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Prólogo: Arthur
Arthur Lancaster, Conde de S. Merryn, estava sentado em frente a uma fogueira
crepitante no seu clube, a beber um copo do seu porto excelente e a ler o jornal, quando
recebeu a notícia de que a sua noiva tinha fugido em segredo com outro homem.
- Ouvi dizer que o jovem Burnley usou uma escada para subir à janela dela e auxiliou
a menina Juliana a descer para o coche. - Bennett Fleming sentou o seu pequeno e
robusto corpo na cadeira ao lado de Arthur e pegou na garrafa de porto. - Pelos vistos,
foram em direcção ao norte. Sem dúvida para Gretna Green. O pai da Juliana acabou de
sair na peugada deles, mas o coche dele é velho e lento.
Um silêncio enorme caiu sobre a sala. Todas as conversas pararam. Os papéis não
restolhavam; os corpos não se mexiam. Era quase meia-noite e o clube estava cheio.
Todos os homens nas redondezas pareciam petrificados na cadeira dele, distendendo
vigorosamente os ouvidos para ouvirem a conversa que tinha lugar defronte para a
fogueira.
Com um suspiro, Arthur dobrou o jornal, pousou-o ao seu lado e bebeu um gole de
porto. Olhou para a janela onde a chuva puxada a vento batia furiosamente contra os
vidros.
- Terão muita sorte se fizerem dez milhas nesta tempestade - disse.
Como fora o caso com todas as palavras nessa noite, o comentário tornou-se parte
da lenda de S. MErryn... Tem o sangue tão frio que quando lhe disseram que a sua noiva
teríha fugido com outro homem, comentou somente acerca do clima húmido. Bennett
sorveu precipitadamente algum do seu porto e depois seguiu o olhar de Arthur na
direcção da janela.
- O jovem Burnley e a menina Juliana têm uma carruagem excelente, bem elevada e
um conjunto de garanhões frescos e fortes. - Limpou a garganta. - Duvido que o pai da
menina os consiga apanhar, mas um homem sozinho com um bom cavalo talvez consiga
alcançar o casal.
A expectativa fervia no silêncio cristalino. S. Merryn era indiscutivelmente apenas um
homem e não era segredo de que o seu estábulo albergava garanhões de prineira. Todos
esperavam para ver se o conde decidiria perseguir os fugitivos.
Arthur levantou-se calmamente e pegou na garrafa meio vazia de porto.
- Sabe Bennett, esta noite encontro-me dominado por uma forma extrema de tédio.
Penso que vou ver se está a acontecer algo de interessante na sala de jogo.
As sobrancelhas de Bennett dispararam em direcção à sua escassa linha de cabelo.
- Você nunca joga. Nem consigo enumerar as vezes que o ouvi alegar que é ilógico
apostar dinheiro em dados ou em cartas.
- Estou a sentir uma sorte invulgar, esta noite. - Arthur encaminhou-se para a sala
de jogo.
- O diabo vai roubá-lo - murmurou Bennett. Feições habitualmente acolhedoras,
enrugadas em alarme, levantou-se, emborcou o seu corpo de porto e caminhou à pressa
para alcançar o conde.
- Sabe - disse Arthur a meio da sala anormalmente silenciosa -, ocorreu-me que fiz
mal os cálculos quando pedi ao Graham a filha em casamento.
- A sério? - Lançou a Arthur um olhar preocupado, como se estivesse a verificar no
seu colega algum sinal de febre.
- Sim. Creio que na próxima vez que tentar encontrar uma esposa novamente, vou
tratar do projecto de uma forma mais racional, assim como faço com os meus
investimentos.
Bennett fez uma careta, ciente de que a audiência deles ainda estava a absorver
tudo o que Arthur dizia.
- Como diabo pretende aplicar a lógica ao negócio de encontrar uma esposa?
- Ocorre-me que as qualidades que requeiro de uma esposa são parecidas com
aquelas que se requer de uma companheira contratada.
Bennett salivou e tossiu com a boca cheia de porto.
- Uma companheira?
- Considere o assunto atentamente. - Houve um tinido quando Arthur encheu o copo
com mais vinho do porto. - A companheira ideal é uma senhora bem-nascida e bem-
educada, que possua uma reputação de primeira classe, nervos de aço e um jeito humilde
e modesto tanto nas suas acções como no vestir. Não seriam essas as especificações
exactas com que descreveríamos a esposa perfeita?
- Uma companheira contratada é, por definição, pobre e sozinha no mundo.
- Claro que é pobre e sem recursos. - Arthur encolheu os ombros. - Porque outra
razão se candidataria a um cargo tão humilde?
- A maioria dos cavalheiros preferiria uma esposa que lhes trouxesse fortuna e
algumas propriedades - apontou Bennett.
- Ah, mas aí é onde estou em vantagem, não é? - Arthur parou à porta da sala de
jogo e observou as mesas ocupadas. - Sem querer exagerar, sou demasiado rico e
enriqueço cada vez mais todos os dias. Não necessito de uma esposa rica.
Bennett parou ao lado dele e concedeu relutantemente a razão a Arthur.
- Verdade.
- Uma das grandes coisas acerca das companheiras contratadas é a sua condição de
pobreza extrema - continuou Arthur. - Torna-as verdadeiramente gratas por qualquer
emprego que se lhes ofereça. Está a ver.
- Hum. Não tinha pensado nisso. - Bennett engoliu mais vinho do porto e baixou
lentamente o copo. - Penso que começo a compreender o seu raciocínio.
- Ao contrário das senhoras abrigadas e românticas, cujas visões de amor têm sido
deformadas tristemente por Byron e pelos romances da Editora Minerva, as companheiras
contratadas devem, por necessidade, ser muito mais práticas. Aprenderam da pior
maneira o quão duro pode ser o mundo.
- Sem dúvida.
- Segue-se a isso, que a sua companheira típica não estaria inclinada para
comportamentos que lhe pudessem custar o posto. Um homem podia esperar, por
exemplo, que tal senhora nunca fugisse com outro homem pouco antes do seu
casamento.
- Talvez seja do porto, mas receio que o que diz faça perfeito sentido. - Bennett
franziu as sobrancelhas. - Mas como iríamos encontrar uma esposa com todas as
qualidades de uma companheira contratada?
- O Fleming desaponta-me. A resposta a essa pergunta é ofuscantemente óbvia. Se
quiséssemos escolher uma esposa tão perfeita, teríamos de nos dirigir a uma agência que
fornecesse companheiras. Entrevistaríamos uma variedade de candidatas e depois
faríamos a selecção.
Bennett pestanejou.
- Uma agência?
- Como é que um homem se poderia enganar? - anuiu Arthur para si mesmo. - Devia
ter pensado nesta ideia há alguns meses atrás. Pense nos problemas que teria evitado.
- Oh, bem...
- Se não se importa, penso que há uma vaga para um jogador na mesa do canto.
- O jogo é pesado - avisou Bennett. - Está mesmo certo... - Mas Arthur já não lhe
prestava atenção. Atravessou a sala e sentou-se na mesa.
Quando se levantou, algumas horas mais tarde, estava alguns milhares de libras
mais rico. O facto do conde ter quebrado a sua própria regra inflexível contra o jogo a
dinheiro e ter ganho uma soma grande nessa noite, adicionou outra faceta à lenda de S.
Merryn.
A primeira luz cinzenta e chuvosa do amanhecer começava a aparecer sobre os
telhados quando Arthur deixou o clube. Entrou na carruagem que o aguardava e deixou
que o conduzisse de regresso à grande e escura casa da rua Rain. Foi directo para a
cama.
Às nove e meia da manhã seguinte foi acordado pelo velho mordomo, que o
informara de que o pai da noiva havia encontrado a sua filha numa hospedaria, onde
partilhava o quarto com o seu belo jovem salvador.
Havia, claro, apenas uma coisa a fazer de forma a preservar a reputação da mesma.
O pai, escandalizado decretou que o casal se casasse de imediato por uma licença
especial.
Arthur agradeceu polidamente ao serviçal pelas notícias, virou-se e voltou a
adormecer.
Prólogo: Elianor
A notícia da morte do seu padrasto foi dada a Elenora Lodge pelos dois homens para
quem ele tinha perdido tudo num mau negócio de investimento. Bateram à sua porta às
três horas da tarde.
- Samuel Jones morreu de um ataque de apoplexia quando soube que o seu
esquema numa exploração mineira falhara - informou-a um dos londrinos sem qualquer
sinal de simpatia.
- Esta casa, o seu recheio e a terra que adjacentes daqui até ao riacho pertencem-
nos agora - anunciou o segundo credor, acenando um feixe de papéis que tinham a
assinatura de Samuel Jones em todas as páginas.
O primeiro homem olhou de soslaio para o pequeno anel de ouro que Elenora usava
no pequeno dedo.
- O falecido incluiu as suas jóias e todos os pertences pessoais, com a excepção das
suas roupas, na lista de bens ele colocou-as como colateral ao empréstimo.
O segundo credor ergueu um dedo para apontar um indíviduo grande que estava
ligeiramente atrás e para o lado.
- Este é o senhor Hitchins. Contratámo-lo na rua Bow para se certificar que a menina
não leva nada de valor desta casa.
O homem desajeitado de cabelo cinzento que acompanhava os credores de Samuel
Jones tinha uns olhos duros e perscrultadores. Trazia o distintivo dos cobradores da rua
Bow: um bastão.
Elenora encarou os três homens, ciente de que a sua empregada e governanta
pairavam ansiosamente no átrio atrás dela. Os seus pensamentos voaram para os rapazes
do estábulo e para os homens que tratavam do jardim e da quinta. Sabia perfeitamente
que não havia muito que pudesse fazer para protegê-los. A sua única esperança era fazê-
los pensar que seria uma tolice dispensá-los.
- Presumo que saibam que esta propriedade produz uma receita confortável - disse.
- Sim, menina Lodge. - O primeiro credor balançou os calcanhares, bem disposto. - O
Samuel Jones deixou isso bem claro.
O segundo homem notou os chãos imaculadamente limpos com um ar de
antecipação.
- É uma quinta muito bonita.
- Então também devem estar cientes que a única razão do valor desta propriedade é
porque as pessoas que trabalham a terra e mantém a casa são altamente especializadas.
Seria impossível substituí-las. Se dispensarem qualquer um deles, posso garantir-Lhes que
as colheitas falharão e que a casa perderá o seu valor em poucos meses.
Os dois credores franziram o cenho um para o outro. Nenhum deles tinha
obviamente considerado o problema dos serviçais e dos trabalhadores.
As sobrancelhas grisalhas do cobrador saltaram com o anúncio e uma estranha
expressão iluminou-lhe os olhos. Mas não disse nada. Porque diria? pensou ela. O negócio
dele não tinha nada a ver com aquilo.
Os dois credores chegam a um acordo silencioso. O primeiro clareou a garganta.
- O seu pessoal continuará - disse. - Já tratamos da venda da propriedade e o novo
dono deixou claro que quer tudo como estava.
- Com a excepção da menina Lodge, é claro. - O segundo credor fez um movimento
curto com a cabeça com um ar de sabedoria. - O novo dono não necessitará de si.
Alguma da tensão de Elenora desvaneceu. As pessoas que ali trabalhavam estavam
salvas. Podia focar a sua atenção para o seu próprio futuro.
- Presumo que me concederão algum tempo para fazer as malas - disse friamente.
Nenhum dos dois credores pareceu aperceber-se do desdém afiado insinuado no tom
de voz dela. Um deles tirou um relógio do bolso.
- Tem trinta minutos, menina Lodge. - Acenou para o homem grande da rua Bow. -
O senhor Hitchins acompanhá-la-a enquanto faz as malas, para garantir que a menina não
rouba a prata. Quando estiver pronta para partir, um dos camponeses levá-la-á à aldeia e
deixá-la-á na hospedaria. O que fizer a partir daí é consigo.
Elenora virou-se com o máximo de dignidade que conseguiu reunir e viu-se a braços
com a governanta que soluçava e a criada desesperada.
A sua própria mente estava a rodopiar na proximidade do desastre, mas sabia que
tinha de manter a compostura na frente daqueles dois. Ofereceu aos dois o que esperava
ser um sorriso firme.
- Acalmem-se - disse com vivacidade. - Como acabara de ouvir, vão conservar os
vossos postos e os homens também. - A governanta e a criada pararam de chorar e
guardaran os lenços. Ambas estavam de aliviadas.
- Obrigada, menina Elenora - sussurrou a governanta. Elenora bateu-lhe no ombro e
apressou-se na direcção das escadas. Tentou ignorar o cobrador de olhar perverso que ia
atrás dela.
Hitchins permaneceu na entrada do quarto de dormir dela, as mãos atrás das costas,
os pés juntos e observava enquanto ela arrastava um baú grande de debaixo da cama.
Imaginava o que diria ele se ela o informasse de que fora o único homem a entrar no seu
quarto de dormir.
- Este era o baú de viagem da minha avó - disse-lhe em vez disso, abrindo a tampa
para mostrar o interior vazio. - Era actriz. O seu nome artístico era Agatha Knight. Quando
casou com o meu avô, houve um rebuliço terrível na família. Um grande escândalo. Os
meus bisavôs ameaçaram deserdar o meu avô. Mas no fim foram obrigados a aceitar a
situação. Sabe como é com as famílias.
Hitchins grunhiu. Ou não tinha qualquer experiência com uma família ou considerava
a história pessoal dela muito aborrecida. Ela suspeitava da última.
Apesar da falta de conversa de Hitchins, ela continuou a tagarelar incessantemente
enquanto tirava as roupas do guarda-vestidos. O objectivo dela era distraí-lo. Não queria
que ficasse com curiosidade acerca do velho baú.
- A minha pobre mãe viveu mortificada pelo facto da mãe dela ter sido actriz. Passou
a vida inteira a tentar denegrir a notável carreira da minha avó.
Hitchins olhou para o relógio.
- Só lhe restam dez minutos.
- Obrigada, senhor Hitchins. - Ofereceu-lhe um sorriso acerado. - Está a ser muito
prestável.
O cobrador provou estar habituado ao sarcasmo. Sem dúvida experimentou-o
bastante na sua profissão. Elenora puxou uma gaveta e tirou uma pilha de linho muito
bem dobrado.
- Talvez queira afastar os olhos, senhor.
Hitchins fez a graça de não olhar para a combinação e para a camisa de dormir dela.
Mas quando pegou num pequeno relógio na mesinha de cabeceira, a sua boca fina
comprimiu-se.
- Não deve levar nada à excepção das suas roupas, menina Lodge - disse a abanar a
cabeça.
- Sim, claro. - Tudo por ocultar o relógio. Pena. Talvez valesse algumas libras num
negociante de penhores. - Como é que pude esquecer?
Bateu a tampa e fechou-o rapidamente, um arrepio de alívio percorreu-lhe a coluna.
O cobrador não demonstrou o mínimo de interesse no velho baú de teatro da sua avó.
- Disseram-me que sou parecida com ela, quando tinha a minha idade - disse num
tom conversador.
- Quem, menina Lodge?
- A minha avó, a actriz.
- Não me diga. - Hitchins encolheu os ombros. - Estais pronta?
- Sim. Creio que irá carregá-lo lá para baixo por mim?
- Sim, menina.
Hitchins ergueu o baú e carregou-o até ao átrio. Lá fora, colocou-o na carroça do
camponês que aguardava por ela.
Um dos credores atravessou-se no caminho de Elenora.
- Esse pequeno anel de ouro que tem na sua mão, se não se importa, menina Lodge
- disse bruscamente.
- Claro.
Com precisão, ela tirou o anel e deixou-o cair quando o credor ia pegar nele. O anel
de ouro caiu no chão.
- Maldição. - O pequeno homem irritante agachou-se para pegar no anel.
Enquanto ele estava aninhado num arco esquisito, Elenora passou por ele e desceu
as escadas. Agatha Knight enfatizara sempre a importância de uma boa saída de cena.
Hitchins, mostrando uma cordialidade inesperada, estendeu-Lhe a mão para ajudá-la
a subir para o duro banco de madeira da carroça da quinta.
- Obrigada, senhor - murmurou. Endireitou-se no assento com toda a graça e
compostura que empregaria ao entrar para um belo coche.
Um brilho de admiração apareceu nos olhos do cobrador.
- Boa sorte para si, menina Lodge. - Deu uma vista de olhos para a traseira da
carroça onde o largo baú se erguia. - Cheguei a mencionar que o meu tio viajou com uma
companhia de actores na sua juventude?
Ela gelou.
- Não, não mencionou.
- Tinha um baú muito semelhante ao seu. Dizia que era muito útil. Disse-me que se
certificava sempre de que tinha alguns bens essenciais arrumados para o caso de ser
obrigado a sair da cidade às pressas.
Ela engoliu.
- A minha avó também me disse o mesmo.
- Presumo que teve esse cuidado, menina Lodge?
- Sim, senhor Hitchins, tive.
- Vai correr tudo bem consigo, menina Lodge. Tem espírito. - Ele piscou-lhe o olho,
bateu levemente no chapéu e voltou para perto dos seus empregadores.
Elenora respirou fundo. Depois, com um estalo, abriu a sombrinha e segurou-o no
alto como se fosse um estandarte de batalha brilhante. A carroça começou a mover-se.
Não olhou para trás, para a casa onde nascera e vivera durante toda a vida.
A morte do seu padrasto não surgiu como uma grande surpresa e não sentiu
qualquer dor. Tinha dezasseis anos quando Samuel Jones desposara a sua mãe. Passara
muito pouco tempo no campo, preferia Londres e os seus esquemas intermináveis. Depois
da sua mãe falecer, havia três anos, raramente aparecia.
O estado das coisas servira bem a Elenora. Não queria saber de Jones e alegrava-se
por não o ter no caminho. Mas claro que isso foi antes de ter descoberto que o advogado
dele tinha conseguido transferir a herança da sua avó, que incluía a casa e a propriedade
circundante, para o controlo de Jones.
E agora tudo fora perdido.
Bem, não tudo, pensou com uma irónica satisfação. Os credores do Samuel Jones
não sabiam do alfinete de peito de ouro e pérolas e dos brincos a condizer da sua avó,
escondidos no fundo falso do velho baú.
Agatha Knight tinha-lhe dado as jóias pouco depois da sua mãe ter casado com
Samuel Jones. Agatha mantivera o presente em segredo e instruíra Elenora a esconder o
alfinete de peito e os brincos no baú e não falar a ninguém, sobre eles, nem mesmo à
mãe.
Era óbvio que a intuição de Agatha acerca de Jones fora sensata.
Nem estavam os credores ao corrente das vinte libras em notas bancárias que
também estavam no interior do baú. Tinha colocado o dinheiro de lado depois da venda
da colheita e enfiara as notas juntamente com as jóias quando viu que Jones ia investir
todos os cêntimos da colheita no seu esquema da exploração mineira.
O que estava feito, estava feito-, pensou. Devia focalizar a sua atenção no futuro. A
sua fortuna- tinha definitivamente dado uma reviravolta descendente mas, pelo menos,
não estava completamente só no mundo. Estava noiva de um cavalheiro refinado. Quando
Jeremy Clyde recebesse a notícia da sua terrível condição, sabia que correria para ela.
Então duvidava em como ele insistiria para que antecipassem a data do casamento.
Sim, de facto, pensou, num mês ou pouco mais aquele incidente terrível pertenceria
ao passado. Seria uma mulher casada com uma nova casa para organizar e administrar. A
perspectiva alegrou-a muito.
Se havia uma qualidade na qual ela se distinguia, era na de organizar e supervisionar
a miríade de tarefas requeridas para manter uma casa ordenada e uma quinta próspera.
Podia tratar de tudo desde a venda com lucro das colheitas ao cuidado das contas,
supervisionando as reparações das cabanas, contratação de serviçais e trabalhadores e
preparando remédios.
Seria uma excelente esposa para Jeremy, se dependesse apenas dela.
Jeremy Clyde galopou para o interior do pátio da hospedaria mais tarde nessa noite,
mesmo quando Elenora instruía a esposa do hospedeiro acerca da importância de se
certificar que os lençóis da cama dela eram lavados de fresco.
Quando olhou para fora da janela e viu quem chegara, Elenora interrompeu a
palestra e apressou-se a descer as escadas.
Encaminhou-se para os braços abertos de Jeremy.
- Minha querida. - Jeremy abraçou-a rapidamente e depois afastou-a com gentileza.
O seu belo rosto era atravessado com linhas de grande preocupação. - Vim mal soube da
notícia. Quão horrível para si. Os credores do seu padrasto ficaram com tudo? A casa?
Toda a propriedade?
Ela suspirou.
- Temo que sim.
- Isto foi um golpe terrível para si, minha querida. Nem sei o que dizer.
Mas parecia que Jeremy sabia. Na verdade, tinha algo muito importante a dizer.
Levou algum tempo a abordar o assunto, e prefaciou com a certeza de que lhe partia o
coração dizer-lhe, mas não tinha saída.
Tudo se conjugou de uma forma muito simples: Devido ao facto de ela ter sido
despojada da herança, era forçado a acabar com o noivado naquele momento.
Partiu pouco tempo depois, deixando-a tão depressa como quando tinha chegado.
Elenora subiu as escadas até ao seu pequeno quarto e pediu uma garrafa do vinho
mais barato ao hospedeiro. Quando foi entregue, trancou a porta, acendeu uma vela e
encheu um copo com o tónico. Ficou sentada durante muito tempo, a olhar para a noite, a
beber o vinho mau e a contemplar o futuro.
Estava, de facto, completamente sozinha no mundo. Era um pensamento estranho e
inquietante. A sua vida organizada, bem planeada tinha virado de cima para baixo.
Apenas algumas horas antes, o seu futuro parecia-lhe claro e brilhante. Jeremy
planeara mudar-se para a casa dela depois do casamento. Tivera uma visão reconfortante
dela própria como mulher dele numa relação para a vida; uma visão na qual ela geria a
casa, criava as crianças e continuava a supervisionar os assuntos da quinta. Agora aquele
sonho como uma bolha cintilante rebentara.
Mas no final dessa noite, quando quase todo o vinho da garrafa havia desaparecido,
apercebeu-se de que era livre de uma forma que nunca fora durante toda a vida. Pela
primeira vez, não tinha obrigações para com ninguém. Nem senhorios nem serviçais a
dependerem dela. Ninguém precisava dela. Não tinha raízes, nem laços, nem casa.
Não havia ninguém para se preocupar se ela iria tornar-se notável ou se iria arrastar
o nome Lodge por entre a sujidade de um grande escândalo, como a sua avó o fizera.
Tinha a oportunidade de planear uma nova rota sim.
Na luz pálida do novo amanhecer ela vislumbrou uma vista arrebatadora do futuro
muito diferente em que embarcaria.
Seria o futuro em que estaria livre das estreitas e rígidas estruturas que atavam as
pessoas com muita força quando viviam numa vila pequena; um futuro em que ela
controlaria a si própria e a propriedade e finanças.
Neste grande e novo futuro podia fazer coisas que nunca pudera na sua vida
anterior. Podia até permitirse à experimentar tacão dos singulares prazeres estimulantes
sobre os quais a avó lhe assegurara poderem ser encontrados nos braços do homem
certo.
Mas não teria que pagar o preço que a maioria das mulheres da sua época pagavam
para conhecer esses segredos, promete a si mesma. Não teria de casar. Afinal de contas,
não havia ninguém com que se preocupar se ela arruinasse o seu bom-nome.
Sim, este novo futuro seria glorioso.
Tudo o que precisava fazer era encontrar uma forma para pagar.
Capítulo um
O rosto horripilante e pálido do cadáver apareceu subitamente, materializando-se
nas profundezas das trevas impenetráveis como um guardião demoníaco enviado para
proteger segredos proibidos. A luz da lanterna derramava um clarão cruel sobre o rosto
severo e espantado.
O homem do pequeno barco gritou quando avistou o monstro, mas não havia
ninguém para ouvi-lo. O seu guincho de terror ecoou interminavelmente nas antigas
paredes de pedra que o enclausuravam num corredor de noite infinita. O sobressalto
afectou o seu equilíbrio. Cambaleou, fazendo com que o barco no qual viajava oscilasse
perigosamente na corrente de águas negras.
O seu coração bateu pesadamente. Ficou abruptamente encharcado com um suor
frio. Parou de respirar.
Agarrou-se instintivamente à longa vara que vinha a usar para propulsionar a
pequena embarcação pela corrente preguiçosa acima, e tentou acalmar-se.
Misericordiosamente, a extremidade da vara embateu solidamente no leito do rio,
aguentando o barco e equilibrando-o, enquanto as últimas reverberações do seu grito
medonho se desvaneciam.
O silêncio arrepiante abateu-se uma vez mais. Conseguiu respirar novamente. Olhou
para a cabeça um pouco mais larga do que a de qualquer humano, as mãos ainda a
tremer.
Era apenas mais uma das antigas estátuas clássicas que estavam largadas como
muitos corpos desmembrados que se espalhavam aqui e ali ao longo das margens do rio
subterrâneo. O elmo desta identificava-a como a figura de Minerva.
Embora não fosse a primeira estátua que encontrava no decurso da estranha
viagem, fora certamente a mais enervante. A coisa parecia-se muito com uma cabeça
cortada que havia sido atirada negligentemente para a lama ao lado do rio.
Estremeceu novamente, agarrou ainda mais a vara e empurrou com força. Ficara
aborrecido com a sua reacção ao aparecimento da figura. O que é que se estava a passar
com ele? Não podia permitir que os seus nervos o afectassem tão facilmente. Tinha um
destino a cumprir.
O pequeno barco prosseguiu o caminho, ultrapassando a cabeça de mármore.
A embarcação contornou outra curva no rio. A luz da lanterna apontou para uma das
passarelas arqueadas e baixas que atravessavam a corrente em vários pontos ao longo do
caminho. Eram passagens para lado nenhum, que acabavam nas paredes do túnel que os
enclausurava. O homem agachou-se ligeiramente para evitar bater com a cabeça.
Quando os resquícios de terror o abandonarem, a vaga de excitação regressou. Fora
tal e qual como o ser predecessor havia descrito no seu diário. O rio perdido existia
realmente, serpenteando debaixo da cidade, um curso de água secreto que havia sido
coberto e esquecido séculos antes.
O autor do diário concluíra que os romanos, que não eram do género de passar por
cima de um potencial projecto de engenharia, haviam sido os primeiros a cercar o rio para
que o pudessem conter e construir em cima dele. Podia ver a prova do trabalho de
alvenaria deles aqui e ali com a luz da lanterna. Noutros locais, o túnel subterrâneo,
através do qual o rio passava era abobadado no estilo medieval. As águas enclausuradas
funcionavam sem dúvida como um esgoto desconhecido da grande cidade acima dele,
transportando águas da chuva e os excessos dos esgotos do Tamisa. O cheiro era horrível.
Aquele local de noite eterna era tão silencioso que ele conseguia ouvir o deslizar dos ratos
e de outros vermes nas margens estreitas. Já não faltava muito, pensou. Se as direcções
do diário estavam correctas, em breve emborcaria numa cripta de pedra que marcava a
entrada do laboratório subterrâneo secreto do seu predecessor. Esperava com toda a sua
força encontrar lá a estranha máquina, onde fora deixada durante todos aqueles anos. A
pessoa que veio antes dele foi forçada a abandonar o projecto glorioso porque não fora
capaz de desvendar o último grande enigma do lapidário antigo. Mas o homem do barco
sabia que fora bem sucedido onde o seu antecessor falhara. Conseguira descodificar as
antigas instruções dos alquimistas. Estava certo de que conseguiria completar a tarefa.
Se tivesse a sorte de encontrar o aparelho, haveriam ainda muitas coisas a fazer
antes que fosse capaz de o colocar a trabalhar. Tinha ainda que encontrar as pedras
perdidas e livrar-se dos dois velhotes que sabiam os segredos do passado. Mas não previa
grandes dificuldades nesse intento.
A informação era a chave do sucesso e sabia como obter essa mercadoria. Entrou
para a alta sociedade, para encontrar contactos úteis nesse mundo. Mas também não
esqueceu de passar algum tempo nas casas de jogo de má fama e bordéis onde os
cavalheiros da cidade procuravam mais prazeres imorais. Descobriu que tais lugares são
verdadeiros oceanos de rumores e boatos.
Havia somente uma pessoa que sabia o suficiente para entender as suas intenções,
mas ela não seria um problema. A grande fraqueza dela era o seu amor por ele. Fora
sempre capaz de usar a afeição e confiança dela para a manipular.
Não, se encontrasse o aparelho nessa noite, nada podia impedi-lo de cumprir o seu
destino.
Tinham apelidado o homem que viera antes dele como um louco e recusaram-se a
compreender a sua genialidade. Mas desta vez o assunto revelar-se-ia de uma forma
muito diferente.
Quando acabasse a montagem do aparelho mortal e demonstrasse o seu enorme
poder destrutivo, a Inglaterra inteira, a Europa inteira seria obrigada a reconhecer o
segundo Newton no seu seio.