Table Of ContentAlexandra Lucas Coelho
CADERNO AFEGÃO
Um Diário de Viagem,
COORDENADOR DA COLECÇÃO CARLOS VAZ MARQUES
LISBOA:
TINTADACHINA
MMIX
Digitalizado e corrigido pelo Serviço de Leitura Especial da Biblioteca
Municipal de Viana do Castelo – [email protected]
© 2009, Alexandra Lucas Coelho
Edições tintadachina, Lda.
Rua João de Freitas Branco, 35A,
1500-627 Lisboa
Tels: 21 726 90 28/9 I Fax: 21 726 90 30
E-mail: [email protected]
www.tintadachina.pt
Título: Caderno Afegão. Um Diário de Viagem Autora: Alexandra Lucas
Coelho Coordenador da colecção: Carlos Vaz Marques Revisão: Tintadachina
Composição e capa: Vera Tavares
1ª edição: Setembro de 2009
ISBN 978-989-671-007-1 Depósito Legal n.° 298549/09
Prefácio
Eu NUNCA FUI A Cabul. Nem a Jalalabad, nem a Kandahar, nem a Mazar-
i-Sharif.
Conheço estes nomes das notícias e que me lembre nunca os terei ouvido por
boas razões.
Provavelmente, não há hoje boas razões para se falar de Jalalabad, de
Kandahar ou de Mazar-i-Sharif, belos nomes de uma sonoridade que toda ela é
já distância.
Ouvimo-los quase diariamente associados a mortos e feridos. A combates e
atentados. A senhores da guerra, senhores do ópio, senhores feudais.
Jalalabad, Kandahar, Mazar-i-Sharif, tal como Herat, Bamiyan e mesmo
Cabul, não podem ser apenas aquilo que nós, os que nunca as visitámos, somos
capazes de imaginar a respeito delas.
Conseguimos imaginar a noite demasiado escura de Jalalabad.
Conseguimos imaginar homens de barba e mulheres de burqa.
Conseguimos até imaginar o cheiro a lixo às portas de Herat, onde «cheira
tão mal como se tudo estivesse podre».
Já não seremos capazes de imaginar uma família como a de Shaharzad, «uma
casa tão pobre que estrela ovos numa bilha de gás, mas tão rica que lê os
filósofos sufis e Wittgenstein».
Como não imaginamos, no país das burqas e da sharia, uma equipa feminina
de boxe treinada por um jovem afegão regressado da América.
Nem imaginamos, entre o cheiro a lixo, o perfume a rosas.
«No meio do trânsito mais tóxico há rotundas com rosas lindas em Cabul.»
Parece um verso saído da música suave de Camilo Pessanha: «Floriram por
engano as rosas bravas / No inverno.»
Só vendo se acredita.
É preciso ir lá. É preciso que nos levem lá
E é preciso coragem: para ver as crianças de espinha bífida no hospital de
Kandahar; para andar à boleia em aviõezinhos que quase permitem tocar com os
dedos o cume das montanhas; para ouvir dizer na língua dos pashtun que aquilo
que mais lhes falta é amniat — sabendo que amniat significa segurança — e
ainda assim continuar, querer conhecer gente, tomar notas, correr riscos, ver,
ouvir, dar a ler.
Este livro é um acto de coragem.
É um acto de optimismo, também.
Paul Theroux explica na introdução a O Velho Expresso da Patagónia que
«os viajantes são essencialmente optimistas, ou então nunca iriam a lado
nenhum».
É esse optimismo que permite a Alexandra Lucas Coelho afastar quaisquer
receios com uma espécie de fatalismo paradoxalmente empreendedor: «não há
nada a fazer». Mesmo quando por instantes se lhe infiltra na mente a dúvida
acerca do desconhecido que a certa altura a transporta, sabe-se lá para onde,
numa terra onde «um estrangeiro é um acepipe».
«Não há nada a fazer.» E a viagem continua.
Vamos com ela aos jardins de Babur. Descobrimos com ela — num país
masculino, onde até na morgue há frigoríficos distintos para os cadáveres de
homens e mulheres - a herança da extraordinária rainha Gowar Shad.
Mergulhamos o olhar no azul intenso de Band-e-Amir, um milagre atribuído a
Ali, primo e genro do Profeta, que continua a proporcionar a quem o visita os
bens mais escassos num país em guerra: tranquilidade e alegria.
Aquilo que aqui, a ocidente, a milhares de quilómetros de distância, é apenas
um borrão sem nome, uma massa de ideias vagas e de lugares-comuns,
geopolítica e geoestratégia, toma a forma de gente concreta, ganha contornos,
espessura, rosto.
O facto de Alexandra Lucas Coelho escrever tão bem faz o resto. É o meio
de transporte em que viajamos por um lugar aonde, é quase certo, nunca iríamos
de outro modo.
Carlos Vaz Marques
Para o Changuito
As FOTOGRAFIAS DESTA VIAGEM ESTÃO EM:
www.cadernoafegao.tintadachina.pt
ÍNDICE
13 Dubai — Cabul
81 Cabul —Herat
103 Herat — Cabul
151 Cabul — Jalalabad
173 Jalalabad — Cabul
181 Cabul — Kandahar
231 Kandahar — Cabul
277 Cabul — Mazar-i-Sharif
289 Mazar-i-Sharif — Bagram — Cabul
293 Cabul — Bamiyan
307 Bamiyan — Band-e-Amir — Bamiyan
319 Bamiyan — Cabul
329 Agradecimentos
331 Bibliografia
333 Nota biográfica
DUBAI-CABUL
31 de Maio de 2008
TERMINAL 2 do aeroporto do Dubai, 6h3O. Embarque para Cabul às 7h na
Kam Air.
Esqueci em Lisboa o lenço que ia pôr quando saísse do avião. Compro o
mais discreto que encontro (poliéster preto com lantejoulas made in Índia)
enquanto embarcam afegãos para o voo anterior ao meu. Homens de shalwar
kamiz* com turbante ou taqiyah**. Uma mulher numa cadeira de rodas, coberta
da cabeça aos pés como um saco preto.
Todas as empregadas do free shop são chinesas. As da casa de banho
também. No hotel, um indiano de Kerala e um negro do Benim. No táxi, um
paquistanês de Lahore.
Navida, a minha vizinha de voo, tem 25 anos, estuda Psicologia em Los
Angeles e vai casar com um afegão que estuda Medicina na Turquia. Saiu de
Cabul em 2000 e está a voltar pela primeira vez. Vem com a mãe e as duas
irmãs. Têm pele clara e cabelos escuros, compridos e lustrosos. São lindas. A
meio do voo vão à casa de banho pôr lenços na cabeça e túnicas por cima dos
jeans.
O resto do voo é uma mistura de homens de meia-idade com contratos e
homens musculados com tatuagens. A tripulação é toda chinesa.
O avião voa baixo. Montanhas cor-de-terra com picos brancos. Um grande
deserto. Nem homens, nem casas, nem verde. Depois, mais montanhas abruptas
e o avião desce para Cabul.
Aviões. Helicópteros. Aparato militar. Filas ordenadas para o passaporte.
Anúncios dos novos hotéis de Cabul e da rede móvel Roshan com mulheres de
cabeça descoberta. Pilhas de bagagens despejadas no chão e cada um procura a
sua. É o grande caos até que aparece Joaquim Fernandes, oficial da Força Aérea
em comissão de serviço civil na ISAF***, magro, anguloso, pernas finas, bíceps.
Como vive no aeroporto ficara de ir ter comigo à chegada, e agora faz-me
um tour Kaia (Kabul International Airport).
A zona onde os passageiros não entram é uma base militar. Contentores e
contentores com milhares de soldados e contratados. Cada contentor é uma
grande caixa. Entra-se e há um corredor com portas de um lado e do outro, pares
de botas à porta, minúsculos quartos lá dentro. Joaquim dorme num destes
quartos-cela com o filho, Vasco, 22 anos, enfermeiro, que veio de Elvas e ontem
foi sair à noite em Cabul. Mostra-me a bandeira portuguesa ao lado da cama bem
feita. Está tudo organizado, mas falta ar, espaço, luz. Há mais de um ano que
Joaquim aqui vive. Nunca saiu do eixo Kaia-Cabul. Nunca comeu arroz pulao.
Cá fora, um labirinto de bunkers em caso de ataque (último ataque, ontem:
um bombista suicida na estrada Aeroporto-Cabul contra dois jipes americanos,
feriu os americanos e matou afegãos). Mesas de snooker, salão de beleza, bar
italiano, restaurante francês (ecrã gigante, wireless, péssimo café, fast food). À
porta das tropas belgas, um Lucky Luke em tamanho de homem indica a
distância para Bruxelas (5 433,3 quilómetros).
Calor, pó, garganta seca, nariz entupido.
*Conjunto de camisa muito comprida e calças largas usado no Afeganistão,
no Paquistão e na índia.
**Touca bordada ou de croché que cobre o cimo da cabeça.
***International Security Assistance Force, as tropas estrangeiras no
Afeganistão.
No controlo de tráfego áereo, o chefe de Joaquim é húngaro e há mil pessoas
de 30 nacionalidades.
Sami, o motorista a quem os portugueses telefonam quando vão a Cabul,
chega para me levar e Joaquim insiste em ir também. «Boa gente», tinha dito o
João Carvalho Pina*.
Bancas de estrada assentes em troncos. Parabólicas em cima de telhados de
zinco. Casas de terra batida, velhos táxis amarelos, chaikhanas**.
Cabul. Nem uma mulher de cabeça descoberta. Algumas mulheres de burqa
azul. Trânsito a saltar nos buracos, e engarrafado. Muita poeira. Dor de cabeça.
Dor de músculos.
Há hotéis em ruínas e hotéis caros. A maior parte dos forasteiros aloja-se em
guest houses, casas adaptadas a hóspedes. Há guest houses acima dos cem
dólares por noite. E há guest houses por menos de metade disso.
Primeiro a Park Residence, central e triste. Tipos de kalashnikov
à porta, uma chinesa monossilábica na recepção.
Depois o kabul Lodge, numa ruela de pedras e pó. Com pequeno-almoço,
roupa lavada e Internet, custa 50 dólares. Fico.
Tomo um chá com Joaquim sob o alpendre que dá para o jardim. Os rapazes
da casa são tajiques*** simpáticos. Arranjam-me um cartão SIM. Já tenho um
número afegão. Há Internet por cabo nos quartos, mas não está a funcionar.
Quando recebi a chave do quarto 24, um dos rapazes afegãos e Peter, o holandês
do quarto 26, esventravam o computador central no jardim.
Cabul parece uma aldeia em silêncio. Um cão a ladrar ao longe, um carro.
CABUL
1 de Junho
ACORDO ÀS 10H, refeita. Chá, queijo e pão duro sob o alpendre. Peter
continua à volta do computador central. Um dos rapazes lava os vidros, ou seja,
limpa-lhes o pó com um pano, aos saltos. Rosas lindas no jardim. Peter com
péssima diarreia. Vamos ao meu quarto para eu lhe dar pacotes de Re-Hedrat,
mas deixando a porta aberta, não vão os afegãos pensar o pior. De caminho, ele
muda uma configuração no meu portátil e fico ligada à rede.
— Sabes quem vivia naquela casa ali? — pergunta Peter, apontando da
minha janela.
Depois sorri.
— Alguém muito famoso, não o consegue encontrar.
— Não.
— Sim.
Foi Haider, o dono do Kabul Lodge, quem lhe contou. Ali vivia Osama bin
Laden e aqui era a sede taliban.
Peter vai ao hall dos quartos mostrar uns vidros.
— Vês? Restos de tinta. Pintados para não se saber o que se passava cá
dentro.
* Fotógrafo português (http://www.joao-pina.com).
** À letra, casas de chá. Estabelecimentos, em geral rudimentares, para
beber, comer e repousar ao longo do que foi a Rota da Seda.
*** Segundo grupo étnico no Afeganistão, a seguir aos pashtun
Indica uma escadinha no jardim.
— Lá em baixo, na cave, tinham uma prisão. Isto antes de Osama ir para
Kandahar preparar o 11 de Setembro.
Conta-se que Osama andava com dez carros pretos, todos diferentes, todos
iguais.
Anteontem, ataque na estrada do aeroporto. Ontem, ataque na estrada de
Jalalabad. AISAF desaconselha idas a Jalalabad. Telefonei a Tareq para saber.
Ele ficou de ligar.
Tareq é um daqueles afegãos empreendedores que cresceu na América e
voltou depois da queda dos taliban. Tem vários projectos. Um deles é uma
equipa feminina de boxe em Cabul. Outro é uma escola feminina em Jalalabad,
onde a família dele tem pergaminhos pashtun.*
O Nick Danzinger** tinha-me dado o contacto de outro afegão crescido na
América e agora de volta, Rameen Javid. Telefono-lhe e ele oferece-se para vir
ao Kabul Lodge. Chega à uma da tarde com uma jovem amiga, Sofia. Ela tira o
lenço, descobrindo a cabeça no jardim.
Tal como os rapazes da casa, Rameen e Sofia são tajiques. Portanto, persa,
como diz Rameen, com algum desdém subliminar pelos pashtun.
— Os pashtun estão no poder só há três séculos, enquanto os persas têm
milhares de anos de história. Os Durrani (dinastia pashtun) nem tinham palavras
para as coisas do poder e da corte, tiveram de adoptar o dari.
Variante do persa, língua franca do Afeganistão.
— E nós, os persas, não temos aquele espírito tribal dos pashtun.
Rameen é um homem orgulhoso, não muito sorridente, com aquela ruga dos
incumbidos de um dever. Cresceu em Nova Iorque.
- Queens.
Estudou Médio Oriente em Princeton. Não consegue arranjar trabalho. Quer
ser agente de arte.
- Manager.
Até aqui tem sido intermediário sem comissão. Há coisas a acontecer na arte
afegã?
—Sim, sim, em Herat.
E como está Herat?
— Um caos desde a saída de Ismail Khan.
O ex-comandante dos mujahedin, autoproclamado emir de Herat, é agora
ministro em Cabul. Rameen despreza o governador que o substituiu.
— Há mais insegurança, mais corrupção. Khan era um senhor da guerra, mas
antes disso era um herói.
Rameen fala das máfias, deste sistema fechado onde quem vem de fora tem
dificuldade em entrar, sobretudo na política. De tudo estar viciado, até a equipa
de futebol. Ele, educado em Princeton, está jobless por não ter as ligações certas.
Ele e Sofia não querem chá. Mas a certa altura a cerimónia parece quebrar-
se. Rameen oferece-se para jantarmos com «gente influente». Sofia aceita ir
comigo comprar vestidos afegãos. Tem 21 anos e um inglês óptimo.
Só tenho duas túnicas e um lenço.
Toda a gente diz que uma estrangeira não anda sozinha na rua.
* Etnia predominante no Sul e no Leste, muito assente em códigos tribais, e
que quase sempre ditou o poder. Os taliban são pashtun, tal como o presidente
Hamid Karzai.
**Fotógrafo britânico e autor de livros de viagens (http://www.nickdanziger.
com/index.html).
Primeiro porque as afegãs não andam sozinhas na rua. Depois porque os
estrangeiros em geral são alvo de raptos. Isto faz com que os estrangeiros em
geral andem sempre de carro.
E as empresas têm todas carros com condutores habituados aos caminhos de
cabras em que diariamente fica entupido muito do trânsito de Cabul.
Às duas e meia da tarde um carro da BBC passa a buscar-me. Vou ter com
Ismail Sadat, o editor acabado de chegar de Londres. Parece-me que conheço
esta cara, com algo de cinematográfico, e é possível que nos tenhamos cruzado
na sala de visitas de Rahimullah Yusufsai, o jornalista paquistanês baseado em
Peshawar que entrevistou Bin Laden e o Mullah Omar. Peshawar é a grande
cidade de fronteira do Nordeste do Paquistão, por onde passaram exércitos,
milhões de refugiados, taliban e tráficos em geral. Em 2001, jornalistas de todo o
mundo esperavam na sala de Yusufsai por uns minutos de iluminação.
Regularmente aparecia um rapaz da família a trazer cafés, chás, Fantas ou
Pepsis, o mínimo aceitável na hospitalidade pashtun. Nem os repórteres
atravessavam a fronteira nem a guerra começava, e entretanto eram tabuleiros e
tabuleiros todos os dias. Uma renda.
Mas este Ismail Sadat, que fora enviado para cobrir o lado dos taliban, já
estava em Cabul quando John Simpson, a estrela da BBC, chegou para «libertar»
Cabul. E também cá estava meia dúzia de anos antes, quando os taliban tomaram
a cidade.
De resto, como morador permanente, é um recém-chegado. Amabilíssimo,
mas ainda sem conhecer o terreno, a tentar encontrar-me um intérprete. Ao
telefone, o primeiro que lhe sugeriram parece-me tímido e com péssimo inglês.
Em cima da mesa há melancia fresca, frutos secos e chá perfumado com
cardamomo.
Um dos contactos que o João Carvalho Pina me deu foi o da Afghan
Logistics, a companhia de «táxis seguros». Chama-se um táxi por telefone; a
central liga de volta quando o carro está à porta; quando o passageiro entra, o
condutor comunica para a central o destino; e volta a comunicar quando a
corrida termina. Qualquer corrida, para a esquina ou para a outra ponta de Cabul,
custa cinco dólares. Ao fim de meia dúzia de corridas o forasteiro conhece todos
os condutores da Afghan Logistics, que falam sempre um bocadinho de inglês. E
depois descobre que já há uma empresa concorrente, com corridas a quatro euros
e peles felpudas a cobrir os assentos, quando estão uns 40 graus à sombra.
Chamo o meu primeiro táxi da Afghan Logistics para ir ter com Jolyon
Leslie à Fundação Aga Khan, na parte antiga da cidade.
Chove em Cabul. Pedras, buracos, arame farpado. Polícias sinaleiros com
máscaras cirúrgicas por causa da poluição, mulheres só com os olhos à mostra,
burqas. Leio nomes: Liceu Malalai. Reconheço nomes dos livros de viagens:
Chicken Street, Mustafa Hotel. Seguranças fortemente armados por toda a parte.
Um homem de turbante e tapete ao ombro, pronto para rezar quando chegar a
hora. Carrinhas Land Cruiser da ONU e carros de vidros escuros. Depois, a
caminho da Cidade Velha, um bazar de velhas bancas, tomates, melões,
melancias gigantes. O rio podre com colinas dos dois lados cheias de casas de
terra batida, de cimento, de madeira, de zinco, casas-barracas numa inclinação a
pique, e logo em baixo letreiros da Sony Ericsson. Está vento e as túnicas
enfunam ao vento. As motas e as bicicletas furam entre os carros, com mulheres
e crianças agarradas ao condutor. Algumas têm máscaras cirúrgicas. A água da
chuva escorre pelos degraus toscos. Passamos um cemitério cheio de bandeiras
verdes.
— Shahid — diz o taxista. Palavra árabe para mártires.
O taxista chama-se Zabi e diz que nasceu por trás desta colina.
— Mas já não vivemos aqui.
Como dizem taxistas nascidos em Alfama.
Zabi pára em frente de um portão sem nada escrito. De fora ninguém diz,
mas aqui toda a gente sabe. Este é o portão da Fundação Aga Khan. E lá dentro
jardins de um verde vivo, rosas altas e sedosas que cheiram no ar, uma grande
casa antiga, maravilhosamente recuperada.
Arquitecto, sul-africano, em Cabul desde 1989, Jolyon Leslie é o director no
Afeganistão do Aga Khan Trust for Culture (AKTC), que está a reabilitar as
zonas antigas de Cabul e Herat, envolvendo a população.
Demasiado magro, louro, olhar azul-frio, é um homem difícil de enquadrar.
Tem algo de recuado perante o espectáculo do mundo, como aqueles convertidos
ao Islão louros e de olhos azuis que há em Córdova. Amplo gabinete só com o
essencial, janelas para o verde e para as rosas. Deu-me um exemplar do livro que
escreveu sobre o Afeganistão* e conversámos durante uma hora. Trabalhou
durante anos para a ONU. Saiu por causa das sanções ao Iraque. Um destes dias
ao jantar, o general McNeill, que vai deixar agora o comando da ISAE, disselhe
que ele andava a ouvir muito os taliban, quando Jolyon lhe disse do
descontentamento afegão com a ISAE
A ISAF, diz Jolyon, é «um fiasco de relações públicas». Há um
Description:Alexandra Lucas Coelho reúne em Caderno Afegão as anotações da temporada em que esteve no Afeganistão como colunista do jornal Público, de Lisboa. Alexandra esteve na fronteira do Afeganistão em setembro de 2001, logo após o ataque às Torres Gêmeas, e esperou sete anos para finalmente viaj