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Análise Psicológica (2004), 1 (XXII): 119-138
Aprender a contar, aprender a pensar:
As sequências numéricas de contagem
abstracta construídas por crianças
portuguesas em idade pré-escolar
MARIA FILOMENA RIBEIRO DA FONSECA GASPAR (*)
A CRIANÇA COMO SER SOCIOCULTURAL na sua teoria (Wertsch, 1990/1996, p. 110; Wertsch,
Del Río & Alvarez, 1995, p. 20). De facto, e co-
A teoria sociocultural de Vygotsky, ao reco- mo argumenta este autor, os temas da análise
nhecer a inseparabilidade entre o pensamento genética e das origens sociais do funcionamento
individual de cada ser humano e os contextos so- mental humano podem ser encontrados em ou-
ciais e culturais-históricos onde se desenvolve, tros autores, mas Vygotsky teve uma contribui-
inspirou e contextualizou o trabalho de muitos ção única ao propor o papel da mediação e ao re-
investigadores e teóricos que concebem a cultura formular os outros dois temas em função deste, o
e a cognição como processos dinâmicos que não qual foi o primeiro a aparecer no desenvolvi-
podem ser separados e que têm de ser examina- mento da sua teoria (1989, p. 19). O próprio Vy-
gotsky escreveu que «the central fact about our
dos de forma localizada e não geral (cf. Rogoff
psychology is the fact of mediation» (1982, p.
& Chavajay, 1995).
116; citado por Wertsch, Del Río & Alvarez, 1995,
Na opinião de Wertsch, a contribuição mais
p. 20). A sua lista de instrumentos psicológicos,
singular de Vygotsky refere-se à concepção de
além da linguagem natural, incluía também os
um funcionamento mental superior mediado por
diferentes sistemas de contagem; as técnicas mne-
instrumentos (technical toolsou simplesmente tools)
mónicas; os sistemas de símbolos algébricos; os
e signos (psychological tools), tendo o constructo
trabalhos de arte; a escrita; os esquemas, diagra-
“mediação”, e fundamentalmente o de “media-
mas, mapas e desenhos mecânicos; todos os ti-
ção semiótica”, tido um papel central e crescente
pos de signos convencionais (Vygotsky, 1981, p.
137, citado por Wertsch, 1995, p. 63).
As formas de mediação são produto do meio
sociocultural no qual existem e foram historica-
mente desenvolvidas para mediar as relações do
ser humano com o mundo externo. Deste modo,
(*) Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educa-
ção da Universidade de Coimbra. embora a mediação cultural, a capacidade de
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criar e usar artefactos e de comunicar adaptati- activa das pessoas em práticas socialmente cons-
vamente, seja uma característica universal huma- tituídas (Rogoff, op. cit., p. 14).
na, o desenvolvimento de formas específicas de Nos próximos pontos vamos analisar um as-
mediação não o é. Como refere Cole (1990/1996, pecto cultural específico dos sistemas numéricos,
p. 89), todas as culturas conhecidas elaboraram o nome dos números, e a sua relação com o de-
um potencial básico de linguagem e de usos de senvolvimento numérico da criança.
instrumentos, mas nem todas as culturas desen-
volveram as formas de actividade a que nos re-
ferimos como escola ou as formas de mediação a O DESENVOLVIMENTO NUMÉRICO DAS
que nos referimos como “literacia” e “numera- CRIANÇAS
cia”, as quais constituem extensões directas da
capacidade básica de mediação da linguagem. A Existem três facetas diferenciadas nos concei-
linguagem é um dos instrumentos-chave (key tools) tos matemáticos – as invariáveis lógicas; os sis-
criados pelo ser humano. Nesse sentido, os pro- temas culturais convencionais; as exigências de
cessos mentais superiores não são universais, es- situações diferentes – sendo cada uma das mu-
táticos ou imutáveis, mudando a sua estrutura danças em conceitos matemáticos específicos o
com o modo de vida social e com a presença ou resultado da transformação em uma ou outra des-
ausência de sistemas de mediação (Blanck, tas facetas ou até da interacção entre elas (Nunes
1990/1996, p. 44). A criança, ao aprender a usar & Bryant, 1996/1997). Neste contexto, o desen-
os símbolos da forma como a sua cultura os usa, volvimento matemático da criança não pode ser
altera radicalmente o seu pensamento. reduzido às transformações lógicas que ocorrem
As características específicas de cada tecnolo- no raciocínio da criança, como pretendeu Piaget,
gia são assim inseparáveis dos processos cogni- mas também não podemos cair no extremo opos-
to e afirmarmos que o desenvolvimento lógico
tivos dos utilizadores do sistema. Diferentes tecno-
não existe.
logias requerem diferentes aptidões para o seu
Utilizando uma linguagem vygotskiana, fala-
uso e promovem abordagens que lhe são pró-
ríamos de uma “linha natural” e de uma “linha
prias, não conduzindo ao desenvolvimento de uma
cultural” no desenvolvimento do conhecimento
competência cognitiva geral.
matemático, incluindo a última não apenas a apren-
Rogoff (1990, p. 20) sintetiza os dois temas
dizagem e utilização dos sistemas matemáticos
centrais da teoria de Vygotsky ao referir que o
convencionais, mas também as interacções e as
funcionamento cognitivo individual está imerso
situações nas quais essas ocorrem.
em práticas culturais que colocam os indivíduos
Relativamente à relação entre o desenvolvi-
face a determinados problemas e, ao mesmo
mento lógico e os sistemas matemáticos conven-
tempo, dão-lhes os instrumentos e as tecnologias
cionais, Nunes e Bryant (op. cit., pp. 227-230)
para a sua solução, direccionando as tentativas
afirmam que podemos estabelecer três tipos de
de resolução de problemas para meios cultural-
ligações:
mente valorizados de solução. E continua afir-
mando que o contexto sociocultural do pensa- - uma ligação “negativa”, quer no sentido em
mento individual inclui instituições (económicas, que o nível de desenvolvimento das habi-
políticas, religiosas, educativas, entre outras), e lidades lógicas pode impedir a aprendiza-
instrumentos e tecnologias com elas relaciona- gem de um sistema convencional específi-
dos para resolver os problemas, assim como ob- co, quer no sentido em que a criança pode
jectivos valorizados e meios de os atingir (op. aprender um sistema convencional, mas
cit., p. 20). O que o indivíduo aprende no seu não o saber utilizar;
meio social é, deste modo, um “currículo cultu- - uma ligação inspirada nos trabalhos de
ral” (“cultural curriculum”; expressão de Ro- Vygotsky e que se refere à posição de que o
goff, op. cit., p. 190). domínio de um sistema convencional per-
Neste contexto, a unidade básica da análise mite às crianças serem mais efectivas e as-
deixou de ser o indivíduo e passou a ser a “acti- sim colocar a sua lógica em prática, sem
vidade sociocultural”, envolvendo a participação esquecer que essa utilização depende da
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própria compreensão lógica da criança. Es- duz a que Wynn (1992) a denomine de “different
tamos a nível da mediação e da utilização contexts theory”.
das “ferramentas culturais”. Como afirmam Esta posição teórica aproxima-se bastante da
Nunes e Bryant (op. cit., p. 28), a aprendi- perspectiva do desenvolvimento vygotskiana e,
zagem das invenções culturais pode, na por isso, tem servido de enquadramento teórico a
realidade, aumentar a habilidade das crian- muitas investigações sobre o sistema numérico
ças de respeitar princípios lógicos, deixan- como instrumento cultural. Entre essas investi-
do a questão de se colocar apenas na aqui- gações encontra-se um conjunto de estudos que
sição da lógica correcta pelas crianças e na têm como objectivo comum determinar como é
que as características culturais, entre as quais a
sua aplicação à aprendizagem de conceitos
linguagem, são responsáveis pelo desenvolvi-
matemáticos novos.
mento de estruturas conceptuais que outras teo-
- uma ligação mais específica que a anterior
rias conceptualizam como sendo apenas produto
e que diz respeito ao facto de o uso de um
de mecanismos de desenvolvimento universais e,
sistema de sinais com características espe-
portanto, não aprendidos. Destes estudos fazem
cíficas promover o próprio desenvolvimen-
parte os que se debruçam sobre o “nome dos nú-
to conceptual, ao relações lógicas já domi-
meros” nas diferentes culturas, e que têm como
nadas a relações que ainda não foram de-
grande objectivo avaliar a importância das dife-
senvolvidas. Na opinião dos autores, esta
renças linguísticas no desenvolvimento numérico
relação entre o desenvolvimento e os siste-
e de estruturas conceptuais na criança, particu-
mas de sinais é a mais especulativa das três
larmente, na representação cognitiva dos núme-
e a que exige mais investigação.
ros de dois dígitos. Alguns destes estudos cen-
A teoria de Fuson e colaboradores (cf. Fuson, tram-se na comparação de crianças asiáticas, com
1988; Fuson & Hall, 1983; Fuson, Richards & crianças americanas e inglesas, uma vez que en-
Briars, 1982) é uma teoria que tem como núcleo tre o sistema numérico asiático e o inglês existe,
a importância dos processos interactivos sociais como mostraremos já a seguir, uma diferença
cultural na regularidade e na transparência dos
e linguísticos (palavras numéricas) na aquisição
nomes dos números quanto à estrutura de base
inicial dos conceitos numéricos. A criança é
dez do sistema numérico.
vista como um ser em interacção.
De acordo com esta posição, as crianças
aprendem a contar como um processo mecani-
NOMES DOS NÚMEROS, ESTRUTURA DE
zado, com uma compreensão muito limitada do
BASE DEZ E DESENVOLVIMENTO NUMÉRICO
que significa, mas é a experiência com a conta-
gem, em diferentes contextos, que conduz à
O aspecto convencional mais importante do
aprendizagem dos princípios que se encontram
nosso e de outros sistemas numéricos é a sua es-
na sua base levando, deste modo, a uma trans-
trutura de base dez ou decimal. Este é um as-
formação da compreensão que a criança tem do
pecto do nosso sistema de contagem que levou
número (Bryant, 1991, p. 2). As palavras numé-
muito tempo para ser inventado, não é universal,
ricas têm diferentes significados com os quais as
e tem de ser transmitido de geração em geração
crianças pequenas são confrontadas. Inicialmen-
na cultura em que a criança está inserida, tem de
te, a criança não distingue esses diferentes usos
ser ensinado.
(numéricos; sequência convencional das palavras
A grande vantagem desta estrutura de base,
numéricas; simbólicos; não numéricos ou quasi- que poderia ser cinco, vinte ou outra qualquer, é
-numéricos) e é através da utilização dessas pa- a de permitir que os nomes dos números sejam
lavras em diferentes contextos, que vão desde di- gerados em lugar de memorizados, respeitando a
zer as palavras na sequência convencional, a fa- regra lógica de manter constante a ordem das pa-
zer uma estimativa de quantidades, que lhes atri- lavras na contagem. Ter “base dez” significa que
bui significado. A ênfase desta teoria na impor- até nove contamos apenas unidades, do número
tância das experiências com as palavras numé- dez até ao cem contamos dezenas e unidades, a
ricas em diferentes contextos de utilização con- partir do cem, e até ao mil, contamos centenas
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(agrupamentos de dezenas), dezenas e unidades, tes e regulares” no modo como a estrutura base
e assim por diante. Ou seja, quando temos dez dez é representada nos nomes culturalmente cria-
unidades de qualquer tamanho reagrupamos essas dos para os números. Passamos a analisar essas
unidades em unidades do tamanho seguinte: con- diferenças, comparando as regras linguísticas de
tamos unidades até dez; dez unidades formam formação dos nomes dos números (generative
uma dezena e começamos a contar dezenas até linguistic rules), de 11 a 99, em sistemas asiáti-
termos nove dezenas e nove unidades; dez deze- cos e em alguns sistemas europeus, especifica-
nas formam uma centena e contamos centenas mente em português, inglês e francês (cf. Fuson,
até nove centenas, nove dezenas e nove unida- 1990; Fuson & Briars, 1990; Fuson & Kwon,
des; dez centenas formam uma nova unidade, os 1991; Miller & Zhu, 1991; Nunes & Bryant,
milhares. Estas convenções permitem gerar os 1996/1997). No Quadro 1, encontram-se os no-
nomes dos números e manter fixa a ordem dos mes de alguns números, entre 1 e 99, nessas di-
“rótulos verbais”. ferentes línguas, assim como os equivalentes em
Como explicitam Nunes e Bryant (1996/1997, português para os nomes dos números em algu-
p. 56), para compreendermos a importância da mas línguas asiáticas.
existência de uma estrutura de base basta pensar- Nas línguas asiáticas que têm a sua raiz no
mos como seria humanamente impossível me- chinês antigo, entre as quais se encontram o ja-
morizarmos os nomes de todos os números, as- ponês, o chinês e o coreano-formal, os nomes
sim como a sua ordem específica. Ou seja, para para os números são inteiramente regulares e
contarmos, por exemplo, até mil, teríamos não só previsíveis, ao mesmo tempo que nos informam
de memorizar mil rótulos verbais, mas também a sobre a composição aditiva e sobre as unidades
sua ordem. A existência de uma base permite- que estamos a contar. O uso da estrutura base
-nos gerar o nome de todos os números a partir dez é inteiramente transparente nos nomes dos
da compreensão da lógica embutida no sistema e números. Nestes sistemas, as crianças só preci-
da memorização do nome de apenas alguns des- sam de aprender os nomes para os números 1 a
ses números. Em português, as crianças têm de 10, sendo todos os outros nomes (entre 10 e 100)
se lembrar dos nomes dos números de 1 a 10, os gerados a partir desses dez nomes e de forma a
quais correspondem às palavras básicas para as reflectirem a estrutura decimal do sistema. Por
unidades, têm também de memorizar os nomes exemplo, se conhecer as palavras numéricas pa-
dos números até 19 e os nomes para algumas das ra o 10 e para o 2 posso imediatamente gerar as
dezenas (20 a 90), pois, como veremos mais à palavras para o 12 (“dez-dois”), para o 20 (“dois-
frente, muitos desses nomes são difíceis de deri- -dez”) e para o 22 (“dois-dez-dois), o que de mo-
var da estrutura. Terão ainda, pelo mesmo moti- do algum se passa em português, assim como,
vo, de aprender o nome de algumas das centenas por exemplo, em inglês e francês. Nesses siste-
(100 a 900) e as palavras para as unidades se- mas, transparentemente regulares, as palavras nu-
guintes. Deste modo, a partir da aprendizagem méricas acima do 10 constroem-se todas por com-
do nome de alguns números e das regras pelas binações das palavras para o “dez” e para as “uni-
quais o sistema funciona, as crianças podem gerar dades”. A estrutura regular e transparente das pa-
nomes de números que nem sequer ouviram an- lavras numéricas para os números de dois dígitos
tes e na ordem estabelecida, apesar de, como nessas línguas asiáticas indica imediatamente à
mostraremos, esta tarefa ser muito mais simples criança, sem haver necessidade de qualquer ou-
nos sistemas numéricos “transparentemente re- tro passo intermédio de decomposição, por quan-
gulares” (expressão de Nunes & Bryant, op. cit., tos “dez” (dezenas) e “uns” (unidades) é com-
p. 56), tais como os sistemas asiáticos com raiz posto um determinado número. Deste modo, o
no chinês antigo. Esta lógica própria do sistema nome informa imediatamente a criança de qual a
numérico é em si mesma uma invenção cultural unidade em que está a contar, neste caso as de-
e, por isso mesmo, existem diferenças de cultura zenas, quantas dessas unidades está a contar, e
para cultura, as quais vamos especificar também por quantos “uns” é formado esse número.
mais à frente. Nessas línguas asiáticas, os nomes dos núme-
Os sistemas numéricos de contagem que usam ros entre o 10 e o 20 são formados combinando a
base dez podem ser mais ou menos “transparen- palavra cujo equivalente em português é “dez”
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QUADRO1
Nomes de números de 1 a 90 em japonês, chinês e coreano, equivalentes em português, e nomes em
inglês e francês (cf. Miura, Okamoto, Kim, Chang, Steere & Fayol, 1994, p. 404)
Números Japonês Chinês Coreano Eq. Português Inglês Francês
1 ichi yi il um one un
2 ni er ee dois two deux
3 san san sam três three trois
4 shi si sah quatro four quatre
5 go wu oh cinco five cinq
6 roku liu yook seis six six
7 sichi qi chil sete seven sept
8 hachi ba pal oito eight huit
9 kyu jui goo nove nine neuf
10 juu shi shib dez ten dix
11 juu-ichi shi-yi shib-il dez-um eleven onze
12 juu-ni shi-er shib-ee dez-dois twelve douze
13 juu-san shi-san shib-sam dez-três thirteen treize
14 juu-shi shi-si shib-sah dez-quatro fourteen quatorze
15 juu-go shi-wu shib-oh dez-cinco fifteen quinze
16 juu-roku shi-liu shib-yook dez-seis sixteen seize
17 juu-sichi shi-qi shib-chil dez-sete seventeen dix-sept
18 juu-hachi shi-ba shib-pal dez-oito eighteen dix-huit
19 juu-kyu shi-jui shib-goo dez-nove nineteen dix-neuf
20 ni-juu er-shi ee-shib dois-dez twenty vingt
21 ni-juu-ichi er-shi-yi ee-shib-il dois-dez-um twenty-one vingt et un
22 ni-juu-ni er-shi-er ee-shib-ee dois-dez-dois twenty-two vingt-deux
30 san-juu san-shi sam-shib três-dez thirty trente
40 shi-juu si-shi sah-shib quatro-dez forty quarente
50 go-juu wu-shi oh-shib cinco-dez fifty cinquante
60 roku-juu liu-shi yook-shib seis-dez sixty soixante
70 sichi-juu qi-shi chil-shib sete-dez seventy soixante-dix
80 hachi-juu ba-shi pal-shib oito-dez eighty quatre-vingts
90 kyu-juu jui-shi goo-shib nove-dez ninety quatre-vingt-dix
com o valor das unidades. Pensemos, por exem- valente português a “dez” (20 será “dois dez”) e
plo, na palavra japonesa para 12, especificamen- depois adicionar-lhe o nome para as unidades
te “juu-ni”, cujo equivalente português será “dez- (23 será “dois dez três”). As invariáveis “unida-
-dois”. Esta palavra numérica diz imediatamente de” e “composição aditiva” estão assim claramen-
à criança que está a contar unidades de dois ti- te representadas nessas palavras numéricas, as
pos, de dois tamanhos, as dezenas “dez” e as quais reflectem de uma forma transparente a es-
unidades “uns”, e por quantas dessas unidades trutura de base dez do sistema numérico. Como
esse número é formado, respectivamente, “uma” mostraremos já a seguir, os nomes numéricos nos
dezena e “duas” unidades. O mesmo se passa sistemas português, e também inglês e francês,
com qualquer outra palavra numérica para os nú- principalmente os da primeira década, não são
meros de dois dígitos nas três línguas asiáticas transparentes, apesar de também não serem total-
em questão. De facto, para formar os nomes dos mente opacos, sobre estas duas propriedades do
números entre 20 e 99 a criança só tem de com- sistema: as unidades de diferente valor que estão
binar o nome da unidade da década com o equi- a ser contadas e a composição aditiva.
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Na realidade, as palavras numéricas portugue- dade de para os nomes dos números 13 e 15
sas, assim como as inglesas e as francesas, para existir uma pronuncia irregular do nome do dígi-
esses mesmos números de dois dígitos, encerram to unitário que forma o número, respectivamen-
várias irregularidades que mascaram a estrutura te, “thir” em lugar de “three”, e “fif” em lugar de
decimal desses números. Essas irregularidades “five”.
incluem as que passamos a descrever. Em francês, a formação dos nomes dos núme-
Na primeira década (números entre 10 e 20) ros, da primeira década, é muito parecida com a
existem dois tipos de regras para a formação das portuguesa, com semelhanças fonéticas muito
palavras numéricas em português. fortes, especificamente para os números 11 (onze),
A regra que associa uma parte foneticamente 12 (douze), 13 (treize), 14 (quatorze) e 15 (quin-
semelhante ao nome do dígito das unidades que ze). Este padrão (dígito + ze) mantém-se para o
compõe o número, mais a terminação “ze”, para número 16 (seize), o que não acontece em por-
as palavras entre o 11 e o 15. Esse padrão, para o tuguês, mas a partir daí é utilizado o padrão re-
11, 12, 13, 14 e 15, é, respectivamente, “on + gular “dez + dígito das unidades” (17= dix-sept;
ze”, “do + ze”, “tre + ze”, “cator + ze” e “quin + 18= dix-huit; 19= dix-neuf) semelhante ao usado
ze”. Como facilmente se vê, a palavra numérica em português.
para o número 15 é a menos transparente, pois, Nas décadas seguintes, e em português, as pa-
foneticamente, “quin” não tem nada a ver com lavras numéricas não nos dão nenhuma indica-
“cinco”, só não sendo um nome totalmente arbi- ção de como é que os nomes das unidades (1 a 9)
trário porque podemos associá-lo ao equivalente são novamente usados para formar o nome da
ordinal de “cinco”, isto é, “quinto”, o que o torna respectiva década. Não existe nada na palavra
num padrão específico de formação. Uma outra “vinte” que informe que se trata de “dois dez”,
falta de transparência destes nomes refere-se à nem na palavra “trinta” que indique que se refere
própria terminação “ze”, a qual em nada se a “três dez”, mascarando assim a relação entre os
aproxima da palavra “dez”. Deste modo, não há nomes para as décadas e os nomes para os pri-
indícios linguísticos claros nos nomes destes nú- meiros nove números de um dígito. A partir daí,
meros que indiquem à criança a sua composição temos os “enta”, não havendo de novo nenhum
como “dez e uns”, como “uma dezena e n unida- indício no nome desta terminação que informe a
des”. criança que se trata de reagrupamentos de “dez”,
Um outro padrão existe para formação dos no- ou seja, nada no nome numérico informa a cri-
mes dos números de 16 a 19. Na composição ança que, por exemplo, “quarenta” se refere a
destes nomes, inverte-se o padrão utilizado para “quatro-dez”.
os nomes dos números anteriores, passando a ser Porém, e contrariamente ao que se passa na
utilizada a seguinte regra “dez + nome do dígito formação dos nomes dos números da primeira
das unidades”. Deste modo, é utilizada pela pri- década, a formação do nome dos números dentro
meira vez a palavra “dez”, a qual é associada ao de cada década, entre 20 e 99, segue o padrão
nome do dígito unitário que forma o número, asso- regular “nome da década + unidade” (e.g., na se-
ciação esta que é feita através da vogal “a”, quan- gunda década teremos “vinte”, “vinte e um”, até
do esse nome começa por uma consoante. Temos ”vinte e nove”).
assim, para os nomes dos números 16, 17, 18 e Em inglês, a formação dos nomes das décadas
19, respectivamente, o seguinte padrão “dez + a que seguem a primeira faz-se utilizando a termi-
+ seis”, “dez + a + sete”, “dez + oito” e “dez + a nação “ty” que, tal como a terminação “enta”,
+ nove”. em português, não informa que se trata de rea-
Quando analisamos a formação do nome des- grupamentos de “dez” (ten). O francês tem ainda
tes mesmos números da primeira década na lín- irregularidades mais específicas.
gua inglesa, verificamos a existência de dois no- Como referem Fuson e Briars (1990), e como
mes arbitrários, o “eleven”, para o 11, e o “twelve”, procurámos mostrar, o sistema das palavras nu-
para o 12, e o padrão “dígito das unidades + méricas, para os números de dois dígitos, falado
teen” para os números 13 (thirteen), 14 (four- nas línguas asiáticas, é um “sistema de valor no-
teen), 15 (fifteen), 16 (sixteen), 17 (seventeen), meado” (named-value system), no sentido em que
18 (eighteen) e 19 (nineteen), com a particulari- uma palavra numérica é dita (e.g., “três”) e em
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seguida o “valor” dessa palavra é nomeado (“dez”) Fayol, 1993; Miura, Okamoto, Kim, Chang, Steere
(p. 180). Em inglês, encontramos esta regulari- & Fayol, 1994; Song & Ginsburg, 1988) mos-
dade para os nomes das centenas (“one hun- tram que as irregularidades dos nomes dos nú-
dred”, “two hundred”, ...), mas, mesmo para es- meros têm sérias consequências que afectam, ne-
tas unidades, os nomes dos números em portu- gativamente e de diferentes formas, a aprendiza-
guês não nomeiam de forma transparente a uni- gem numérica das crianças. Muitos desses resul-
dade em que estou a contar (e.g., os nomes “cem” tados surgem da comparação de crianças que fa-
ou “duzentos”, não me indicam claramente que lam inglês, dos EUA, com crianças que falam
estou a contar, respectivamente, “uma centena” línguas que têm sistemas numéricos regulares,
ou “duas centenas”). como as asiáticas. Porém, e como afirmam Fu-
Neste sentido, o sistema numérico oral base son e Kwon (1991, p. 211), as implicações destes
dez é um “sistema de medida” (measure system), estudos podem-se aplicar a outros sistemas irre-
pois as palavras numéricas são usadas como pa- gulares para as palavras numéricas, apesar de al-
lavras medida que se referem a unidades de di- guns detalhes poderem variar.
ferentes tamanhos. É esta compreensão do siste- As consequências dessa falta de transparência
ma numérico das palavras como um sistema de e irregularidades verbais, no que se refere espe-
medida base dez que é difícil para crianças que cificamente aprendizagem da sequência numéri-
aprendem a contar em línguas onde não existe ca de contagem, são: memorização dos nomes e
regularidade na formação dos nomes dos núme- da ordem dos números até 20, o que explica que
ros. Se o sistema das palavras numéricas portu- mais crianças que falam inglês, que crianças que
guês fosse um sistema de medida de valor no- utilizam linguagens numéricas transparentes e
meado (measure named-value system) regular, o regulares, cometam erros durante a contagem dos
nome do número 2222 seria o seguinte: “dois números da primeira década, principalmente erros
mil, dois cem, dois dez, dois”. de omissão e produção de nomes de números
Uma das características destes sistemas de não convencionais; memorização do nome e da
medida de valor nomeado (cf. Fuson & Briars, ordem dos números das décadas (20 a 90), o que
1990; Fuson & Kwon, 1991) é que cada “valor” conduz as crianças a trocarem a ordem desses
nomeado é uma colecção de unidades (dezenas, nomes; dificuldades em aprender a sequência nu-
centenas, milhares, ...), sendo os novos valores, mérica de contagem, produzindo sequências nu-
mais largos, formados por agrupamentos base méricas convencionais significativamente infe-
dez do valor anterior. Neste sistema, o zero não é riores às crianças que aprendem a contar em sis-
necessário. temas regulares, os quais parecem apoiar as cri-
Como mostrámos, e como afirmam Nunes e anças na inferência das regras de gerar os nomes
Bryant (1996/1997, p. 26), cada sistema tem uma dos números, o que também explica que come-
“lógica específica” que irá colocar exigências tam menos erros de contagem; dificuldades em
intelectuais específicas na sua aprendizagem. transitar para a década seguinte na contagem, re-
Esta “lógica específica”, por ser convencional, lacionadas com a segunda consequência acima
no sentido que foi culturalmente inventada e cons- referida, o que pode explicar quer os erros come-
truída, tem também de ser dominada pela crian- tidos na transição de décadas, quer que os pontos
ça. Porém, como é cultural, tem de ser transmi- de paragem ocorram em números terminados em
tida e ser depois utilizada pela criança para pen- 9, para as crianças que contam entre o 20 e o 99.
sar matematicamente sobre as situações. Tal co- Porém, os resultados dos estudos transculturais
mo dizem os mesmos autores, a questão não se não permitiram ainda esclarecer se essa dificul-
refere apenas à aprendizagem dessas conven- dade de transição está relacionada com a irre-
ções, mas à sua transformação em “ferramentas gularidade na formação dos nomes dos números
do pensamento” (op. cit., p. 31). para as décadas ou com uma dificuldade mais
Os resultados de diferentes tipos de estudos geral de coordenar o aumento nos dois tipos de
(cf. Lines & Bryant, citados por Nunes & Bryant, unidades (dezenas e unidades); produção de no-
1996/1997; Miller & Stigler, 1987; Miura, 1987; mes de números não convencionais, apesar de
Miura, Kim, Chang & Okamoto, 1988; Miura & legítimos, resultantes quer da concatenação do
Okamoto, 1989; Miura, Okamoto, Kim, Steere & nome de dois números compostos (e.g., 31 =
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“vinte e onze”), quer da aplicação de uma regra vencional de palavras numéricas, seguida por
inferida a partir do conhecimento morfológico dos uma parte “estável não convencional”, no sen-
nomes dos números 1 a 21 (e.g., dez + a + um = tido em que se mantém de contagem para conta-
“deza-um”, por generalização da regra dez + a + gem, mas não corresponde à sequência correcta,
nove = “dezanove”). pois, apesar de poder conter algumas palavras na
Passamos a analisar como é que as irregula- ordem convencional, outras palavras são omiti-
ridades dos nomes dos números explicam, pelo das. Esta parte pode ser produzida sem qualquer
menos em parte, estas dificuldades. mudança por períodos de tempo tão grandes co-
mo 5 meses (Fuson & Hall, 1983, p. 54). Por sua
Dificuldades que as irregularidades das pa- vez, esta parte é seguida por uma parte “não-es-
lavras numéricas colocam na aprendizagem tável final incorrecta”, uma vez que muda de con-
da sequência numérica convencional de con- tagem para contagem e também não corresponde
tagem à sequência convencional. Para identificarmos es-
tes três grupos de palavras na sequência de uma
Começamos por discutir algumas das dificul- determinada criança, é preciso que ela repita a
dades que as irregularidades das palavras numé- sequência em várias tentativas de contagem abs-
ricas colocam na aprendizagem da sequência tracta.
numérica de contagem. A porção convencional da sequência aumenta,
Uma vez que é a partir da aprendizagem da como seria de esperar, significativamente com a
contagem que as crianças induzem as regras pa- idade, e não se observam efeitos significativos
ra gerar os nomes dos números, não é de surpre- da variável sexo.
ender, e como afirmam Miller e Zhu (1991, p. As irregularidades na estrutura da sequência
50), que muitas das dificuldades que as crianças de contagem, em inglês, nos números até 20, de-
têm na aprendizagem da sequência das palavras termina que a maioria das crianças aprende os
de contagem se possam relacionar com a estru- nomes dos números até 20 por memorização.
tura dos nomes dos números que estão a adquirir. Adicionalmente, apesar de mostrarem uma com-
Siegler e Robinson (1982) propuseram um preensão do padrão de formação dos nomes dos
modelo de três “estádios” de aquisição da se- números maiores que 20 (x-ty, x-ty-one, ..., x-ty-
quência verbal de contagem, em inglês, mostran- nine), demoram ainda bastante tempo a aprender
do como esses estádios se relacionam com o no- a ordem correcta para as palavras das décadas.
me dos números. Basearam-se na análise dos Em inglês, a mudança dos nomes “two”, “three”
pontos de paragem da contagem abstracta das e “five” na formação dos nomes das décadas
crianças, classificando-as em três grandes gru- “twen+ty”, “thir+ty” e “fif+ty”, torna também
pos: as que param antes do número 19, as que pa- mais difícil para as crianças perceberem como é
ram entre o 20 e o 99, e as que param depois do que os nomes dos números de “dois” a “nove”
100; correspondendo cada um destes intervalos a (“two” a “nine”, em inglês) são de novo usados
uma competência cada vez maior das crianças no na construção dos nomes das décadas, mascaran-
conhecimento da estrutura decimal da sequência. do, para muitas crianças, essas relações e o pa-
Estes estádios mostraram estar positivamente cor- drão “nome da unidade+ty” parcialmente presen-
relacionados com a idade das crianças envolvi- te na sua formação. Estas irregularidades, asso-
das no estudo. ciadas às irregularidades presentes na formação
Também Fuson mostrou que as sequências dos nomes dos números da primeira década,
numéricas “incorrectas” que as crianças produ- conduzem a que muitas crianças, que falam in-
zem durante o período de aquisição da sequência glês, memorizem a sequência das palavras nu-
numérica convencional seguem, habitualmente, méricas sem verem nenhum padrão de formação
uma estrutura característica, a qual se pode rela- para os nomes dos números, a não ser a repetição
cionar com os nomes dos números (cf. Fuson, x-ty-one a x-ty-nine dentro de cada uma das dé-
1992; Fuson, Richards & Briars, 1982). As se- cadas, a partir da segunda, o que as leva a me-
quências com uma dimensão até 30 são formadas morizar uma lista com as palavras para essas dé-
por uma primeira parte “convencional”, que cor- cadas (Fuson, 1990; Fuson, Richards & Briars,
responde a uma parte inicial da sequência con- 1982; Siegler & Robinson, 1982).
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A aquisição da sequência convencional das parte da sequência como uma lista não estrutura-
palavras numéricas até 100 faz-se, nas crianças da, e a partir do 20 a estrutura das décadas torna-
de classe média, no período entre os 2 e os 6 ou -se evidente. Estes resultados são confirmados
7 anos, existindo uma grande variação dentro de por resultados de diferentes estudos e estão de
cada grupo etário, determinada por diferentes va- acordo com o modelo de contagem proposto por
riáveis socioculturais. Porém, e em termos mé- Siegler e Robinson.
dios, os dados de diferentes estudos parecem in- A habilidade das crianças dizerem a sequência
dicar que, para crianças de classe média e que fa- correcta das palavras numéricas é fortemente in-
lam inglês, aos 2 anos a parte convencional cor- fluenciada pelas oportunidades que lhe são dadas
responde ao início “um, dois, três”, continuando de aprender e praticar essa sequência, existindo
depois de variadíssimas maneiras; aos 3 anos e assim uma variabilidade considerável dentro do
meio, 4 anos, aumenta para 13 e aos 5 anos e meio, mesmo grupo etário e, por este motivo, entre di-
6 anos, para 51 (Fuson & Hall, 1983, p. 54).1Os ferentes estudos (Fuson, 1991, p. 29). Estas opor-
resultados obtidos por Fuson e colaboradores tunidades parecem estar relacionadas com dife-
mostram que dos 3 anos e meio aos 4 anos e rentes variáveis do contexto sociocultural da cri-
meio a maioria das crianças de classe média po- ança, muitas delas avaliadas através da classe so-
de dizer as palavras numéricas na sequência con- cioeconómica dos pais. De acordo com os resul-
vencional até “dez” e estão a trabalhar as pala- tados de alguns estudos (cf. Saxe, Guberman, &
vras entre “dez” e “vinte” (cf. Fuson, 1991; Fu- Gearhart, 1987; Ginsburg & Russell, 1981, cita-
son & Hall, 1983). Uma proporção substancial dos por Allardice & Ginsburg, 1983), essas opor-
dessas crianças, entre os 4 anos e meio e os 6 tunidades serão menores em famílias de classe
anosainda continua imperfeita nas palavras entre baixa que em famílias de classe média.
o “catorze” e o “vinte”, mas muitas já conhecem Como referem Miller e Stigler (1987), o resul-
essas palavras e já se encontram a trabalhar nas tado mais comum nos estudos sobre a contagem
décadas entre “vinte” e “setenta”. Porém, apesar verbal de crianças dos EUA, e que falam inglês,
de conhecerem o padrão de repetição de “um” a é a grande frequência com que produzem nomes
“nove” dentro de cada década, depois de 20 ainda não convencionais para os números (non-stan-
não conseguem produzir os nomes das décadas dard number names), os quais resultam de uma
na ordem correcta, não tendo ainda resolvido o concatenação imprópria de nomes de números
“decada problem”. Embora a maioria das crian- legítimos (e.g., “twenty-eleven” em lugar de “thirty-
ças do kindergartenesteja ainda a aprender a or- one”). Fuson, Richards e Briars indicam que 27%
dem das décadas, um número substancial já está das crianças da sua amostra produziram pelo me-
a aprender a sequência entre “cem” e “duzen- nos um erro deste tipo na parte não estável das
tos”. De acordo com estes resultados, até ao 20, suas sequências de contagem (1982, p. 54).
ou talvez até mesmo ao 29, a criança memoriza Este erro pode ser compreendido a partir da
os nomes dos números, sem compreender a es- distinção entre “números primitivos” e “números
trutura decimal representada por essas palavras compostos” proposta por Hurford. Hurford (1987)
numéricas que já adquiriu, processando essa elaborou um modelo linguístico de formação dos
nomes dos números, no qual considera os “nú-
meros primitivos” (“primitive numbers”: núme-
ros de 0 a 9 e para as décadas 20 a 90), os quais,
1Os resultados médios descritos por Fuson, Richards por sua vez, são combinados de acordo com um
e Briars (1982, p. 37) para a última palavra correcta da conjunto de regras básicas para formar os “nú-
sequência convencional de coragem abstracta, e acei-
meros compostos” (“compound numbers”). Co-
tando a omissão de uma palavra, foram os seguintes:
mo o próprio nome indica, os números compos-
dos 3 anos e 6 meses aos 3 anos e 11 meses = 16.56
(DP=6.51; variação: 9 a 29); dos 4 anos e 5 meses = tos não se podem combinar directamente com ou-
18.71 (DP=8.52; variação: 11 a 39); dos 4 anos e 6 me- tros números compostos, na formação dos nomes
ses aos 4 anos e 11 meses = 36.47 (DP=26.94; varia- de outros números, mas têm de ser combinados
ção: 13 a 100); dos 5 anos aos 5 anos e 5 meses =
em função dos seus constituintes primitivos. Des-
44.81 (DP=23.13; variação: 13 a 100); dos 5 anos e 6
te modo, para combinarmos 20 + 11 temos de o
meses aos 5 anos e 11 meses = 43.00 (DP=19.64; varia-
ção: 13 a 90). decompor o número composto 11 nos seus cons-
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tituintes primitivos 20 + 10 + 1 e, em seguida, re- tais de diferenças entre culturas que são essenci-
combiná-los de forma a que as unidades maiores ais para o estudo do comportamento humano, no
adquiram o maior valor possível, neste caso 30 + geral, e, em particular, para o estudo do desen-
1. Caso esta regra não seja seguida, as crianças volvimento da criança. Essas diferenças são: os
produzem nomes de números não convencionais. instrumentos culturais e os contextos culturais
Por exemplo, se, para formar o nome do número específicos de cada cultura. No primeiro caso,
“31”, o fizer a partir dos seus constituintes com- esses instrumentos podem quer estender a eficá-
postos (31=20+11) chega a “vinte e onze”, em cia cognitiva dos membros da cultura, o que os
português, pois trata um número composto, neste transforma em “amplificadores culturais” (“cul-
caso o 11, como um número primitivo. tural amplifiers”; termo de Bruner, Cole & Grif-
Neste contexto, Miller e Stigler (1987, p. 283) fin, citados por Bryant, op. cit., p. 1), quer modi-
propõem que, face às irregularidades na formação ficar as próprias aptidões cognitivas básicas das
dos nomes dos números para a primeira década, pessoas.
em inglês, não é de surpreender que as crianças Vamos agora analisar um estudo transcultural
não concebam os números 11 a 19 como números que se preocupou em investigar como é que ca-
compostos, pois não existe nenhum indício no racterísticas específicas de diferentes sistemas
nome desses números que lhes indique que são numéricos, especificamente os nomes dos núme-
formados por dois números primitivos e que as ros de dois dígitos nesses sistemas, interferem com
regras utilizadas na sua formação são diferentes a aprendizagem e desenvolvimento da contagem
das utilizadas para os nomes dos números nas ou- pelas crianças.
tras décadas (nome da década + unidade). Miller e Stigler (1987) realizaram um estudo
Que as crianças, que falam inglês, inferem as com o objectivo de verificarem se crianças que
regras generativas dos nomes dos números a par- aprendem a contar com sistemas numéricos em
tir do seu conhecimento morfológico dos nomes que os nomes dos números são regulares, no que
dos números de 1 a 21, pode-se verificar nos no- se refere à estrutura base dez dos números de
mes não convencionais que criam. Entre estes, dois dígitos, se diferenciam de crianças que apren-
encontramos aqueles em que ignoram uma ex- dem sistemas numéricos irregulares, na aprendi-
cepção ortográfica e regularizam o nome para a zagem e desenvolvimento da contagem. Podiam,
década (e.g., “five-ty” para “fifty”), regularizam assim, analisar quais as dificuldades que resul-
um “teen name” (e.g., “eleven-teen” para “ele- tam das características linguísticas específicas
ven”) ou aplicam a cadeia total dos números for- desses sistemas e quais as que são comuns a
mados por uma única palavra (1 a 19) ao proces- ambos os sistemas, apesar das diferenças linguís-
so de formação dos nomes para as décadas (twen- ticas e culturais, dificuldades estas que seriam
ty-one, ..., twenty-nine, twenty-ten, twenty- intrínsecas à própria tarefa da aprender a contar.
eleven) (Seron & Deloche, 1987, p. 173). Com esse objectivo, compararam crianças ame-
Como passamos a mostrar, os resultados de ricanas, dos EUA, com crianças chinesas, de Tai-
investigações sobre a aprendizagem da contagem wan, de 4, 5 e 6 anos de idade. Todas as crianças
em línguas que diferem na regularidade e trans- frequentavam a educação pré-escolar. As amos-
parência da formação dos nomes dos números de tras, em ambos os países, eram heterogéneas no
dois dígitos sugerem que, de facto, algumas das que se refere à classe social.
dificuldades que as crianças têm nessa aprendi- De acordo com os resultados obtidos na tarefa
zagem resultam das regras linguísticas específi- de contagem abstracta, e aceitando a omissão de
cas desses sistemas. um único número na sequência, as crianças chi-
nesas obtiveram resultados significativamente su-
Estudos transculturais que comparam siste- periores às dos EUA em todas as idades. Porém,
mas numéricos de base dez regulares e irre- e como os próprios autores afirmam (op. cit., p.
gulares no desenvolvimento da contagem 291), enquanto a dimensão da sequência de con-
abstracta tagem pode ser influenciada por outros factores
culturais, tais como as atitudes dos pais, os erros
Como refere Bryant (1992), e tal como já pro- específicos que as crianças cometem nessa con-
curámos mostrar, existem dois tipos fundamen- tagem informam-nos mais directamente sobre os
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Description:mite às crianças serem mais efectivas e as- sim colocar a sua lógica em prática, sem A teoria de Fuson e colaboradores (cf. Fuson,. 1988; Fuson & Hall, 1983; Fuson, Richards &. Briars, 1982) é uma teoria que tem como núcleo a importância dos processos interactivos sociais e linguísticos (p