Amores e Desamores – para uma análise sociológica das relações afectivas

13 Pages·2008·4.15 MB·Portuguese

by  Ana Duarte

AMORES E DESAMORES*

— PARA UMA ANALISE SOCIOLOGICA
DAS RELAGOES AFECTIVAS

ANATIA TORRES**

Imagine que tém sentados ao vosso lado a D. Virginia da tabacaria
dda mins rua, o Sr. Dionisio da faumacia, o Sr. Sousa do supermercado do
‘meu bairro. Pensem em pessoas como estas com quem s2 corvive, out pelo
‘menos se fala quase todes os dias, e [agar 0 exercicio de as ver aqui ao
lado de estudantes universitarios, <oci6logos, e outros profissionais

Seria provavelmente uma assembleia no limite da impossibiidade
‘Mas tomem-na agora por segundos como real e suponham que o tema que
se propuaha discussao era cxactamente o Amor. Podia até passar se um
filme desses chissicos como @ Casablanca, Depois falava-se das persona-
gens (com quem devia ter ficado a Ingrid Bergman?). A seguir cada um di
ria ainda da sua experiencia. Como e quanda namorou, que palavras disse,
‘que promessas fez, como se easou ou deseasou, e coisas semelhantes.

Acriscarei pouco se disser que iriamos usar palavras diferentes para
significar as mesmas coisas (casei por amor, gostei dele, ateaigoou-me,
apaixonci-me, curti brava, arranjou uma amante); e muitas vezes falscia
os com as mesitas palavias auribuindo-dlics seatides diferentes. Na as:
sembleia que imaginémos. juntariamos pessoas que ‘inham em comum —e
so quase todas as deste mundo— a experiéneia ariorosa, mas Unham
também en're si grandes diferengas de valores ou referéncias

Isto quer entdo dizer que em iltima anilise n2o nos entenderiamos.

Em linguagem sociologica iso significa que depende do lugar social de
onde se fala, ou seja das priticas sociais, e3 universos simbdlicos cu ideati
ages que se constituent, os desejos ¢ vs gostes que se tém cu formular:

dus ds Comic «Cats lieedne no SCTE cn lance de 197, Opto yor a te

introduce qualquer alteasto de rele no etl, nanendo asim c caster de raid

aur un elo prsuridn pare apesoicao em plo sampre cent. grassy 20 Dr. An
o Docente do ISCTE e invetisadora do CIS.
2 SOCIOLOGIA

Mesmo que se trate de uma experigncia t8o universal como € a do Amor,
ele nao foge A regra Ca diferenciagdo social que torna a comunicagao entre
{gripos, se ndo impossivel, pelo mienos dificil: mas sera que estas diferencas
se reduzem a individualidade de cada um? Ou seja, senda a experién
morose vivida por cada um de nés como sentimento nico quase indizi-
vel, ¢ para nis, diferenciada socialmense, sera que s6 uma citncia ou dis-
ciplina que, terdo como objecto o individuo singular —a Psicologia ow
Paicanalise—, 2 poder abordar?

Nao creio. & $0 gue a0 longo desta comunicagdo vou procurar de-
monstrar, tentancls simultaneamente os eamintins, aida exploratdcios, pa
ra uma analise socioldgica,

Em primeiro fagar, um argumento mais académico. Como se sabe, as
dlistingges disciplinares nas ciéneias sociais ndo se fazcm porque 0 objecto
difere, O que difere & 8 construgao da objecto. Ou seja, economia, psicolo:
gia, sociologia, relimensioram, ov elaboram segundo um enfoque pré~
prio, a mesma realidade social: 6 individuo € uma totalidade, 29 sedutivel
‘a0 social, € sempre tnico e difercate de todos os outros. Mas em interacgé
‘com outros 6 9 agente e protagonizador das sociedades em que vive, Seri
fesie o lado que a sociologia privlegia enguanto a psicologia ou « psicandli-
se procuram, por hipdtese, privilegiar as dimensdes psiquicas do individuo.

Em segundo lugar, parece-nos que # uma visio socioligica amputada
42 que privilegia apenas como abjectos a construir os que parecem ser mais
‘determinantes para explicar a vida socisl, per hipdtese o estudo das insti-
tuigdes ou dos grandes sistemss. Este tipo de abordagem cai no equivoco
dle desprezar a dimensdo, a meu ver, essa sim, mais relevante da sociologia,
essa é a que formula os conesites de pritica social ede relagao social, S30
(08 individuos, as présieas sociuis de que ado protagonists, © nelas se inse-
rem também as suas repcesentagses simbolicas (0 subjective & também
«facto social») que geram, criam, (ransformam as insticulgbes, as socieds
des que constiluem; e fazemn-no em relacdo ou interazgao com outros come
dlissemos, nos termos do que se pode definis como re.agio social

‘As relazOes sociais tém milla dimensdes — wma das dinensdes € a
dimensio afectiva. Ela operu em lodos os Comiaies da vida social — traba-
tho e profissdo, familia, lazer. E podemos ertdo dizer que um éos lugares
privilegiados ou operador silico fundamental das relagdes afectivas sao
as relagdes amorosas — nelas esto ainda inscritos diversos niveis ua real
dade, como veremas,

Damos um breve exemplo para explicitar o que dissemos. Quando se
passa a considerar que o Amor € condigao sine qua non para o casamento,
alguns sociélogos, reflectindo sobye a familia elaboram perspectivas segur
do as quais se passa a considerar o exsamento ou a familia como insttui-
¢Ho, fundaca, ¢ claro, agora sobre o Amor. Deixando de ser uma unidade
produtiva como o tint sido anteriormente, ela passa simplestaente &s fun-
g6es de reprodurao social, ou subsistoma dle divisto funcional de tarefas
entre cénjuges. A parte fica 0 Amor, que se considera um dado a partida,
No" 31987 2

fo questionavel. A escolha do cdnjuge por hipétese é aleatéria, ditada
pelo sentimento. A porta do casamento param as determinagses socials.

Esta visto exquemica € posteriormente posta em causa. Por um a=
do, ourras parspectivas tedricas questionam a dicotomia rigida entre vida
publica © vida privada, fazenda salientar a interacpao e influéncia perma
nente destas esferas. Por outro, certas pesquisas comecam a detectar regu
laridades nesse terreno aparentemente ieclete-minado come # escolha do
cOnijuge. Constata-se, por exemplo, que a escola ¢ sobreiudo homogimi-
ca — escolhe-se um parveiro da mesma classe ou grupo social. Por cutro
ainda e cam Bourdieu —e este parece-me ser a perspectiva tebrica mais
relevante— formula se, coma dissemos, o coneekro de prévica social nas
suas miltiplas dimensoes — material esimbdlica. O conceito de estratéeias
ma:rimonials, por exemplo, refere-se exactamente a diverses nivels da
realidade que esti em jogo no casarento — afectivo, cultural, social

Alias, € também Bourdicu que justamente a propésito ée uma analise
do gosto —esse terreno também aparentemente to sleatGrio — 0 refere
imatriz ce percepsdes (habitus) que opera nessas escolhas estéticas e que
orienta os nassos diferentes estlos de vida.

Retomando agora o que dissemos, as relagaes afectivas, e mais espe-
cifieamente as relacOes amorosas, so uma das miltiplas dimensdes das
relagées secinis. E sto uma dimensao fandameatal também porque a afee:
tividade constitai um des slementos mais importentes na construcio das
identidades colectivas ¢ individuals. Da mesme forma se pode dizer que as
sociadas a osta dimensto relacional da afectivicade se encontcam formas
ce «padronizaio> de afechividade ou mesmo codigos amaresos que domi-
‘pam, ow se impSem de forma dilerenciada por Epocas, ro tempo eno espa-
0, Este & por agora o nosso enfeque que se desenvotvera 20 longo desta

‘Queremos deixar claro que nao fizeros pesquisa cientifiea eonereta
sobre as relacoes amorosas. Trata-se ainda de uma fase incial da elabora-
sao de um aparelao conceptual. As pessoas de que vos falmos inicialmen-
fe foram apenas um pretex:o para vas confrontar cora as diferentes Formas
de viver ¢ falar sobre Amor.

Realizei apenas tabalhos de pesquisa em éreas que posto consilerar
affas, e que me femiliarizaram com o tema, ou até me sugeriram entrar por
esta via, corto foi 0 caso de uma pesquisa sobre mulheres divorciadas,

Comesitmos pelos desamores, poder-se-é dizer. Mas vollamos agora
20s amores. Nao fazemos alias muilo mais que a maioria dos divoreiados
‘ane, como se pode constatar estatisticamente, voliam a easar

Antes ainda de entrar mats directamente no assunto gostaria de vos di-
zer que tinha pensado comerar esta comunicagao com algumas palavras de
Herberto Helder. Era talvea mis solene. E as palavras das poetas so sem-
pre mais redondas que as dos sociSlogos. Comecar assim ndo era aliés 56
‘um problema de forma, Oigam agora,
2 SOCIOLOGIA

Que desejas tu suber se & verdadeiro
e que mado de verdade interessa

4 tua coisa verdadeira? O Amor
respond ex, 0 anor. Desejo

saber a yerdade sobre 0 Amor

respondi eu, segundo a verdade do Amor.
Nao estdé mal para comesar. Era

entdo 0 amor. O amor queima

fs mdos, disse a minha pequena
sabedoria, A ciéncia queima as

imdas. O medo sambém.

‘© poeta estabelece uns relapto entre a vontude de saber sobre o Amor
fe todas as outras vontades de saber. loda a curiosidatle —quem & 0
jutro? — toda x sede de descobrir — onde esta a verdade, na ciéncia? — &
tum exercicio, onde se queima as mos, um risco, uma transeressao.

E ainda 0 pocta

Que coisa era o amor para que ex 0 amasse assim? O amor é
escrever-me, iranscrever-me, tradusir-me, colocar-me, FE pe-
‘ger em mim, & pireme aa mesmo tempo dentro ¢ fora de
‘mim; & reconhecer eurra pessoa, trazé-la, reescrevendo-a &
ppé-la dentro e fora de si, ¢ wdlo se encontrar. E 0 tempo? O
Hempo no tera, Ev lugar? O lugar no ugar:

A meu ver a procure da conhecimento do outro para que me recon
‘58, ou do conhecimento do mundo ¢ da saa verdade para nele :ambém re
Feconhecer ¢ enconirar um lugar, seo ambas essetviais & constituipao da
identidade, de um equitibrio, da integragao,

Ora, 0 tempo presente, « moderniade ou pos-modernidede, encerra
exactamen'e esta sifieuléace. Por um lado a ciénecia ja nao é sindnima da
verdade, tranquila, pacificante: oferece maiores marzens de incer'eza,
auestiona-se, muda,

Da mesma forma, e talvez apenas em planos diferentes, as inguicta-
‘ybes amorosss, as dificuldades ce viver o Amer tal como geracSes anterio~
fas o viveram, traduzetn-se também ro erescimento das margens de incerte~
2a, onde se questiona, e se & por vezes obrigado a mudar.

Julgo que ¢ desta ‘erturbagao que nasce, por um lado a vontade de sa-
ber, que alimenta e realimenta permanentemente 0 novo in-eresse pelas
sasdo Amor — no cinema, no romanes, na televisio. E & uma perturbacio
idéntica que nos empurrs pars a curiosidade peles coisas da ciéncia de que
‘0 consumo éa divulgagto cientfiea ¢ dos saberss para ou pretensamente
‘entificos nos pode dar um exemaplo. Em ditima andlise, pode sinda sex es
sa mesma ingusetagdo que d& corpo a este tipo de pescuisas..
N° 3-1987 25

‘Mas vamos ainda directamonte ao assurto. Tomando como objecto as
relagoes amorosas, comecemos por distiaguir dois niveis de andlise que
aqui se dicotomizam apenas por imperativos metodol6gicos.

Em primeiro lugar, julgo, necessario, numa andlise ceste tipo, situar
as relagdes amorosas ¢ as representagdes colectivas ¢ individuais sobre 0
‘Amar, nim contexto cultural e espaco-temporal. Quer isto dizer que as
priticas sociais e os universos simbSjicos sobre 0 Amor a que se referer,
vvariam de Spoca para spoca, de cultura para cultura, & previso situd-los.

[Na mesma época, para nds agora o século AX, € ne mesma cultura, &
‘chamada cultura ocidental, hd ainda uma mutagao de valores que se conti
‘gura em periodos mais precisos. Se pensarmos nos iltimos vinfe anos, por
‘exemplo, imediatzmente nos ocorre um corjunto substancial de ¢ransfor~
‘mages justamente nos conceilos vigentes sobre as sexualidades, os amo-
183, a vida privada, as mulheres.

Dy amor romaitico ¢ da paixio, por aposiedo ao tédlio do matrimonio
por inseresse do séeulo XIX, 20 casarterto por amor € 40 divorcio dos nos
508 dias, vai urna grande distancia social. Podemos dizer assim que se ©
sentimento & quase eterno ou universal naquilo que sle contém do movi-
mento para 0 outro, as formas e cateyorizagdes prbprias do Amor depen-
ddem de codigos ou da semartica, como dira Luhman, préprios de ura
epoca.

Havera entio que captar numa abordagem global, uma espécie de es-
pirito do tempo do Amor na nossa época, descobrir hoje, na wossa cultura,
‘no nosso pais, quais sao os valores dominantes, quais sao 0s cédigos do
Amor

Este exercicio nflo ¢ evidentemente facil

Dizer que se procure eaptar hoje em Portugal valores deminantes ou
tuniversos simbulicos que podem presidir A organizagtio das regras do c®-
digo amoroso € dizer 0 qué? Que se procura saber como certos aspectos da
modernidade ou pos-modernidade esto patentes ¢ sAo visiveis em certas
areas urbanas? Pode ser. Mas ha que Ler em conta que neste terreno das re~
lagées amorosas como noutras dimensdes des relacdes sociais jogam ainda
outros factores. Apenas a titulo de exemplo, a relizido. E sabido que cat
licos cu protestan'e organizam respostas « visbes do mundo diferentes no
dominio dos valores, ou orientagbes pessoais. & certo também que as socie~
‘dades modernas se caracter:zam por uma desacralizagao ou laicizagto; ow
seja, rola perda de importancia da relig'do como orientadora miesme da vi-
dda privada, Mas ha que ter em conta que neste dominio tao fluido quanto
pode ser o de perceber 0 que contribui para a constituigo de certos univer-
sos simbolicos, hi certamente efeitos da relisiio, neste caso catélica, que
cenuzados ou dobrados de componentes es:ruturais, por exemplo envolvén-
cias ruralizantes, podem perdurar.

Falar do Pais & sempre felar de uma formagilo social com redes com
plexas de relapdes sociais de miéltiplas deter minagies. Dai que a meu ver se
estas formulacoes sobre & modernidade ou a pos-modernidade, sto de va-
2% SOCIOLOGIA

lor teorico inestimével, quando pensadas em Fungo da pesquisa do terre-
1, obrigam-nos certamente a procurar um conjunto de mediagoes.

Isto ndo me ocorre por acaso. Com efeito, ¢ atianto ao divércio, dizer
que Lishoa nfo 6 0 Pais, nao € uma afirmagao sem sentido, Hé um conjun.
to de indicadores estatistios, que nos revelam dados interessantes — em
Lisboa ocorrem mais de metade cos divorcios de todo o pais. Embora esta
relagao tenha diminuido nos ultimos anos, continua o distrito e a cidade de
Lisboa a estar muito a frente do Porto, por exemplo. O mesmo se pode di
ver quanto 2 taxa de natalidade (@ mais baixa em Lisboa) ¢ 0 mesmo ainda
sla de nupciatidade. Também o numero de casamentos catdlicos & acentaa
damente mais baixo em Tistos que na Porto

Mas agora, + em sentide contrario, podiamos dizer que hi terdéncias
para que certos valores se eomuniquem, o que pode produzir alguns efeitos
eneralizadlares. © Direito, por exemplo, sestas areas da familia tende a
adequar-se és praticas sociais. Pode dizer-se que as transformagdes legisla

‘vas, no nosso caso com alguma especificidade devido as mudaneas brus.
cas do 25 de Abril, produviram cxrtamente alguns efeitos. De um dia rara 0
‘outro mudou o discursa institucional sobre os diteitos das mulheres, per:
mitiu-se 0 divércio para os casados catolicamente. Isto levou certamente
A reestrutaragao dos universos vognitivos, & mudanga Ue visdes Eo mundo.

E sabemos como é importante o diseursp insiitucionalizado do Di
to, que estabeloce a norma e a excepcao.

“Mas nio s6. Hé ainda 9 poderoso impacto cos media. Se comparar
mos o poder de difusto social dos romances da século XIX gue cadificam ¢
‘modificam tambim as rearas do cédigo amoroso, com 9 poder da televisdo
com a sua ‘elenovela, ni & dificil concluir que o Gltimo & mais eficaz,
cum comuaicasao ¢ difusto de valores, ou mudelos de comportamentos,
mesmo tendo em conta que a mensgem nao ¢ nica ou unidimensioral,

Equacionmos um primeiro nivel de anise, a necessidade de situar as
relagdes amorosas num contexto espacio-temporal, na tentativa de lh
contear cddigas ou valores determinantes, enurciinos algumas dificul-
dades.

Vamos prosseguit, fazendo uso, ent, de algumas elaborapdes tebri
cas globa's de outros sociblagos. Mas para ja equacionemos ury segundo
nivel de analise.

Na origem da formulacao de qualquer cbdigo, ou dos valores, ou da
constituigdo de universos simbolicas, es:R0 os actores sociais. Isto & uma
sonsequéncia logics co uso do coneeico de pratica social.

AA tentativa de captar os eédigos dominantes, num exercicio tebrica de
absoluta pertinéncia ¢ interesse, fica apesar de tudo amputada, « meu ver,
se nao for acompanhada de uma analise que faga entrar em cena os actores
sociais, na diversidade das suas praticas e universos simbélicos. Nesta di
versidade podem ser encontradas rogularidades ¢ efeitos estruturadores. As
condigdes materiais de existencia condicionam a constituigao de universos
Simbélicos, organizara matrizes de pereeprdo (habitus), como ceferimos,
N.2 31987 a

‘com auc se opera e Ié a realidade do que nos acontece, a nds € aos outros, €
determina também as trajectorias socials. Quer isto dize* que os recursos
dde que se faz uso para amar au para estahelecer relagbes ainorasas, as €800-
Thas, estao condicionados por cortos imperatives cultura.

‘Por outro lado, procurar as determinagdes mais pertinentes para en
contrar e explivar regularidades, exige lomar em conta una onultiplicidade
de variéveis — grupo ou classe social mas também geravao, idade. As gera-
ses comunicam-se, es grupos na sua diversidade também.

Ha ainda operadores simbSlicas que funcionam como intereomunica-
doses gerais, como ja dissemos. Os anos 80 slo, necessariamente, ume
amiilgama de sensibilidedes diferenciadas. B esta percepeio que nos leva a
cousiderar a necessidade de captar os processos sociais que esto a operar
nas relagaes amorosas, pela pesquisa de terreno num futuro: s cla permite
tornar os actores sociais os verdadeiros protagonfstas das suas praticas.

Velamos no entanto, para ja, 08 contributos de alguns socidlogos e ti
losofos num primeiro nivel de analise ainda global

Luhman, a0 sen livro recente L'amour comme passion, considera que
ha quatro categorias fundamentais de comunicacdo — poder, verdade, di
heiro e amor. Nam quadro teérico que procura eruzar uma perspestiva da
reoria da evolugto com ume Leoria dus meivs de comunicagao simbolica
gencralizacla, 0 autor procara caracterizar as diversas semnticas do Amor
a partir do século XVI. Traga-nes 9 quadro do que ele considera funda-
mental como semantica do amor nos tempos modernos, Sintetizaremos
‘brevemente 9 seu eantributo.

Sentimento ¢ acco sho relagdes orientadas por imperativas enitursis ©
mesmo as relagées sexusis, na fantasia ou ma pritica, devem a essa incerfe-
Oneia (cultural) a sua limitacao grancleze. As evolugdes da estrutura so:
taal originam uma transformagiio das conceitos vigentes sobre o aanor € as
Formas de codificaeao que Ihe si proprias.

© amor nao é aqui ratado como um sentimento mas como um codigo
simbaliso que informa de que maneirs podemos estabeleces ums comuni-
cago positiva, E é este cédigo que estimula a propria génese do sentimen-
.0. Uma serhora da ¢poca romantica, por hipétese, 66 s¢ apaixonava de.
pols de ter lilo como era a pando uv romance.

‘Com a evolugao para a sociedad: mederna, Luhman diz-nos que se
assiste a uma modificagiio profunda da semantica do amor. A sociedade
moderna caracteriza-se por uma dupla acumule¢o: um maior nimero de
possihilidades de estahelecer relagScs impesseais, ¢ uma maior intensifica
‘eo das relagdes pessoais. Acentua-se ainda uma progressiva diferenciagao
Social. Com uma carta incapacidade de prever as possibilidaces de evolu-
‘glo da pripria sociedade, ela ternou-se opaca e complexa aos olhos dos in:
Aividuos, Desta nogao de opacidade e complexidade surge u nevessidade de
se situar num mundo prOximo, aura meio compreensivel que inspire con-
Fianea, «intimo».

‘Desta necessidade, ainda, ¢ compensardo de um mundo iatimo gue se
28 SOCIOLOGIA

procura, nasce por um lado a revalorizago de relayées como a amizade,
‘mas por outro smentam as exigencias — 0 que se pede a esse mundo
timo,

Como se assiste a uma maior individualizaglo, as relagdes pessoais
ddeixam de funcionar como elemento «protector. Os desamores, diremos
nds, nascem assim «de um grau excessivamente alto de individualizacao
que pde em perigo uma unio conjugal e coloca as relagdes intimas debaixo
do peso de exigéncias que forgasamente resultam dificeis de cumprir com
total plenitude». Sem liames addministrativos perde-se o sentido co com-
promisso ¢ a unio esté assim sujeita a fragilidade dos sentimentos de facil
mutagéio. Com uma maior individualizagao e mesma com a personalizasa0
ddas relagdes sociais 0 amor deixa mesmo de ter 0 papel de regulador do
conffito, e passa ao contrario a ser também afectado por el.

Julge no abusar de Luhman se disser que para ele acaba ainda o
umistérion. A iguallade dos sexos, @ abordagem fécil da sexualidade, a au
séncia da necessidade do amor mesmo para o estabelecer de relacdes se-
sauzis ou o surgimento ¢a amizade erética, retiram ao Amor um eonjunto
de regulagdes que 0 tornavam transcendente. Em contrapartida a unio
‘conjugal, com um objecto mais ao nosso alcance, ¢ menos despido de idea
lizagoes esta sujciva simultancamente as dificuldades inerentes & afirmayao
da individualicace a uma ma:or cxigéncis de intimidade e protecrao que
la ja niio esta em condigdes de oferecer.

‘O amor promete demasiado, oferece demasiado indice de improbabili-
dade,

Se esta andlise capta por um lado uma realidade indesmentivel — um
maior indice de individualizagao produz uma maior con'Titualidade, con-
lui com ume inevitabilidade (a improbabilidade da comunicasdo amorosa)
4 meu ver pouco convincente. A individualizayao provem, por exemplo, de
uma maior igualdade entre o homem e a mulher e de menores constrangi-
‘mentos sobre a relacdo e sobre 05 individu.

Isto pade criar taiores candigies para o conflito. Quer dizer, ¢ pen-
sando ro casamnto, ha projectos que se dizerenciam a0 longo de trajecto-
sas feltas muitas vezes além disso em periodos ainda de crescimento ou
maturagdo © construgao Ua identidade dos parceiros. Mas 10 & inevitavel
ue nao se posse chegar ao consenso. No mesmo ou noutro casamen‘o.
Com as devidas reservas pociamos estabelecer uma comparagao.

© Estado Providéncia prevé a consagragao da solugéo do conflito
— que se institucionalizou exactamente porque se parti do prinefpio
de igualdade de direitos entre grupos conflitantes — pelo processo do

Nao foi uma aprendizagen {Aci

Por que nao conduz aumento de conflitualidade entre os individuos
nas relagdes amorosas ou nas relagdes conjugais, ao consenso”?

Nas relacdes amorosas assiste-se por um lado a um maior indice de
‘mobilidade de parceiros, 0 que nos pode indicar 0 aumento ¢ mesmo bana-
N.°3-1987 2»

lizagao do divoreio. Mas podemos encarar esta situagae como um periodo
de conflito de referéncias, reconstituigdo de universos simbélicos e cogniti-
vos. E isto porque surgiram novos dados — sobretudo em relacdo a gera:
ges anteriores onde o casamenio para a vida inteira era uma perspectiva
de que se partia e que nto se punha em causa,

(s divorciados tendem a voltar a casar. Certamente que haverd quem
rio aprenda nada, mas ha uma mudanga efectiva em relagdio a referéncias
ppassadas. Nao acho assim que haja uma condenugdo & improbabilidade da
‘comunicasio, Pode ser hoje mais ditial atingir plataformas de consenso:
mas julgo que & uma realidad ainda demasiado preseate e contempordinea,
para nos candenarmos ja & improhebilidade, ou decidirmos jt pelo con-

Por outro lado & @ priprio Lubman que fala da revalorizazio da ami-
zadle. O autor diz que as telagses Intimas j& no oferecem eondigdes de
‘aproteeston — isto devido ainda a maior individualizagao. A meu ver res-
surge outro tipo de relaydes que funcionam pontual ou defintivar:ente
como formas de soctabilidade e por isso talvez surjam também outras formas
de «proteosiion. Para finalizar ha um certo tom em Luhman do tipo — 0
amor j& ndo & come esa dantes... Tulgo que no adianta tanto pensar no
{que Foi, a ado ser por imperativos analiticos, interessa mais perceber o que
se iaveste hoje simbolicamente no que se chama Amor. E pode aparecer-
nos no conjinto categorias e alé palavras novas, que Ihe atribuam um n0-
vo sentido — so uma andlise das pratieas sociais nos poderia conduzir & ve-
rificacto da pertingncia de certas propostas tebricas € das intuigdes ou ob-
jeccdes que eu propria levantei

Deris Rougemont no seu livro «O Amor no Ocidente», com textos
dle 1935 ¢ 1954, procura analisar sobretudo através da literatura, o$ mitos
gue organizam a vida amorosa na cultura ovidental, do amor cortés aos
nnossos dias

Falando das sociedades actuais, Rougemont procura responder e pro=
por mesmo uma cutra atitude face ao que considera «o estado presente de
desmoralizagdo geral dos nasios dias». Parte do pressuposto que vivemos
segundo das morais — uma herdada da ortodoxia religiosa, mas que nto
se apcia numa fé viva, @ outra derivada de uma heresia,cja expresso «es-
sencialmente lirica» chega até nis totalmen:e profanada ¢ por consequén-
cia deturpada (refere-se & paixao),

(© mito da paixao esi profundamente enraizado na cultura ovidental,
diz Rougemont, Paixdo ¢ antagSnics a0 amor. Muitos dos problemas que
hoje surgem, nomeadamerte 0 aumento dos divorcios geram-se exacta-
mente a parti deste equivaco, ou seja de nao se terem em conta as ciferen-
‘es profandas entre amor e paixaa, Para Rougemont paixo é sentimento.
amor & construpio, decisio, compromisso de partilha de vida em comum,

(© mito da paixto com toda série de obstaculos que impossibilitam 0
atingir do objecto amado e, que alls para que se mantenba deve permane-
cer inatingivel, conduz em Ollima analise & morte, Negagdo de si e do ou-
2 SOCIOLOGIA

tro, exaltagao das trevas, da acite do excesso em detrimento €a trenquili-
dade ou & luz do dia. O que se passa nos nossos dias, continu @ autor, &
{que a paixto Ja nao fem as compenentes trascendentais ou sublimes que a
cenvolviam antericrmente. © seu sucedaneo actual & uma série desregrada
de entusiasmos, porque 9 ideal de Felicidade deixou de se situar no Ser €
passou a situar-se no Ter. Procurs-se permanentemente a mulher ideal que
& a Tsolda moderna de wm; filme qualquer. que corresponde ao mito ou
idealizagao. Casa-se com ela; mas como, presentes no casamtento nfo esto
‘os valores de continuidade do compromisso «um vida que € aliada da ui
nha para toda a vidio, mas sim os valores que presidiram 4 escolha da pes-
soa mitificada, facilmente o casarpento se rompe. Em tragos gerais € nieces-
sariamente esquematicos, € isto que explica para Rougement a sucessdo de
amores ¢ desamores

‘A sua andlise sobre os mito: fundamentais da paixdo através da litera-
tura e desde o séeulo X11 & extremamente rica ¢ pormencrizada. E se olhar
‘mos deste ponto de vista, ou seja, relativamente & propus:a do autor ela &
extremamente perspicaz e pertinente.

Faremos notar apenas que em 1954 as condigSes para pOr em pratica 0
amor como partilna, decisao matua, compromisso, uma vida que é minha
aliada da minha para toda # vida, nfo seriam os melhores se pensarmos do
pponto de vista da igualdade entre parceiros. Rougement além disso no
esté preocupado cm analisar as condigGes mais consretas da vida matrimo:
nial porque & sua analise se prevende de categorias globais — moral, ética.

‘Onde Rougemont nos inquieta, e nos questiona (até que ponto # que o
‘mito povoara ¢ nossa cabera?), A. Alberoni reconcilia-nos, pacitica-nos.

‘No seu livo «Enamoramento ¢ Amor» ele elabora uma perspectiva
sobre o enamoramente considerandno co estado nascente de um movi-
‘mento colective a dois». Nesse estado nascente tudo se caractesiza pelo ex-
tragrdinatio, dele pode nascer ou no o amor, a continiidade. O seu qua-
dro tebrieo apuiase ua formulagao global de que todo 0 «movimento
colectivo acaba na instituigaio» — sendo o movimento o periodo de ctiati-
vidade, inovagto € a insitucionakzagan de uma nova orcem ou continui=
dade, O enamoramento é assim o estado nascente de um movimento idénti-
‘60 ans outros movimentos coleciivos. e apenas diferente ou especifico, por-
{que entee outras aspeclos envolve apenas dois.

(© fue:0 de Alberoni nto 3e relerir & paixto mas a0 enamoramento, &
ainda de a'guin modo significativo, se pensarmos no que fieou dito. A pai-
‘ao esté asseciada ainda uma icela ce radicalidade, que como Rougemont
‘acentua parece ndo encontrar forma correspondente nos dias de hoje,

Por que nos enamoramos eniao?

4A vid quotidianay, diz Alberoni, «é caracterizada pelo desaponta-
mento». Adiamos sucessivamente o prazer, no cumprimesto co dever, a
sedincia & obrigagae. «A ordem das coisas ndo nos tem como centro, ndo
faz de nbs o seu principio inspirador; €o resultado da pressdo que exercem
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