescidas de comentários do autor elas val