Algumas considerações sobre as concepções de tempo nas sociedades africanas tradicionais

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by  R. Arthur Fitz

Algumas considerações sobre as concepções de tempo nas sociedades
africanas tradicionais
Ricardo Arthur Fitz*

Introdução
I. Logo no primeiro capítulo de seu livro O Tempo na História, ¹ G. J. Whitrow comenta
que o sentido de consciência que tempos do tempo é resultado de nossa experiência com o
mesmo e da reflexão que fazemos sobre essa experiência. Para ele “embora possa parecer
inerente à nossa experiência pessoal, a consciência de fenômenos temporais envolve uma
estrutura conceitual abstrata que só gradualmente aprendemos a construir.” ² Whitrow
prossegue demonstrando que essa consciência do tempo começa a se desenvolver já desde o
berço, passando por diversas etapas durante o processo do desenvolvimento da criança, e
somente na faixa dos 13 ou 14 anos, elas se dão conta de que o tempo do relógio é uma
convenção.
O autor, porém, adverte que essa forma de desenvolver o sentido do tempo aplica-se a
crianças das sociedades industriais ocidentais e não às de sociedades menos sofisticadas.
Whitrow exemplifica referindo-se a relatos de crianças de Uganda e de crianças aborígenes da
Austrália que tem dificuldade em reconhecer o horário pelo relógio. Conclui esse raciocínio
afirmando que a “explicação que se propôs é que suas vidas, diferentemente das nossas, não
são dominadas pelo tempo” ³ (grifo nosso).
Na sequência, Whitrow relata de forma sintética as concepções de tempo presentes
entre os índios Hopi do Arizona, entre os Azandi e os Nuer do Sudão, em particular as formas de
conceber os três estados temporais: passado, presente e futuro. Conclui afirmando que:
“não há (...) uma intuição única do tempo, comum a toda a humanidade. Não apenas
povos primitivos, mas civilizações relativamente avançadas atribuíram diferentes graus de
significação ao modo temporal de existência e valorizaram mais ou menos a perspectiva
temporal. Em suma, o tempo, em todos os seus aspectos, foi considerado de muitas maneiras
conceitualmente distintas” ⁴ (grifo nosso)
II. Em uma obra já relativamente antiga ― a primeira edição data de 1969 ― sobre
religiões africanas, o professor keniano John. S. Mbiti demonstra que, apesar da diversidade
cultural e religiosa, existem alguns padrões comuns a vários grupos sociais na África.
Particularmente significativo é o fato de serem os africanos em geral profundamente religiosos.
Em seu trabalho, denominado African Religions and Philosophy, ⁵ o autor desenvolve a tese de
que o conhecimento do conceito africano de tempo é condição básica para o entendimento da
religião e da filosofia africanas. Um dos capítulos mais significativos intitula-se The concept of
time as a key to the undestanding and interpretations of african religions and philosphy.
Este capítulo ― que é referência constante nesse texto ― trata da questão do tempo e
suas relações com a ontologia africana. Consequentemente, vai abordar as concepções de
tempo nas sociedades africanas tradicionais considerando as dimensões de passado, presente
e futuro, a contagem do tempo, suas relações com o espaço, com a vida humana, com a morte
e a imortalidade, etc., tornando-se um poderoso referencial sobre o tema sob um ponto de vista
africano.
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Os dois autores acima referidos, ainda que tratem do assunto de forma diferente,
insistem na necessidade de compreender-se que há uma multiplicidade de concepções do
tempo e que a ideia de tempo tradicionalmente dominante na sociedade ocidental não é a única
culturalmente existente. Outras formas de percebe-lo e concebe-lo foram sendo desenvolvidas
pelas sociedades humanas, acompanhando seus tipos de organização socioeconômica, seus
padrões culturais e religiosos.
Como aspectos relevantes das culturas nas quais se desenvolveram, as concepções de
tempo são reveladoras das diversas maneiras pelas quais as sociedades se relacionam com o
mundo e consigo mesmo. Se o conceito de futuro é importante no ocidente, é porque de alguma
forma o futuro é parte ativa nas consciências do homem ocidental. Este futuro não deve ser
entendido apenas como uma dimensão do tempo propriamente dito, mas sim como uma
dimensão existencial do homem ocidental. No mundo ocidental, há “futuros” que refletem essas
preocupações existenciais. O homem tem preocupações escatológicas, tem perspectivas
teleológicas, cria utopias (talvez “ucronias”), preocupa-se em acumular riqueza, projeta, planeja,
sonha, deseja. Enfim, o futuro é uma dimensão de sua própria existência historicamente
construída.
Outras sociedades ― e entre elas as sociedades africanas ― desenvolveram trajetórias
históricas distintas. Em muitas delas o conceito de futuro na forma pela qual desenvolveu-se no
mundo ocidental simplesmente não existe. A dimensão existencial do homem transita por
espaços radicalmente diferentes. São de outra ordem as suas relações com o mundo e são
também, portanto, de outra ordem as consciências que do mundo desenvolveram. Se o futuro
ou o passado tem pequena significação na forma pela qual essas sociedades organizam o
mundo, na mesma proporção os homens dessas sociedades vão organizar as consciências que
tem desse futuro e desse passado. É com esse pensamento que vamos procurar no decorrer
deste texto compreender um pouco das concepções de tempo desenvolvidas na África.
Os velhos manuais de introdução à História com frequência referem-se a duas formas
pelas quais o homem relaciona-se com o tempo, além daquele denominado “tempo histórico”:
referem-se a “tempo físico” e a um “tempo psicológico”.⁶
Atribui-se ao tempo físico, ou cronológico, uma ontologia própria. Passa a ter um caráter
mensurável ou, como imaginou Aristóteles, “o tempo é o movimento enquanto numerável”
(Physica, IV 11,5). O tempo físico se impõe como uma abstração que assume uma forma
homogênea e que é dividido em intervalos regulares para efeito de mensuração. É associado a
fenômenos materiais (estações do ano, dia/noite, fases da lua, o curso dos ponteiros de um
relógio, etc.), que passam a constituir-se não apenas no instrumento de verificação e contagem
desse tempo, mas também em sua “materialização”, isto é, o vínculo que se cria entre a
abstração e o mundo material. É mais ou menos nessa perspectiva que Whitrow, referindo-se a
sociedades africanas, afirma que “suas vidas, diferentemente das nossas, não são dominadas
pelo tempo”.
A outra forma de tempo, o psicológico, relaciona-se com a percepção que o homem tem
do tempo e com os interesses que nele projeta. Percebemos o tempo de formas diferentes,
conforme nos posicionamos diante dele. Assim, cinco minutos é um período de tempo
relativamente curto em relação à maior parte dos eventos e fenômenos do cotidiano. Se, porém,
pusermos nos a observar durante os mesmos cinco minutos o movimento dos ponteiros de um
relógio, a “sensação” que iremos ter é que tais cinco minutos se transformarão em “uma
eternidade”.
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O tempo psicológico é um tempo “sentido” e não um tempo imaginado, presumido ou
intelectualmente concebido. É um tempo “vivido”, que não é matematicamente controlável,
nem geometricamente explicável. Não obstante ser essencialmente objetivo, é um tempo
concreto, uma vez que se relaciona com as experiências concretas vividas pelos homens.
Essa “atitude psicológica” diante do tempo, na forma pela qual nos referimos, ocorre
em uma dimensão individual. Pode-se, com efeito, falar em outras dimensões de tempo. Assim,
em perspectivas mais amplas fala-se em um tempo histórico, em tempo econômico, tempo
biológico, cultural. Todas essas perspectivas, de certa forma, combinam as experiências de
tempo físico e psicológico, que, respeitando os limites de cada uma, abarcam a esfera das
sociedades ou grupos sociais como um todo. Em muitos casos, quando lidamos com
perspectivas de caráter sociocultural e, em particular, quando nos referimos às sociedades ditas
“primitivas”, essa concepções de tempo vem frequentemente associada ao pensamento
religioso.⁷
Nessas sociedades não ocorre uma separação muito nítida entre as esferas do mundo
religiosos e do secular, e a religião tem certas funções na sociedade na medida que:
“... proporciona una imagem organizada del universo y estabelece una relación más o
menos ordenada entre el hombre y su mundo circundante. La religión reduce así los temores y
ansiedades, y no solo da al hombre um mayor sentimento de seguridad en el presente incierto,
sino tambien la esperanza de un futuro tolerable.” ⁸
As atividades do cotidiano em tais sociedades vem constantemente associadas a
práticas religiosas. As semeaduras são precedidas ou acompanhadas de ritos que visam garantir
a obtenção de uma colheita farta. Se as colheitas forem satisfatórias, ritos são praticados para
que tornem a repetir-se ou, em caso contrário, vários ritos são feitos para que as colheitas
venham a tornar-se pródigas. As semeaduras e colheitas constituem-se apenas em um exemplo.
De fato, a maior parte das atividades desenvolvidas pelas pessoas transita entre as esferas do
religiosos e do secular, sem uma distinção clara entre ambas.
Mircea Eliade, ao lidar com o “homem religioso”, insere-o em uma dupla dimensão: a
do sagrado e a do profano. Essa dupla dimensão ocorre no espaço e no tempo. Nem espaço nem
tempo são, para o homem religioso, dimensões homogêneas e contínuas. Para ele,
...”o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de
espaço qualitativamente diferentes das outras. (...) há um espaço sagrado, e por consequência
“forte”, significativo ― e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem estrutura
nem consistência, em suam: amorfos. Mais ainda: para o homem religiosos esta não-
homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado ―
o único que é real, que existe realmente ‒ e tudo o resto, a extensão informe que o cerca.” ⁹
Da mesma forma, existem dois tempos: um tempo sagrado, forte, real, que é o tempo
vivido efetivamente pelo homem religioso, e um outro tempo, profano, que à semelhança do
espaço não-sagrado, não tem estrutura nem consistência.
O tempo religioso é visto por seus intervalos regulares, definidos pelos ritos e pelas
festas religiosas. Os mitos explicativos relativos às crenças religiosas do grupos são trazidos à
superfície através de festas e ritos, o que faz dos mitos algo que deve ser constantemente
reatualizado. Assim, o tempo do mito será um tempo reversível, onde o próprio mito é
constantemente reatualizado. Em suma: é um tempo cíclico. Se o tempo for profano, ele será
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irreversível; o sagrado é, ao contrário, por sua própria natureza, reversível. Aliás, é esta uma das
funções do rito: aproximar o tempo da natureza, dos ciclos, das estações ao tempo do mito. O
tempo mítico primordial é tornado presente, presentificado pela constante reatualização do
mito.¹⁰ Assim, o homem religioso
... “vive em duas espécies de tempo, a mais importante das quais, o Tempo sagrado, se
apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de
eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Este
comportamento para com o tempo basta para distinguir o homem religiosos do homem não-
religioso do homem não-religioso: o primeiro recusa-se a viver a unicamente no que, em termos
modernos, se chama o “presente histórico”, esforça-se pro tornar a unir-se a um tempo sagrado
que, de um certo de vista, pode ser homologado à ‘Eternidade’.” ¹¹
Tais relações entre o mundo profano e o mundo sagrado e entre o tempo profano e o
tempo sagrado podem ser muito úteis para procurar-se entender as concepções de tempo das
populações tradicionais da África. Apesar de haver uma enorme diversidade de culturas
tradicionais ― e uma não menos diversidade religiosa ―, os homens africanos apresentam em
comum o fato de serem profundamente religiosos, vivendo em um universo que lhes é
organizado segundo princípios religiosos. John S. Mbiti chama a atenção para o fato de que a
religião é para os africanos um fenômeno ontológico, que pertence à questão da existência do
ser. Viver é ser apanhado em um drama religioso. Afirma que incompreensão deste fato fez com
que nenhuma religião externa tenha penetrado profundamente na África do século XIX para cá.
O Islamismo, apesar de ter mais prontamente se adaptado às culturas locais, é professado
apenas superficialmente em áreas recentemente convertidas. O Cristianismo praticado é de um
tipo muito superficial. ¹²
Consequentemente, esse homem religiosos vive também um tempo religioso, numa
dimensão muitas vezes difícil de ser compreendida pelo homem ocidental. Mbiti se refere ao
fato de que europeus e americanos que visitam a África escandalizam-se muitas vezes ao ver
africanos sentados sem fazer nada. A seus olhos, tais povos são preguiçosos, lentos. O autor
comenta que tais julgamentos são resultado do desconhecimento do que o tempo significa para
os africanos. Nas culturas africanas, não se está “perdendo tempo”, mas esperando pelo tempo,
ou em processo de “produção” de tempo. O homem não é escravo do tempo, mas ao contrário,
produz seu tempo como quer ou como necessita. ¹³
Examinando as organizações econômicas de sociedades “primitivas”, Marshall Sahlins¹⁴
afirma que, ao contrário do que se imagina geralmente no Ocidente, nas sociedades primitivas
não há uma pobreza instituída, calcada em uma “economia de subsistência”. O que ocorre de
fato é a existência de uma “sociedade opulenta primitiva”. Sahlins considera opulenta aquela
sociedade em que se satisfaçam com facilidade todas as necessidades materiais de seus
componentes. Tais necessidades podem ser satisfeitas ou produzindo-se muito, ou desejando-
se pouco. Necessidades baseadas em uma economia de mercado tornam-se infinitas, gerando
assim uma “pobreza” permanente, já que jamais serão satisfeitas integralmente nem as
necessidades de todos os integrantes do grupo. A pobreza é, portanto, um conceito intrínseco
às sociedades de mercado. Nas sociedades primitivas, o que se vê é o contrário. Exemplificando
os Bosquímanos do sul da África, o autor mostra que as necessidades básicas dos indivíduos são
satisfeitas e, inclusive, o grupo rejeita os eventuais excedentes produzidos, pois esses se
tornariam um problema para a organização tradicional da sociedade. Assim, segundo Sahlins,
derruba-se o mito de que tais economias (as sociedades de caçadores são seu objeto principal
de estudo) sejam substancialmente ineficientes.
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Evidentemente isso vai também atuar sobre as dimensões de tempo dessas sociedades.
Sahlins demonstra que a quantidade de tempo de trabalho necessária nas sociedades primitivas
para resolver o problema do abastecimento de acordo com as necessidades é bem menor que
nas sociedades “civilizadas” (refere-se a médias que oscilam de 3 a 6 horas diárias), já que não
há necessidade de produção de excedentes.
Uma vez que o parâmetro que serve de referencial para o trabalho fundamenta-se na
relação necessidade/produção e não na relação tempo/produção, a necessidade de administrar
eficientemente o tempo para dele retirar a maior produtividade possível, não faz sentido. As
tarefas do cotidiano para a produção dos bens necessários ao grupo vinculam-se aos fenômenos
cíclicos ‒ ou não ‒ da natureza. É neste tempo vivenciado que as atividades do cotidiano vão
organizar-se. Nada significaria a divisão do tempo em horas, ou a organização das tarefas em
horas de trabalho. A abstração temporal, no sentido de um tempo físico matematicamente
organizado, como nos moldes ocidentais, não encontra espaço em tais culturas.
Portanto, as relações que o homem estabelece com o tempo e a consciência que dele
tem não se centram exclusivamente na organização do mesmo para efeitos de administrar a
produção ou as relações do cotidiano. O tempo passa a ter uma outra significação, vai além
dessa “secularização”.
Se o “homem religioso” de que fala Eliade vive em um mundo em que o sagrado e o
profano coexistem, o tempo, da mesma forma, passa a transitar entre o sagrado e o profano.
Não há razão que justifique despender-se gigantescas energias em um tempo profano, abstraído
da realidade vivida, orientado para a organização das atividades produtivas da sociedade. Essas
serão levadas a efeito com consonância com os ciclos determinados pelos fenômenos naturais:
a semeadura deve ocorrer de acordo com a época das chuvas ou da seca, a colheita, quando o
grão estiver maduro. Não há como acelerar ou retardar estes fenômenos; há que se adequar a
eles. Da mesma forma, não há razão para inseri-los em um calendário matemático.
Nas sociedades africanas tradicionais, portanto, o tempo não é reduzível a princípios
matemáticos. O tempo físico dos manuais de história tem um espaço muito reduzido nas
culturas africanas tradicionais. As durações são curtas e não é possível pensar-se em termos de
longa duração. Os eventos estão sempre relacionados a um passado e a um futuro próximos do
tempo atual. Quando há um algum distanciamento entre um evento passado e as pessoas, este
confunde-se com o mito e o tempo, agora um tempo mítico, passa a ser de uma outra categoria:
a do tempo dos ancestrais. Isso provoca o que Eliade denominava de “horror à história”,
característico do homem religioso.
Nas sociedades africanas tradicionais, pode-se, sem sérios problemas, transitar de um
tempo religioso para um profano, ou o contrário. Ocorre mesmo uma determinada esfera em
que ambos se confundem. O tempo do cotidiano, em suas dimensões de presente, passado e
futuro, está relacionado com a vivência das pessoas. O passado ‒ recente ‒ é alguma coisa que
está presente no tempo atual e, se esse passado for muito distante, será remetido para o campo
do mito. É no passado que os mitos estão depositados e, da mesma forma, o passado é o tempo
dos mitos. Raphael Madu, ¹⁵ estudando os mitos dos Igbo da Nigéria, lembra que estes nunca
são colocados no tempo presente. Sempre referem-se ao tempo dos grandes ancestrais e são
“tradicionais”, ou seja, retornam a uma “era mitopoética”, narrativa das origens do homem. O
comportamento sociocultural dos Igbo passa a ser orientado por um modelo mítico-
paradigmático, discursivo acerca de eventos acontecidos em um tempo indefinido. “Através
desse modelo paradigmático, a humanidade como um todo é abarcada em uma história ideal.”¹⁶
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Por outro lado, o futuro se manifesta, não como um tempo possível, imaginado, mas
com um tempo potencial, conhecido: são as lunações e as estações do ano que se repetem, é a
mulher grávida que vai dar à luz, é a plantação que vai produzir seus frutos, o gado que irá prover
o grupo de carne e leite. Há um futuro fixo, invariável, repetitivo, como as lunações ou a
sucessão do dia e da noite. É também um futuro previsível, porém sujeito a vicissitudes: a criança
poderá nascer morta, uma seca poderá comprometer a safra. É justamente para controlar as
regularidades que os princípios religiosos mesclam-se tão profundamente com o tempo. Ambos,
porém, são formas de futuro entendidas como tempo potencial, como uma decorrência
necessária do momento presente.
Para os povos africanos em sua vida tradicional, o tempo é simplesmente a composição
de eventos que ocorreram, que estão correndo e que irão imediatamente ocorrer. O que não
aconteceu ou não teve probabilidade de acontecer, entra em uma categoria de não-tempo. O
que vai acontecer, o futuro, só existe enquanto tempo potencial e assume posição na categoria
do inevitável. A dimensão de futuro só existe assim como uma extensão direta do presente, uma
espécie de momento em que ocorrem sequencias, “fechamentos” ou culminâncias dos eventos
do presente. Não há espaço, portanto, para projetos, utopias, ou teleologias de qualquer ordem
que, por não estarem ligados a eventos do presente, pertencem à categoria do não-tempo.
A consequência mais significativa disso é que o tempo passa a ser visto como um
fenômenos bidimensional, com um longo – no sentido mítico ‒ passado, um presente e
virtualmente sem futuro. John S. Mbiti comenta a esse respeito:
“O conceito linear de tempo no pensamento ocidental, com um indefinido passado,
presente e infinito futuro, é praticamente estranho ao pensamento africano. O futuro está
virtualmente ausente porque eventos que nele jazem não tiveram lugar, eles não se realizaram
e não podem, portanto, constituir tempo. (...) O que está ocorrendo agora, sem dúvida revela o
futuro, mas uma vez que um evento tem lugar, ele não está mais no futuro, mas no presente e
no passado. Tempo atual é, portanto, o que é presente e o que é passado. Ele se move antes
‘para trás’ do que ‘para frente’; e as pessoas dirigem suas mentes não para coisas do futuro, mas
principalmente no que teve lugar.” ¹⁷
Nas sociedades africanas tradicionais, o tempo deve ser experimentado, tornado real.
As pessoas experimentam o tempo, em parte em sua vida individual e em parte através da
vivencia da sociedade, circunstância na qual é possível retroceder várias gerações. O futuro não
pode ser experimentado e consequentemente, a não ser que se caia no ritmo dos fenômenos
naturais, ele não faz sentido.
John S. Mbiti, estudando as línguas Kikamba e Gikuyu, faladas no Quênia, identificou
nove tempos verbais. Três deles referem-se a futuro, porém nenhum deles refere-se a um futuro
distante como se concebe na tradição ocidental. O maior distanciamento do presente situa-se a
alguma coisa como seis meses adiante, evidentemente vinculado aos fenômenos naturais ou
aos eventos do presente. Excepcionalmente esse futuro pode estender-se por um período de
até dois anos (veja-se a tabela dos tempos verbais colhidos por Mbiti, reproduzida em anexo).
O futuro não é mais do que uma curta extensão do presente e é um futuro já vivenciado. Fica
evidente o pequeno ou não-ativo interesse por eventos localizados num futuro distante.
Há uma “presentificação” do tempo: o passado ou está vinculado aos seres e eventos
do presente, ou está “mitificado”; o futuro ou não existe, ou está “presentificado”, isto é, nada
mais é do que a culminância concreta e sabida dos eventos que estão dando-se no presente. A
não-abstração do tempo resulta na não-existência de calendários numéricos. Em seu lugar,
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existem o que se poderia chamar de calendários de fenômenos, nos quais os eventos ou
fenômenos que constituem o tempo são considerados ou contados em sua relação uns com os
outros. Por exemplo, a futura mãe conta os meses lunares de sua gravidez, o viajante conta os
dias necessários para ir de uma região à outra.

Analise do conceito africano de tempo de acordo com os tempos verbais entre os
Akamba e Gikuyu do Quênia, segundo John S. Mbiti.
Tempo Verbal Kikamba Gikuyu Inglês Tempo
(Português) Aproximado
1. Futuro Ningauka Ningoka I will come Cerca de 2 a 6
distante ou (eu virei) meses a contar
futuro remoto de agora
2. Futuro Ninguka Ninguka I will come Dentro de muito
imediato ou (eu virei) pouco tempo
próximo
3. Futuro Ngooka Ningoka I will come Presumivelmente
indefinido ou (ngauka) (eu virei) dentro de muito
futuro pouco tempo,
indefinido após eventos
próximo. determinados.
4. Presente ou Ninukite Nindiroka I am coming No processo de
presente (eu estou vindo) ação, agora.
progressivo
5. Passado Ninauka Nindoka I came [I have Na última hora,
imediato ou (ninooka) just came] mais ou menos.
imediato (Eu vim [eu
perfeito acabei de
chegar])
6. Passado de Ninukie Ninjukire I came Do momento
hoje (eu vim) atual, há mais ou
menos duas
horas.
7. Passado Nininaukie Nindirokire I came Ontem
recente ou (nininookie) (eu vim)
passado de
ontem.
8. Passado Ninookie Nindirokire I came Ontem
distante ou (ninuakie) (eu vim)
passado
remoto.
9. Tene (tempo) Tene ninookie Nindokire tene I came Tempo não
não (Nookie tene) (eu vim) especificado no
especificado. passado.

A contagem do tempo levam sempre em consideração o fenômeno. Para o homem
ocidental, os referenciais de tempo se dão sobre o tempo-relógio (ou tempo-calendário),
matematicamente considerado, sem vinculação necessária com os fenômenos ou eventos do
cotidiano. Se alguém tiver um compromisso às seis horas da manhã, não vem ao caso se o sol já
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nasceu ou não, o compromisso é firmado sobre a hora-relógio. Nas sociedades africanas
tradicionais, quando alguém marcar um encontro ao nascer do sol, não importa se o sol vai
nascer às 5 ou às 7 horas, o encontro vai se dar ao nascer do sol. O tempo é significante em
relação ao evento e não o momento matemático.
É em relação aos eventos que se organiza o tempo para efeitos práticos do cotidiano. A
título de exemplificação, reproduzimos de John Mbiti a organização do tempo em termos de
calendários de fenômenos entre os Ankore de Uganda. Para eles o gado é a base da
sobrevivência, é o “coração do povo” ¹⁸ e o dia vai ser organizado e contado em referência aos
eventos pertinentes ao gado. Os horários apontados são o equivalente aproximado na hora-
relógio:
• 6 a.m. é a hora da ordenha (akasheshe).
• Meio-dia é a hora de o gado e as pessoas descansarem (bari omubirago), desde que,
deopis de ordenhar o gado, o vaqueiro conduza-o para a pastagem e por volta do meio-dia,
quando o sol está quente, o vaqueiro e gado precisem de algum descanso.
• 1 p. m. é a hora de buscar água (baaza abamaziba), das nascentes ou dos rios, antes
do gado ser levado para beber (ele vai poluí-los ou transformar-se num obstáculo para buscar e
carregar a água).
• 2 p.m. é a hora do gago beber (amasyo niganyawa), e os guardadores levam-no aos
locais de água.
• 3 p.m. é a hora em que o gado deixa o local das águas e volta para pastar (amasyo
nigakuka)
• 4 p.m. é a hora em que o gado volta para casa (ente niitaba), sendo guiado pelos
guardados.
• 5 p.m. é a hora em que o gado entra em seus locais de dormir (ente zaataba).
• 6 ou 7 p.m. é a hora de ordenha novamente, antes do gado dormir, e isso realmente
encerra o dia.
Os meses são reconhecidos como meses lunares, porque os eventos da lua mudam.
Ainda assim, eles vão ser nomeados de acordo com os eventos mais importantes para o grupo
social, ou as condições meteorológicas preponderantes. Por exemplo, há o mês quente, o mês
das primeiras chuvas, o mês de roçar, o mês da colheita do feijão, mês da caça, etc. não vem ao
caso se o mês da caça dura 25 ou 35 dias; o evento da caça é muito mais significativo que a
duração matemática do mês.
Entre o povo Latuka do Sudão, também os eventos governam a contagem aproximada
do mês:
• Outubro é chamado de “O sol”, porque o sol é muito quente nesta época.
• Dezembro é chamado “dê água ao seu tio”, porque é um período de escassez de água
e as pessoas tornam-se, com frequência, sedentas.
• Fevereiro é chamado “deixem que cavem”, porque nessa época as pessoas começam
a preparar seus campos para o plantio enquanto a chuva está para retornar.
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• Maio é conhecido como “grão na espiga”, por ser tempo de os grãos começarem a
carregar.
• Junho é chamado “boca suja”, porque as crianças podem agora começar a comer os
resultados da colheita, ficando com as bocas sujas.
• Julho é conhecido como “grama secando”, porque a chuva parou, o solo torna-se seco
e a grama começa a murchar.
• Agosto é o “grão doce”, quando as pessoas colhem e comem o sweet grain.
• Setembro é conhecido como “Árvore de salsicha”, pois nessa época a Sausage Tree
(kigalia africana) começa a dar frutos, os quais se parecem com uma enorme salsicha, daí o
nome.
Da mesma forma, o ano é visto nas sociedades tradicionais africanas por seus eventos,
que tem uma significação muito maior que as eventuais datas ou durações definidas nos
calendários. Assim, entre as comunidades de agricultores, as atividades sazonais vão delimitar
o início e o fim do ano agrícola; em regiões próximas ao equador, reconhece-se duas estações:
a das chuvas e a da seca; em outras regiões há quatro estações bem definidas. O número efetivo
de dias que compõe o ano é irrelevante. Poderiam ser 330, poderiam ser 380. O ano pode diferir
em seu comprimento matemático, o que evidentemente torna inviável e sem sentido um
calendário numérico. O fundamental nas sociedades tradicionais africanas é que o ciclo se
complete e que se cumpram os eventos nele esperados.
Conclusão
Uma das questões prementes hoje, em particular no campo da filosofia e das ciências
humanas, é a preocupação com a questão da alteridade. O reconhecimento do outro, por parte
do homem ocidental, como alguém semelhante a si tem sido tarefa historicamente penosa. O
que se viu, basicamente, no decorrer da história foi a avaliação do outro a partir de critérios e
parâmetros do avaliador europeu ocidental. A avaliação tem sido, portanto, de caráter
etnocêntrico e, por isso mesmo, eurocêntrica.
Esse etnocentrismo gerou discriminações com relação a formas de culturas diferentes
daquelas presentes na Europa e, por extensão do que se convencionou chamar “mundo
ocidental”. Isso serviu constantemente de pretexto, quando algum tipo de enfrentamento
cultural se fazia, para atitudes que vão desde o puro e simples extermínio de populações inteiras,
até as tentativas de “integrá-las à civilização”. É muito significativo, por exemplo, a questão da
descoberta do continente americano e sua inserção no mundo econômico e cultural europeu.
O século XVI assistiu ao que Tzvetan Todorov chamou de “maior genocídio da história
humana”¹⁹. Populações inteiras foram dizimadas. A esse propósito, Darcy Ribeiro calcula que
somente a população de índios tupi no litoral brasileiro à época de Cabral estaria em torno de
um milhão de pessoas, isto é, aproximadamente a população de Portugal na época, ²⁰ dos quais
restam algumas centenas de sobreviventes. A “integração à civilização” ocorre basicamente
mediante a destruição da cultura original do grupo social e seu enquadramento a novos padrões
econômicos, sociais e culturais. Frequentemente tal processo vem acompanhado, ou mesmo
precedido de um trabalho de conversão religiosa. Nesses casos, não ocorre apenas a
substituição de um modelo religiosos por outro. As bases sociais e culturais sobre as quais são
construídas as sociedades indígenas tradicionais vão ser substituídas por outras, justificadas em
novos valores ético-religiosos. Tudo isso leva à desagregação dos grupos sociais atingidos.²¹
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Ao continente africano foi reservado um papel um pouco diferente: os africanos ―
melhor dizendo, uma parte deles ― passaram a constituir-se, num primeiro momento, na
grande massa de mão-de-obra escrava deslocada para a América. Num segundo momento, já
com o desenvolvimento pleno das relações de produção capitalistas, a África e suas populações
vão ser submetidas a uma brutal espoliação econômica, através do que se convencionou chamar
de “neocolonialismo”.
Uma das formas mais eficientes de dominação é a dominação cultural. Também aqui o
pretexto para a dominação encontra justificativas em uma pretensa inferioridade cultural ―
quiçá racial ― de uns e superioridade de outros. A imposição de um modelo cultural sobre outro
pré-existente significa, na maior parte das vezes, uma descaracterização ― quando não uma
destruição ― da cultura original. O não-reconhecimento do outro, ou o reconhecimento
figurativo do outro como alguém diferente, exótico, ou quem sabe, inferior, implica no não
reconhecimento da cultura do outro como legítima. De outro lado, o seu reconhecimento
significa, antes de mais nada, legitimar sua cultura em todos os seus aspectos ― inclusive no
que se refere ao tempo ― assim como o reconhecimento e legitimação de sua cultura significa
o reconhecimento do outro.
Também no mundo ocidental o tempo é um elemento constituinte da cultura. O tempo
secularizado predominante no Ocidente foi sendo historicamente forjado no contexto do
desenvolvimento da própria sociedade ocidental. Esse tempo ocidental ganhou dimensões
mundiais à medida que a sociedade ocidental tornou-se também ela mundial. À medida que seu
modo de produção tornou-se hegemônico, ele se tornou instrumental necessário para colocar
esse modo de produção em funcionamento de maneira eficiente. Dessa forma, o tempo
ocidental secularizado tornou-se também hegemônico. Essa hegemonia elevou a concepção
ocidental de tempo à categoria de universal. O tempo ocidental passou a ser visto como o tempo
universal e, portanto, o único verdadeiro, acompanhando seu modo de produção que, aos olhos
do homem ocidental, já se havia tornado, também ele, universal.
Onde esses padrões não se tornaram ainda hegemônicos, as sociedades primevas
mantem suas culturas tradicionais, em bases sociais especificas, com seus modelos religiosos e
temporais característicos. Tais modelos são, com frequência, contrastantes com os modelos
ocidentais. É nesse contexto que o homem ocidental olha para o homem africano tradicional e
vê nele alguém diferente, incapaz de organizar-se produtivamente para o trabalho, de
desenvolver suas potencialidades e ingressar no sadio mundo mercantil. Por isso, como se
referia Mbiti, europeus e americanos ficam escandalizados com a “indolência” dos africanos.
Trata-se, em última instancia, da negação histórica do outro, e de seu modo de vida tradicional.
A dimensão de temporalidade ocidental não é aplicável às sociedades africanas
tradicionais simplesmente porque foi constituída em moldes historicamente diferentes,
segundo parâmetros distintos. A compreensão disso é condição necessária para a superação da
negação do outros e a aceitação de sua cultura como verdadeira.

CIÊNCIAS & LETRAS • N° 21 e 22/1998 • p. 271-286