Table Of ContentANTÓNIO DAMÁSIO
O LIVRO DA CONSCIÊNCIA
A Construção do Cérebro Consciente
Círculo leitores
Como é que o cérebro constrói a mente?
E como é que o cérebro torna essa mente consciente?
Qual a estrutura necessária ao cérebro humano e qual a forma como tem de funcionar para
que surjam mentes conscientes?
Há mais de trinta anos que o neurocientista António Damásio estuda a mente e o cérebro
humanos e é autor de vasta obra publicada em livros e artigos científicos. No entanto,
formulou o presente livro como um recomeço, quando a reflexão sobre descobertas
importantes da investigação, recentes e antigas, alterou profundamente o seu ponto de vista
em duas questões particulares: a origem e a natureza dos sentimentos, e os mecanismos por
detrás do eu. O Livro da Consciência constitui assim um debate sobre as noções actuais nestes
domínios, e uma proposta de novos mecanismos para a construção dos sentimentos e da
consciência.
O LIVRO DA CONSCIÊNCIA
A Construção do Cérebro Consciente
A cópia ilegal viola os direitos dos autores.
Os prejudicados somos todos nós
Autor: António Damásio
2010 by António Damásio
Tradução: Luís Oliveira Santos (João Quina Edições)
sobre desenho de Julião Sarmento preparado especialmente para este livro
Ilustração da capa © Julião Sarmento
Pré impressão: ARD-Cor
Execução gráfica: Bloco Gráfico, Lda., Unidade Industrial da Maia
1ª edição: Setembro de 2010
ISBN (Temas e Debates): 978-989-644-120-3
N.º de edição (Círculo de Leitores): 7577
Depósito legal: 315763/10
Reservados todos os direitos. Nos termos do código do Direito de Autor, é expressamente
proibida a reprodução total ou parcial desta obra por quaisquer meios, incluindo a fotocópia e
o tratamento informático, sem a autorização expressa dos titulares dos direitos.
Para a Hanna
Minha alma é uma orquestra oculta;
não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de
mim. Só me conheço como sinfonia.»
FERNANDO PESSOA
Livro do Desassossego
O que não consigo construir não consigo compreender.
RICHARD FEYNMAN
Sumário
NOTA DO AUTOR
PARTE 1
COMEÇAR DE NOVO. 17
1- DESPERTAR 19
Objetivos e justificações 22
Abordar o problema 23
O eu como testemunha 30
Para além de uma intuição enganadora 31
Uma perspetiva integrada 33
O quadro teórico das investigações 35
Antevisão das ideias principais 39
A vida e a mente consciente 48
2 - DA REGULAÇÃO DA VIDA
AO VALOR BIOLÓGICO 51
Quando a realidade mais parece ficção 51
Vontade natural 53
Continuar vivo 63
As origens da homeostase 65
Células, organismos multicelulares
e sistemas artificiais 67
Valor biológico 68
Valor biológico em organismos completos
O êxito dos nossos antepassados remotos 73
Desenvolver incentivos 76
Relacionar a homeostase, o valor e a consciência 79
PARTE II
O QUE HÁ NO CÉREBRO CAPAZ DE CRIAR A MENTE? 87
3 - FAZER MAPAS E FAZER IMAGENS 89
Mapas e imagens 89
Um corte por debaixo da superfície 92
Mapas e mentes 97
A neurologia da mente 100
Os começos da mente 105
Uma nota sobre os colículos superiores 112
Mais perto da criação da mente? 115
4 - O CORPO EM MENTE 119
A mente como tema 119
Mapear o corpo 123
Do corpo ao cérebro 127
Representar quantidades e idealizar qualidades 129
Sentimentos primordiais 132
Mapear estados corporais e simular estados corporais 133
A origem de uma ideia 137
Um cérebro que se preocupa com o corpo 139
5 - EMOÇÕES E SENTIMENTOS 141
Situar a emoção e o sentimento 141
Definir emoção e sentimento 142
Desencadear e executar emoções 145
O estranho caso de William James 148
Sentimentos de emoção 151
10
Como sentimos uma emoção? 155
A regulação das emoções e dos sentimentos 157
As variedades da emoção 158
Percorrendo a escala emocional 160
Um aparte sobre a admiração e a compaixão 162
6 - UMA ARQUITECTURA PARA A MEMÓRIA 167
Algures, de certo modo 167
A natureza dos registos de memória 170
Primeiro as disposições, depois os mapas 171
A memória em funcionamento 174
Um breve aparte sobre os tipos de memória 178
Uma possível solução para o problema 179
Zonas de convergência-divergência 181
Algo mais sobre as zonas de convergência-divergência 184
O modelo em funcionamento 188
O como e o onde da perceção e do recordar 192
PARTE III
ESTAR CONSCIENTE 197
7 - A CONSCIÊNCIA OBSERVADA 199
Definir consciência 199
Decompor a consciência 202
Remover o eu e manter a mente 206
Completar uma definição preliminar 210
Tipos de consciência 211
Consciência humana e não humana 215
Aquilo que a consciência não é 217
O inconsciente freudiano 222
8 - CONSTRUIR UMA MENTE CONSCIENTE 227
Uma hipótese de trabalho 227
Abordar o cérebro consciente 230
11
Antevendo a mente consciente 232
Os componentes de uma mente consciente 234
O proto eu 239
Mapas gerais da interoceção 239
Mapas gerais do organismo 245
Mapas das portadas sensoriais orientadas para o exterior 246
Construir o eu nuclear. 252
O eu nuclear 256
Uma viagem pelo cérebro durante a construção da consciência 260
9 O EU AUTOBIOGRÁFICO 263
Dar consciência à memória 263
Construir o eu autobiográfico 265
O problema da coordenação 266
Os coordenadores 268
Um possível papel para os córtices póstero mediais 272
Os córtices póstero mediais em ação 277
Outras considerações sobre os córtices póstero mediais 280
Uma nota final sobre as patologias da consciência 293
10 - JUNTARAS PEÇAS 299
À maneira de resumo 299
A neurologia da consciência 302
Um engarrafamento anatómico 309
Do trabalho conjunto dos sistemas de grande
escala ao trabalho dos neurónios individuais 311
Quando sentimos as nossas perceções 313
Qualia I 314
Qualia lI 317
Qualia e o eu 323
O que ainda falta fazer 324
12
PARTE IV
MUITO DEPOIS DA CONSCIÊNCIA 327
11- VIVER COM A CONSCIÊNCIA 329
E a consciência vingou 329
O eu e o problema do controlo 331
Um aparte sobre o inconsciente 336
Uma nota sobre o inconsciente genómico 342
A sensação de vontade consciente 344
Educar o inconsciente cognitivo 345
Cérebro e justiça 347
Natureza e cultura 349
E surge o eu na mente 354
As consequências de um eu capaz de refletir 356
APÊNDICE 365
Arquitetura cerebral. 365
Tijolo e argamassa 368
Algo mais sobre a arquitetura de grande escala 373
A importância da localização 378
Entre o cérebro e o mundo 380
A propósito da equivalência mente cérebro 383
NOTAS 387
AGRADECIMENTOS 417
ÍNDICE REMISSIVO 421
Nota do Autor
A tradução de termos científicos para as línguas latinas é um reconhecido problema,
especialmente difícil no que toca ao vocabulário da neurociência. A correspondência exata
para a palavra «self» não existe nessas línguas e por isso aprovo a escolha que o tradutor deste
livro fez quando usou «eu» sempre que escrevi «self» no original. Claro que «eu» corresponde
exatamente ao inglês «1» e sugere, por se tratar de um pronome, um processo pós-linguística
que a palavra «self» por si só não tem. Apesar disso, «eu» é bem preferível ao termo «si» com
que tentei, noutra ocasião, ultrapassar esta dificuldade. Por outro lado, «personhood» e
«identity» são fáceis de traduzir por «pessoalidade» e «identidade», sem qualquer perda de
precisão, e a palavra «experience», no papel de verbo, encontra uma tradução perfeita em
«experienciar», termo que o meu mestre Barahona Fernandes usava com grande acerto.
Pedi ao tradutor que não traduzisse certos termos técnicos que estão hoje internacionalizados,
tais como «on», «off», «[feedback», e «feedforward». As versões traduzidas são estranhas e
nada explicam a quem não saiba o que significam.
Quanto ao título do livro é da minha responsabilidade. Dado que traduzir Self Comes to Mind à
letra não poderia resultar, optei por O Livro da Consciência que se adapta bem ao tema do
volume e que rende homenagem a Fernando Pessoa, um dos grandes trabalhadores literários
da consciência, cujas palavras também são celebradas na epígrafe.
António Damásio, Los Angeles, Julho de 2010
PARTE I
Começar de novo
CAPITULO 1
Despertar
Quando acordei estávamos a descer. Tinha dormido o suficiente para não me aperceber dos
avisos sobre a aterragem e sobre as condições atmosféricas. Tinha perdido a noção de mim
próprio e do ambiente que me cercava. Tinha estado inconsciente. Na biologia humana há
poucas coisas aparentemente tão triviais como este bem a que chamamos consciência, a
fantástica capacidade de ter uma mente equipada com um dono, um protagonista da
existência, um eu que analisa o mundo interior e exterior, um agente que parece a postos para
a ação. A consciência não é um mero estado de vigília. Quando acordei, há apenas dois
parágrafos, não olhei à minha volta distraidamente, apreendendo as imagens e os sons como
se a minha mente desperta não pertencesse a ninguém. Pelo contrário, soube, quase de
imediato, com pouca ou nenhuma hesitação, sem esforço, que se tratava de mim a bordo de
um avião, a minha identidade volante de regresso a Los Angeles com uma longa lista de coisas
a fazer antes do fim do dia, consciente de uma estranha combinação entre fadiga de voo
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e entusiasmo pelo que me esperava, curioso quanto à pista em que iríamos aterrar e atento às
variações na potência dos motores que nos aproximavam de terra. Sem qualquer dúvida, estar
vigilante era essencial a um tal estado, mas a vigília não era de rodo a sua característica
principal. E que característica principal era essa? O facto de os numerosos conteúdos exibidos
na minha mente, independentemente da sua nitidez ou ordem, estarem ligados a mim,
proprietário da minha mente, através de fios invisíveis que reuniam esses conteúdos na festa
em permanente movimento a que chamamos o eu. E, igualmente importante, o facto de a
ligação ser sentida. A experiência o eu ligado estava imbuída de sensação. Ter acordado levou
ao regresso da minha mente temporariamente perdida, mas agora comigo presente, tanto a
propriedade (a mente) como o proprietário (eu) em uníssono. O acordar permitiu-me
reemergir e inspecionar o meu domínio mental, a vasta projeção de um filme mágico, em
parte documentário, em parte ficção, a que também chamamos mente humana consciente.
Todos dispomos de livre acesso à consciência. Ela surge com tanta facilidade e abundância nas
nossas mentes que não hesitamos, nem nos sentimos apreensivos, quando permitimos que
seja desligada todas as noites, quando adormecemos, e deixamos que regresse de manhã,
quando o despertador toca, pelo menos trezentas e sessenta e cinco vezes por ano, sem
contar com as eventuais sestas. Contudo, poucos são os constituintes do nosso ser tão
espantosos, fundamentais e aparentemente misteriosos como a consciência. Sem ela, ou seja,
sem uma mente dotada de subjetividade, não poderíamos saber que existimos, e muito menos
quem somos e aquilo em que pensamos. Se a subjetividade não tivesse surgido, mesmo que
de forma muito modesta ao início, em seres vivos muito mais simples do que nós, a memória e
o raciocínio provavelmente não se teriam expandido de forma tão prodigiosa como se veio a
verificar, e o caminho evolutivo para a linguagem e para a elaborada versão humana da
consciência que agora detemos não teria sido aberto.
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A criatividade não se teria desenvolvido. Não teria havido música, nem pintura, nem literatura.
O amor nunca teria sido amor, apenas sexo. A amizade não passaria de uma mera vantagem
cooperativa. A dor nunca se teria tornado sofrimento, o que pensando bem não teria sido
mau, mas tratar-se-ia de vantagem equívoca, dado que o prazer nunca se viria a tornar em
alegria. Se a subjetividade não tivesse feito a sua entrada radical, não haveria conhecimento,
nem ninguém que se apercebesse disso e, consequentemente, não haveria uma história
daquilo que as criaturas fizeram ao longo dos tempos, não haveria cultura de todo.
Embora ainda não tenha apresentado uma definição funcional de consciência, espero não
deixar qualquer dúvida quanto ao que significa não ter consciência: na ausência da
consciência, a visão pessoal suspende-se; não temos conhecimento da nossa existência; e não
sabemos que existe mais alguma coisa. Se a consciência não se tivesse desenvolvido ao longo
da evolução, expandindo-se até à sua versão humana, a Humanidade que agora nos é familiar,
com todas as suas fragilidades e forças, também não se teria desenvolvido. É arrepiante
pensar que uma simples mudança de direção poderia representar a perda das alternativas
biológicas que nos tornam verdadeiramente humanos. Claro que, nesse caso, nunca teríamos
vindo a saber que nos faltava alguma coisa.
Olhamos para a consciência como coisa garantida porque é tão disponível, por ser tão simples
de usar, tão elegante nos seus aparecimentos e desaparecimentos diários. No entanto, todas
as pessoas, cientistas incluídos, ficam perplexas ao pensar em tal fenómeno. De que é feita a
consciência? Parece-me que terá de ser a mente com algumas peculiaridades, visto que não
podemos estar conscientes sem uma mente da qual podemos ter consciência. Mas de que é
feita a mente? Virá do ar, ou do corpo? As pessoas inteligentes dizem que vem do cérebro,
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que se encontra no cérebro, mas a resposta não é satisfatória. Como é que o cérebro foz a
mente?
Especialmente misterioso é o facto de ninguém ver a mente dos outros, consciente ou não.
Podemos observar-lhes o corpo e o que fazem, dizem ou escrevem, e podemos opinar com
algum conhecimento quanto àquilo em que estarão a pensar. No entanto, não podemos
observar-lhes a mente e apenas nós próprios somos capazes de observar a nossa, a partir do
interior, e através de uma janela bem estreita. As propriedades da mente, já para não falar da
mente consciente, apresentam-se de uma forma tão díspar daquelas da matéria viva visível,
que as pessoas atentas se interrogam sobre a forma como um processo a mente consciente
se funde com os outros processos as células vivas que se unem em aglomerados a que
chamamos tecidos.
Claro que dizer que a mente consciente é misteriosa, que o é, não é o mesmo que dizer que o
mistério é insolúvel. Não é o mesmo que dizer que nunca seremos capazes de entender como
um organismo vivo dotado de cérebro desenvolve uma mente consciente ou declarar que a
solução do problema se encontra fora do alcance do ser humano.'
Objetivos e justificações
Este livro aborda duas questões. Primeira: como é que o cérebro constrói uma mente?
Segunda: como é que o cérebro torna essa mente consciente? Tenho perfeita noção de que
abordar questões não é o mesmo que responder-lhes e que, no que respeita à mente
consciente, seria disparatado partir do princípio que é hoje possível obter uma resposta
definitiva. Além disso, apercebo-me de que o estudo da consciência se expandiu de tal
maneira que deixou de ser possível fazer-se justiça a todas as novas contribuições. Esse facto,
a par das questões da terminologia e da perspetiva, fazem com que
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o atual trabalho sobre a consciência se assemelhe a um passeio através de um campo minado.
Todavia, é razoável analisar as questões e usar os dados presentes, por mais incompletos e
provisórios que sejam, para elaborar uma conjetura testável e sonhar com o futuro. O objetivo
deste livro é refletir sobre essas conjeturas e discutir um corpo de hipóteses. O ponto central é
a estrutura necessária ao cérebro humano e a forma como tem de funcionar para que surjam
mentes conscientes.
Todos os livros devem ser escritos por uma boa razão e a razão para este foi começar de novo.
Há mais de trinta anos que estudo a mente e o cérebro humanos e já escrevi sobre a
consciência em artigos científicos e em livros.' Todavia, a reflexão sobre descobertas
relevantes em projetos de investigação, recentes e antigos, tem vindo a alterar
profundamente o meu ponto de vista em duas questões particulares: a origem e a natureza
dos sentimentos, e os mecanismos por trás da construção do eu. Este livro constitui uma
tentativa de debater noções atuais. Em grande medida, o livro é também sobre aquilo que
ainda não sabemos, mas gostaríamos muito de saber.
O resto do capítulo 1 situa o problema, explica a estrutura escolhida para o abordar e antevê
as principais ideias que irão surgir nos capítulos que se seguem. Alguns leitores poderão
pensar que esta longa apresentação retarda a leitura, mas prometo que também fará com que
o resto do livro se torne mais acessível.
Abordar o problema
Antes de tentarmos avançar para a questão de como o cérebro humano cria a mente
consciente, importa reconhecer dois legados importantes. Um deles consiste nas anteriores
tentativas de descobrir a base neural da consciência, com projetos que remontam a meados
do século xx. Numa série de estudos pioneiros levados a cabo na América do Norte e em Itália,
um pequeno grupo de
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investigadores isolou com uma notável pontaria um sector do cérebro que está hoje
inequivocamente ligado à criação da consciência o tronco cerebral identificando-o como
promotor essencial da consciência. À luz do que sabemos hoje, não admira que o relate destes