Table Of ContentTitus Burckhardt
ALQUIMIA
Ciência do cosmos,
ciência da alma
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Fons Vitae
Louisville Kentuchy
A partir da tradução inglesa de William Stoddart
Tradução (amadora, para uso particular) para a língua
portuguesa: Bruno Costa Magalhães
Ilustração da capa: o casamento do rei e da rainha, do sol e da
lua, sob a influência do mercúrio espiritual. Do Philosopher´s
Rosegarden´, de Arnaldus von Villanova, manuscrito na
Biblioteca Vadiana, St. Gallen
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FONS VITAE
ALCHEMY
Filho do escultor suíço Carl Burckhardt,
Titus Burckhardt nasceu em 1908. Sua juventude foi dedicada a
estudos da arte, história da arte, línguas orientais e a viagens pelo
norte da África e Oriente Próximo. Em 1942 ele tornou-se
diretor da Urs Graf-Verlag, uma editora especializada em edições
fac-símile de manuscritos antigos. Lá permaneceu até 1968.
Além de escrever livros em alemão, ele traduziu diversos e
importantes trabalhos do árabe. De seus trabalhos foram
publicados em língua inglesa, An Introduction to Sufi Doctrine,
Sacred Art in East and West, Moorish Culture in Spain, The Art
of Islam, Sienna, Fez City of Islam, Chartres e uma coleção de
seus ensaios Mirror of the Intellect. Os últimos três, assim como
Alquimia, foram traduzidos do alemão por William Stoddart.
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ALCHEMY
A editora Fons Vitae orgulha-se de
anunciar a publicação de uma nova edição de Alchemy, dedicada
a Madame Edith Burckhardt. A realização espiritual tem sido
frequentemente descrita na terminologia da tradição alquímica,
pela qual a natureza sombria que dirige o homem é reconduzida
ao ouro, seu estado original. Isso tem sido frequentemente
tratado como 'alquimia espiritual'. Nesse volume
maravilhosamente esclarecedor somos conduzidos a algumas
dessas metáforas que se têm mostrado úteis para estabelecer
determinadas atitudes na alma, entre elas: confiança e
resignação, responsabilidade e esperança. Por exemplo: há uma
clara pertinência simbólica na seguinte analogia: qualquer
substância, ou entidade, submetida à dissolução (isso pode dar-se
inclusive em um relacionamento) pode finalmente ser
recristalizada em uma nova forma. Em outras palavras, um novo
ser é resolidificado em uma forma mais alta e mais nobre.
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ÍNDICE
Introdução 6
1 A origem da alquimia ocidental 9
2 Natureza e linguagem da alquimia 19
3 A sabedoria hermética 28
4 Espírito e matéria 50
5 Planetas e metais 68
6 A rotação dos elementos 82
7 Da materia prima 87
8 Natureza universal 104
9 “A natureza pode dominar a natureza” 111
10 Enxofre, mercúrio e sal 127
11 Do “casamento químico” 138
12 A alquimia da oração 145
13 O Athanor 148
14 A história de Nicolas Flamel e de sua esposa 159
Perrenelle
15 Os estágios do trabalho 169
16 A Tábua de Esmeralda 180
17 Conclusão 186
Lista cronológica de autores herméticos e místicos 189
citados
Bibliografia de trabalhos clássicos 190
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INTRODUÇÃO
Desde o Século do Iluminismo até os dias
de hoje, a alquimia tem sido comumente considerada como a
precursora da química moderna. Por isso, quase todos os
estudiosos que se dedicam a suas obras não têm tido motivo para
ver nela algo além do que um estágio inicial de futuras
descobertas na área da química. Esse modo unilateral de tratar a
alquimia tem pelo menos o mérito de causar a distinção a ser
feita entre seu conjunto de documentos a respeito de
experiências artesanais tradicionais – na preparação de metais,
corantes e vidros – e os procedimentos aparentemente irracionais
que desempenham um papel na alquimia como tal. Como esse
conjunto de documentos a respeito das experiências artesanais é,
como se sabe, longe de ser insignificante, a obediência teimosa
dos alquimistas a fórmulas químicas sem significado do seu
magistério não pode deixar de parecer mais peculiares. As
pessoas rapidamente concluem que o insaciável desejo de
produzir ouro persistentemente motivou os homens a acreditar
em um grande número de receitas fantásticas, o que, a bem da
verdade, não são nada mais que uma aplicação popular e
supersticiosa da filosofia da natureza dos antigos; como se os
alquimistas tivessem tentado, em parte através de procedimentos
físicos, e em parte através de evocações mágicas, tomar posse
direta da materia prima aristotélica – o fundamento de todas as
coisas.
Nunca pareceu chamar a atenção de
ninguém como no mínimo improvável que uma 'arte' assim dessa
espécie poderia, apesar de suas loucuras e decepções, ter
implantado a si mesma por séculos a fio nas mais diversas
culturas no ocidente e no oriente. Pelo contrário, as pessoas estão
mais inclinadas a adotar o ponto de vista de que, há até um
século, toda a humanidade estava sonhando um sonho estúpido,
cujo despertar veio apenas com a nossa época. Como se a
faculdade espiritual-intelectual do homem – seu poder de
distinguir o real do irreal – estivesse igualmente sujeita a alguma
espécie de evolução biológica.
Esse modo de olhar para a alquimia é
contradito por um determinado princípio de unidade organizado
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pela própria alquimia: descrições do 'grande trabalho' agitam-se
a partir de várias culturas e vários séculos evidenciam, embora, é
bem verdade, haja uma multiplicidade de símbolos,
determinadas características invariáveis, que não são explicadas
empiricamente. Essencialmente, a alquimia indiana é idêntica à
ocidental; e a alquimia chinesa, embora arranjada em uma
atmosfera espiritual completamente diferente, pode lançar luzes
em ambas. Se a alquimia não fosse nada além de uma impostura,
a sua forma de expressão revelaria arbitrariedades e loucuras a
todo momento; mas, na verdade, ela parece possuir todos os
sinais de uma 'tradição' genuína, ou seja, uma orgânica e
consistente – embora não necessariamente sistemática – doutrina
e um claro corpo de regras estabelecidas e persistentemente
exposta por seus adeptos. Assim, a alquimia não é nem um
produto híbrido ou fruto do acaso da história humana. Pelo
contrário, representa uma profunda possibilidade para o espírito
e para a alma.
Essa também é a posição da auto-
denominada 'psicologia profunda', que pretende encontrar no
simbolismo alquímico uma confirmação de suas próprias teses a
respeito do 'inconsciente coletivo'1. De acordo com essa visão, o
alquimista, na sua busca sonhadora, traz à luz do dia
determinados conteúdos da sua própria alma que eram
desconhecidos, e assim, sem pretender conscientemente fazê-lo,
traz um tipo de reconciliação entre a sua consciência individual,
superficial e cotidiana, e o poder do 'inconsciente coletivo', ainda
não formado (mas em busca de formação) . Supôs-se que essa
reconciliação daria lugar a uma experiência de satisfação íntima,
que subjetivamente tem sede no magistério alquímico. Essa
visão, assim como as precedentes, é baseada na premissa de que
a primeira intenção dos alquimistas é fazer ouro. Considerava-se
que o alquimista se havia envolvido em alguma forma de
loucura, ou auto-engano, e em razão disso havia sido levado a
pensar e a agir como alguém que está sonhando. Essa explicação
possui alguma plausibilidade, desde que, de alguma forma, ela se
aproxima da verdade – apenas para se afastar dela
1Veja Herbert Silberer, Probleme der Mystik un thre Symbolik, Viena, 1914: C. G.
Jung, Psychologie und Alchemie, Zurich, 1944 y 1952, y Mysterium Conjunctionis,
Zurich, 1955 e 1957.
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imediatamente. É verdade que a realidade espiritual na qual o
alquimista trabalha é uma espécie de iniciação, é algo de que o
iniciante está mais ou menos inconsciente, é algo que está
escondido no fundo da alma. Apesar disso, esse 'segredo
profundo' não deve ser confundido com o caos do assim-
chamado 'inconsciente coletivo' – tanto quando esse conceito
algo elástico tenha algum significado preciso. A 'fonte de
juventude' dos alquimistas não surge em nenhum sábio a partir
de um substrato psíquico obscuro; ela flui através da mesma
fonte do espírito. Ela é escondida dos alquimistas no começo do
seu 'trabalho', não porque está abaixo mas sim porque está acima
do nível do processo de consciência mental.
A hipótese dos psicólogos se evapora na
medida em que se compreende que os alquimistas genuínos
nunca estiveram enredados em nenhum sonho de satisfação de
desejos de fazer ouro, nem perseguiam seu objetivo como
sonâmbulos, ou por meio de 'projeções' passivas do conteúdo
inconsciente de suas almas! Pelo contrário, eles seguiam um
método deliberado, cuja expressão metalúrgica – a arte de
transmutação de metais comuns em prata ou ouro –
reconhecidamente enganou diversos pesquisadores não-
iniciados, embora em si mesmo seja ele lógico e, ademais,
realmente profundo.
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CAPÍTULO 1
A ORIGEM DA ALQUIMIA OCIDENTAL
A alquimia existe desde, pelo menos,
metade do primeiro milênio antes de Cristo, e provavelmente
desde os tempos pré-históricos. À pergunta sobre como pôde a
alquimia existir por milênios em civilizações tão amplamente
separadas, como a do Oriente Próximo e a do Extremo Oriente, a
resposta da maioria dos historiadores possivelmente seria a de
que o homem tem repetidamente falhado na tentativa de ficar
rico rapidamente buscando fazer ouro e prata através de metais
comuns, até que os químicos empíricos do séc. XVIII finalmente
provaram que os metais não podem ser transformados um em
outro. Na realidade, entretanto, a verdade é muito diferente e,
pelo menos em parte, diametralmente oposta.
Ouro e prata já eram metais sagrados antes
mesmo de serem transformados em medida de todas as
transações comerciais. Eles são o reflexo terrestre do Sol e da
Lua, e assim também de todas as realidades do espírito e da alma
que estão relacionadas os pares celestiais. Até mesmo na Idade
Média o valor relativo desses dois metais nobres era determinado
pela relação entre os tempos de rotação desses dois corpos
celestes. Também as moedas antigas usualmente apresentavam
figuras ou sinais relacionados ao Sol ou à sua rotação anual. Para
o homem dos tempos pré-racionalistas, a relação entre os metais
nobres e os dois luminares era óbvia, e todo um mundo de
noções mecanicistas e os preconceitos acabaram necessariamente
obscurecendo a realidade auto-evidente dessa relação e fazendo
com que ela acabasse parecendo um acidente estético.
Não se deve confundir um símbolo com
uma mera alegoria, nem tentar ver nele a expressão de um
instinto coletivo algo nebuloso e irracional. O verdadeiro
simbolismo depende do fato de que as coisas, se se podem
modificar em razão de tempo, espaço, natureza material, e de
várias outras características limitativas, podem, por outro lado,
possuir e exibir a mesma qualidade essencial. Elas, assim,
aparecem como diversos reflexos, manifestações ou produções
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da mesma realidade – que, em si mesma, é independente de
tempo e de espaço. Assim, não é muito correto dizer que o ouro
representa o Sol, ou que a prata representa a Lua;
diferentemente, trata-se de que os dois metais nobres e os dois
luminares são símbolos das mesmas realidades cósmicas e
divinas2.
A magia do ouro, assim, vem da sua
natureza sagrada, ou perfeição qualitativa, e apenas
secundariamente do seu valor econômico. Em vista da natureza
sagrada do ouro e da prata, a obtenção desses dois metais só
poderia ser uma atividade sacerdotal, assim como a cunhagem de
moedas de ouro e prata era prerrogativa apenas de determinados
lugares sagrados. Em sintonia com isso está o fato de que os
procedimentos metalúrgicos relativos ao ouro e à prata, que
foram preservados em algumas assim-chamadas sociedades
primitivas dos tempos pré-históricos, revelam abundantes sinais
da sua origem sacerdotal3. Nas culturas 'arcaicas', ainda não
familiarizadas com a dicotomia do 'espiritual' e do 'prático', nas
quais tudo era visto em relação com a unidade íntima do homem
e do cosmos, a preparação dos minérios era sempre realizada
como um procedimento sagrado. Como regra, era prerrogativa da
casta sacerdotal, chamada a esta atividade por comando divino.
Onde não era assim, como no caso de determinadas tribos
africanas, que não possuíam suas próprias tradições
metalúrgicas, o fundidor ou ferreiro, como um intruso não
autorizado na sagrada ordem da natureza, caía na suspeição de
envolvimento com a magia negra4.
O que aos olhos do homem moderno
parece superstição – e o que, em parte, apenas sobreviveu como
tal – é na verdade um pressentimento de uma profunda relação
entre a ordem natural e a alma humana. O homem 'primitivo'
estava bem consciente de que a produção de minérios no 'ventre'
da terra e a sua violenta purificação pelo fogo era algo sinistro, e
cheio de possibilidades perigosas, mesmo que eles não tivessem
2Na obra etnológica de E. E. Evans-Pritchard, Nuer Religion, capítulo «The
Problems of Symbols», Oxford at the Clarendon Press, 1956, há uma excelente
explicação do que se pode entender por símbolo.
3Veja Mircea Eliade, Forgerons et Alchimistes, coleção «Horno sapiens», París,
1956.
4ibid.
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