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Pierre Clastres
A SOCIEDADE
CONTRA O ESTADO
(INVESTIGAÇÕES DE ANTROPOLOGIA POLITICA)
AFRONTAMENTO/PORTO
1979
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CAPITULO I
JH~-7
COPllRNICO E OS SELVAGENS
Direitos de tradução reservados para Portugal por Publicações Escorpião/
/Edições Afrontamento, Porto, 1975.
«On di8oit à Socrates que qnelqu'on ne s'estóit
aucuuement amendé en son voyage: Je croy
Dien, di.t-U, il s'estoit emportê avecqnea soy.»
Montai.gne
', r- -'.. I/ .
'-" •' - ; '- ·..1 Poder-nos-emos interrogar seriamente a propósito do
poder? Um fragmento de PaTia além do bem e do maJ começa
da seguinte maneira: «Se é verdade que ao longo de todos
os tempos, desde que os homens existem, existiram tam
Tradução de Bernardo Frey
bém rebanhos humanos (confrarias sexuais, comunidades, tri
bos, nações, Igrejas, Estados) e sempre um grande número
Revisão de Miguel Serras Pereira
de homens obedecendo a um pequeno número de chefes; se,
Capa de João B. por conseguinte, a obediência é o que melhor e durante
mais tempo foi exercido e cultivado entre os homens, estamos
no direito de presumir que, por princípio, cada um de nós
possui em si a necessidade inata de obedecer, como uma espécie
de consciência jormal que ordena: 'Tu farás isto, sem dis
cutir; tu abster-te-ás daquilo, sem discutir'; resumindo, é de
um 'tu farás' que se trata». Pouco preocupado, como habitual
EDIÇOES AFRONTAMENTO mente, com o verdadeiro e o falso dos seus sarcasmos, Nietzs
R. Costa Cabral, 859 - 4200 Porto che, à sua maneira, não obstante isola e circunscreve exacta-
mente um campo de reflexão que, dantes confinado unicamente nascimento e a sua razão de ser na natureza e não na cultura.
aos horizontes do pensamento especulativo, se vê desde há dois Ora, no termo de uma discussão paciente e sábia dos traba
decénios, aproximadamente, ligado aos esforços de uma inves lhos mais recentes de biologia animal, discussão nada acadé
tigação de vocação a bem dizer científica. Referimo-nos ao mica, de resto, se bem que o seu resultado fosse previsível,
espaço do poTitico, no centro do qual o poder coloca a sua a resposta é clara: «0 exame critico dos conhecimentos adqui
questão: temas novos, em antropologia social, estudos cada ridos sobre os fenómenos sociais entre os animais e nomea
vez mais numerosos. Que a etnologia não se tenha interessado, damente sobre o seu processo de autoregulação social eviden
senão tardiamente, pela dimensão política das sociedades arcai ciou-mos a ausência de toda a forma, mesmo embrionária, de
cas-seu objecto preferencial, no entanto-eis o que de resto poder político ... » (pág. 222). Ultrapassado este problema, e
não é estranho, tentaremos demonstrá-lo, à própria proble perante a certe21a de nada mais ter a investigar nesse campo,
mática do poder: índice sobretudo dum modo espontâneo, ima o autor volta-se para as ciências da cultura e da história, na
nente à nossa cultura e portanto ÍOI:'temente tradicional, de intenção de interrogar-na secção que rpelo volume é a mais
apreender as relações políticas tais como se ligam em culturas importante da sua investigação-«as formas 'arcaicas' do
outras. Mas o atraso ultrapassa"se, as lacunas preenchem-se; poder político nas sociedades humanas». As reflexões que se
há doravante textos e descrições suficientes pare que possa seguem encontraram a sua inspiração mais particularmente
mos falar de uma antropologia politica, medir os seus resul na leitura destas páginas consagradas, por assim dizer, ao
tados e reflectir sobre a natureza do poder, sobre a sua poder entre os Selvagens.
origem, sobre as transformações que a história lhe impõe O leque das sociedades consideradas é impressionante;
consoante os tipos de sociedade em que ele se exerce. Projecto suficientemente amplo, em todo o caso, para afastar o leitor
ambicioso, mas tarefa necessária que a obra considerável de exigente de qualquer eventual duvida quanto ao carácter exaus
J. W. Lapierre Ensaio BObre o fundamento do poder político tivo da aferição, já que ,a análise Se exerce sobre exemplos
leva a cabo'· Trata-se de um trabalho tanto mais digno de recolhidos em África, nas três Américas, na Oceania, Sibé
interesse, quanto neste livro se encontra antes do mais reunida ria, etc. Resumindo,· uma recolha quase completa, pela sua
e explorada uma massa de informações respeitantes não ape variedade geográfica e tipológica, daquilo que o mundo «pri
nas às sociedades humanas, mas também às espécies animais mitivo» podia oferecer de diferenças relativamente ao hori
sociais, e em seguida porque o autor é um filósofo cuja refle zonte não arcaico, sobre cujo fundo se desenha a figura do
xão se exerce sobre os dados fornecidos pelas disciplinas poder político na nossa cultura. Isto é, o alcance do debate
modernas que são a «sociologia animal» e a etnologia. e a seriedade que requer o exame da sua condução;
Estamos portanto perante a questão do poder politico Facilmente se imagina que estas de21enas · de sociedades
e, muito legitimamente, J. W. Lapierre interroga-se antes do «arcaicas» nada possuem em comum para além precisamente
mais sobre se este facto humano corresponde a uma neces da determinação do seu arcaísmo, determinação negativa,
sidade vital, se ele se desenvolve a partir de uma raiz bioló como o indica Lapierre, estabelecida pela ausência ·de escrita
gica, se, noutros termos, o poder encontra o seu local de e pela economia dita de subsistência. As sociedades arcaicas
podem ·portanto diferir profundamente entre si, nénhuina se
assemelha de facto a outra e estamos longe da débil repetição
1 J. W. Laplerre, Essal sur Ie fondement du pouvoir politique,
Publicação da Faculdade de A'ix-en-Provence, 1968. que tornaria iguais todos os Selvagens. :m portanto necessário
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introduzir um minimo de ordem nesta multiplicidade a fim qualquer projecto taxinómico desta espécie, à medida que se
de permitir a comparação entre as unidades que a compõem, aprofunda o conhecimento das sociedades arcaicas e que, em
e esta é a razão que leva Lapierre, aceitando quase inteira consequência, melhor se desvendam as suas diferenças. Por
mente as clássicas classificações propostas pela antropologia conseguinte, tanto num caso oomo noutro, na hipótese da des
anglo-saxónica relativamente a Ãfrica, a imaginar cinco gran continuidade entre não-poder e •poder ou na da continuidade,
des tipos «partindo das sociedades a:reaicas nas quais o poder parece correcto pensar que nenhuma classificação das socie
político se encontra mais desenvolvido até chegar finalmente dades empiricas nos pode esclarecer nem sobre a natureza do
às que apresentam... uma quase ausência deste, e até um poder politico nem sobre as circunstâncias do seu advento,
vazio absoluto de poder propriamente político» (pág. 229). e que o enigma persiste no seu mistério.
Ordenam-se portanto as culturas primitivas numa tipologia «0 poder realiza-se numa relação social característica:
fundada, em suma, sobre a maior ou menor «quantidade» de /I comando-obediência» (pág. 44). Daqui resulta que as socie
poder político que cada uma de entre elas oferece à observa dades onde não se observa esta relação essencial são socie
ção, podendo esta quantidade de poder tender para o zero, dades sem poder. Voltaremos a este assunto. O que convém
« ... certos grupos humanos, em condições de vida determina desde já revelar é o tradicionalismo desta concepção que
das que lhes permitiam subsistir em pequenas 'sociedades exprime com bastante fidelidade o espirita da investiga
fechadas', puderam passar Aem poder político» (pág. 525). ção etnológica: a certeza nunca posta em dúvida de que o
Reflictamos na própria natureza desta classificação. Qual poder político existe unicamente numa relação que se resolve,
é o seu critério? Como se define aquilo que, presente em maior em definitivo, numa relação de coerção. De modo que, sobre
ou menor quantidade, permite assinalar tal lugar a tal socie este ponto, entre Nietzsche, Max Weber (o poder do ·Estado
dade? Ou, noutros termos, que se entende, mesmo que a título como monopólio do uso legitimo da violência) ou a etnologia
provisório, por poder ·político? A questão é, admitir-se-á, de contemporânea, o parentesco é mais intimo do que parece, e as
importância já que, no intervalo que se supõe separar sociedades linguagens diferem pouco, pois partem dum mesmo principio:
sem .poder e sociedades com poder, se deveriam evidenciar simul a verdade e o ser do poder consistem na violência e não se
taneamente a essênda do poder e o seu fundamento. Ora, não pode pensar no poder sem o seu predicado, a violência. Talvez
se fica com a impressão, seguindo as análises, minuciosas no seja efectivamente assim, e nesse caso a etnologia não é rigo
entanto, de Lapierre, de assistir a uma ruptura, a uma des rosamente culpada de aceitar sem discussão aquilo que o Oci
continuidade, a um salto radical que, arrancando os grupos dente pensa desde sempre. Mas, precisamente, é necessário que
humanos à sua estagnação prepolítica, os transformaria em nos asseguremos disso e verifiquemos sobre o próprio terreno
sociedade civil. Deveremos portanto concluir que entre as -o das sociedades arcaicas-se quando não existe coerção
sociedades de signo + e as sociedades de signo - a passagem oú violência deixamos de poder falar de poder.
é progressiva, continua e da ordem da quantidade? Se assim Que acontece com os tndios da América? Srube-se que à
é, a própria possibilidade de classificar as sociedades desapa excepção das altas culturas do México, da América Central
rece, pois entre os dois extremos-sociedades com Estado e dos Andes, todas as sociedades indias são arcaicas: ignoram
e sociedades sem poder-figurará a infinidade de graus a escrita e «subsistem», do ponto de vista económico. Por outro
intermediários, definindo no limite cada sociedade particular lado, todas, ou quase todas, são dirigidas por lfderes, chefes
como uma classe do sistema. Este é, de resto, o destino de e, característica decisiva digna de reter a atenção, nenhum
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destes caciques possui «poder». Encontramo-nos portanto con tica de cinco sociedades globais que eram as cinco tribos iro
frontados com um enorme conjunto de sociedades onde os quesas. A questão do poder entre os Iroqueses deve portanto
detentores do que noutro lado se designaria por poder estão pôr-se, não ao nível da Liga, mas ao nível das tribos: e a esse
de facto sem poder, onde o político se determina como campo nível, não haja dúvidas, os sachems não estavam certamente
fora de toda a coerção e de toda a. violência, fora de toda a mais investidos de poder do que o resto dos chefes índios. As
subordinação hierárquica, onde, numa palavra, não se pro. tipologias britânicas das sociedades africanas são talvez per
cessa nenhuma relação de comando-obediência. li: esta a grande tinentes para o continente negro; não podem servir de modelo
diferença do mundo índio e o que permite falar das tribos para a América dado que, reincidamos neste ponto, entre o
americanas como dum universo homogéneo, apesar da extrema sachem iroquês e o líder do roais pequeno bando nómada não
variedade de culturas que o habitam. Portanto e de acordo existe diferença de natureza. Indiquemos por outro lado que
com o ·critério retido por Lapierre, o Novo Mundo cairia se a confederação iroquesa suscita, a justo título, o interesse
na sua quase-totalidade no campo prepolítico, quer dizer, no dos especialistas. houve noutros lados ensaios, menos notá
último grupo da sua tipologia, aquele que engloba as socie veis porque descontínuos, de ligas tribais, nomeadamente entre
dades onde «o poder político tende para o zero». No entanto os Tupi-Guarani do Brasil e do Paraguai.
nada se passa assim, já que exemplos americanos pontuam As observações acima expostas quereriam problematizar
a classificação em causa, que sociedades índias são incluídas a forma tradicional da problemática do poder: não é evidente
em todos os tipos e que poucas de entre elas pertencem justa para nós que coerção e subordinação constituam a essência do
mente ao último tipo que as deveria normalmente agrupar podeT político em toda a parte e em todo o sewpre. De tal
a todas. ·Existe aí ·algum mal-entendido, ·porque das duas uma: \\ modo que se abre uma alternativa: ou o conceito clássico de
ou bem que encontramos em certas sociedades chefias não poder é adequado à realidade que ele pensa, e nesse caso é
impotentes, quer dizer, chefes que, dando uma ordem, a vêem necessário apontar-lhe o não-poder, justamente onde foi assi
executada, ou então isso não existe. Ora a experiência directa nalado; ou ele não é adequado, e então é necessário abando
no terreno, as monografias dos investigadores e as mais anti ná-lo ou transformá-lo. Mas convém que antes disso nos inter
gas crónicas não permitem dúvida alguma a este respeito: roguemos sobre a atitude mental que permite elaborar uma
*"
se alguma coisa há de totalmente estranho a um Indio, é a tal concepção. E, nessa perspectiva, o próprio vocabulário da
ideia de dar uma ordem ou de ter que obedecer, salvo em etnologia é susceptível de nos indicar o caminho.
circunstâncias muito especiais como durante uma expedição Consideremos antes do mais os critérios do arcaísmo:
guerreira. Como figuram neste caso os lroqueses no primeiro ausência de escrita. e economia de subsistência. Nada há a
tipo, ao lado das realezas africanas? Poder-se-á assemelhar o dizer sobre o primeiro, pois trata-se de um dado :!)actual: uma
Grande Conselho da Liga dos Iroqueses a «um Estado ainda ru sociedade ou conhece a escrita ou não a conhece. A pertinên
dimentar mas já nitidamente constituído»? Pois que se «O polí cia do segundo parece pelo contrário menos segura. Coro efeito,
tico respeita ao funcionamento da soci€dade global» (pág. 41) o que é «subsistir»? 1!: viver na fragilidade permanente do
e se «exercer um poder, é decidir pele grupo inteiro» (pág. 44). equilibrio entre as necessidades alimentares e os meios de as
então não se pode afirmar que os cinquenta sachems que com satisfazer. Uma sociedade de economia de subsistência é aquela
punham o Grande Conselho iroquês formavam um Estado: que consegue aUmentar os seus membros apenas o estrita
a Liga não era uma sociedade global, mas uma aliança polí- mente necessário, e que se encontra assim à mercê do mínimo
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campo ideológico do Ocidente moderno, e não ao arrsenal con
acidental natural (seca, inundação, etc.), já que a diminuição
ceptual duma ciência. E é paradoxal ver a própria etnologia
dos recursos se traduziria mecanicamente pela impossibilidade
de alimentar toda a gente. Ou, noutros termos, as sociedades ser vítima duma mistificação tão grosseira, e tanto maiS peri
gosa quanto contribuiu para orientar a estratégia das nações
arcaicas não vivem, mas sobrevivem, a sua existência é um
industriais relativamente ao mundo dito subdesenvolvido.
combate interminável contra a fome, pois são incW[J(12es de
Mas, objectar-se-á, tudo isto tem pouco a ver com o pro
produzir excedentes, por carência tecnológica e também cul
blema do poder político. Pelo contrário: a mesma perspectiva
tural. Não há nada mais obstinado do que esta visão da
que leva a falar dos primitivos como «homens vivendo difi
sociedade primitiva, e ao mesmo tempo nada mais falso. Se se
cilmente em economia de subsistência, em estado de subdesen
pôde falar recentemente dos grupos de caçadores-colectores
volvimento técnico ... » (pág. 319) determina também o sentido
paleolíticos como «primeims sociedades de a:bundância» ', o que
e o valor do discurso familiar sobre o político e o poder. Fami
não será dos agricultores «neolíticos»'? Não nos podemos alO'lJ.
gar aqui sobre esta questão de importância decisiva para a liar pelo facto de, desde sempre, o encontro entre o Ocidente
e os Selvagens ter sido a ocasião de repetir sobre eles o mesmo
etnologia. Indiquemos somente que um grande número destas
discuvso. Testemunha-o, por exemplo, o que diziam os pri
sociedades arcaicas «com economia de subsistência», na Amé
meiros descobridores europeus do Brasil a propósito dos 1ndios
rica do Sul por exemplo, produziam uma quantidade de exce
dente alimentar por vezes equivalente ao necessário ao con Tupinamba: «Gentes sem fé, sem lei, sem rei». Os seus mburu
sumo anual da comunidade: produção portanto capaz de satis vicha, os seus chefes, não gozavam com efeito de nenhum
«poder». Que poderia haver de mais estranho para os que che
fazer duplamente as necessidades, ou de alimentar uma popu
gavam de sociedades onde a autoridade culminava nas monar
lação duas vezes mais importante. Isto não significa eviden
quias absolutas de França, de Portugal ou de Espanha? Vinham
temente que as sociedades arcaicas não são arcaicas· trata-se
. '
encontrar bárbaros que não viviam em sociedade policiada. A
srmplesmente de mostrar a fatuidade «Científica» do conceito
inquietação e a irritação de se encontrarem na presença do anor
de economia de subsistência, que traduz muito mais as atitudes
mal desapareciam pelo contrário no México de Moctezuma ou
e hábitos dos observadores ocidentais face às sociedades pri
no Peru dos Incas. Aí os conquistadores respiravam uma atmos
mitivas do que a realidade económica sobre a qual repousam
fera habitual, para eles a mais tónica das atmosferas a das
estas culturas. Não foi, em todo o caso, pelo facto de a
hierarquias, da coerção, numa palavra, do verdadeiro' poder.
sua economia ser de subsistência que as sociedades arcai
Ora, observa-se uma admirável continuidade entre este dis
cas «Sobreviveram em estado de extremo subdesenvolvimento
curso sem variações, ingénuo, poder-se-ia dizer selvagem, e o
até aos nossos dias» (pág. 225). Parece-nos mesmo que, nestes
dos sábios ou investigadores modernos. O juízo é o mesmo
termos, é antes o proletariado europeu do século XIX, iletrado
se for enunciado em termos mais delicados, e encontramos sob
e subalimentado, que seria conveniente qualificar como arcaico.
Na realidade, a ideia de economia de subsistência remonta ao a pena de Lapierre numerosas expressões conformes à obser
\>ação mais corrente do poder político nas sociedades primi
tivas. Exemplos: «OS 'chefe,:/ Trebriamdeses au Tikopianos
: M. Shalins, «A primeira sociedade de abundância:., Les Temps não detêm um poder social e um poder económico muito desen
Modernes, Outubro 1968.
volvidos, contrastando com um poder propriamente político
1 Sobre os problemas que uma definição 'do neolítico coloc-a, ver
muito embrionário?. (pág. 284). Ou ainda: «Nenhum povo
o último capitulo.
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nilótico se pôde elevar ao nivel das organizações políticas cen para as identificar e finalmente as abolir. Existe uma espéc1e
tralizadas dos grandes reinos bantos» (pág, 365). E ainda: de ritual etnológico que consiste em denunciar vigorosamente
«A sociedade lobi não pôde dar-se uma organização política> os riscos desta atitude: a intenção é louvável, mas nem sempre
(pág. 435, nota 134) '· Que significa de facto este tipo de voca impede os etnólogos de a ela sucumbirem por sua vez, mais
bulário onde os termos embrionário, nascente, pouco desen ou menos tranquilamente, mais ou menos distraidamente. Evi
volvido, aparecem muito frequentemente 7 Não se trata eviden dentemente que o etnocentrismo é, como muito justamente o
temente da nossa parte de declarar guerra a um autor, pois sublinha Lapierre, a coisa mais ·bem partilhada do mundo:
sa;bemos bem quanto esta linguagem é própria da antropo toda a cultura é, poder-se-ia dizer por definição, etnocentrista
logia. Tentamos aceder ao que se poderia chamar a arqueolo na sua relação narcísica consigo própria. Não obstante, uma
gia desta linguagem e do saber que crê através dela dar-se a diferença considerável separa o etnocentrismo ocidental do
ver, e perguntamo-nos: que é que esta linguagem diz exacta seu homólogo «primitivo»; o selvagem de qualquer tribo índia
mente e a partir de que lugar diz aquilo que diz? ou australiana considera a sua cultura superior a todas as
Constatamos que a ideia de economia de subsistência outras sem se preocupar em assegurar sobre elas um discurso
queria ser um julgamento de facto, mas envolve ao mesmo tempo científico, enquanto que a etnologia pretende situar-se duma
um julgamento de valor sobre as sociedades assim qualifica só vez no elemento da universalidade sem se dar conta de que
das: avaliação que destrói imediatamente a objectividade que permanece em muitos pontos solidamente instalada na sua
para si reclama. O mesmo preconceito-pois, em última aná particularidade, e que o seu pseudo-discurso científico se
lise, é de um preconceito que se trata-perverte e vota ao degrada rapidamente• em ideologia. (Isto reduz à sua justa
falhanço o esforço para julgar o poder político nessas mes medida algumas afirmações afectadas sobre a civilização oci
mas sociedades. Sabendo que o modelo ao qual é relacionado dental como único lugar cap3)z de produzir etnólogos). Decidir
e a unidade que o mede são wntecipadamente constituídos pela que certas culturas são desprovidas de poder político porque
ideia do poder tal como foi desenvolvida e formada pela civi nada oferecem de comparável ao que a nossa apresenta não é
lização ocidental. A nossa cultm"a, desde as suas origens, pensa uma proposta científica: antes denota, no fim de contas,
o poder político em termos de relações hierarquizadas e autori uma pobreza evidente do conceito.
tárias de comando-obediência. Qualquer forma, real ou pos O etnocentrismo não é portanto um ilusório entrave
sível, de poder é por conseguinte redutível a esta relação pri à reflexão e as suas implicações são de maiores consequências
vilegiada que exprime a priori a sua essência. Se a redução não do que poderíamos supor. Não pode deixar subsistir as dife
é possível, é porque nos encontramos aquem do político: a renças cada uma por si na sua neutralidade, mas quer com
ausência da relação comando-obediência acarreta ipsofacto a preendê-las como diferenças determinadas a partir do que lhe
ausência do poder politico. Existem não apenas socieda é mais familiar, o 'POder tal como é experimentado e pensado
des sem Estado, como ainda sociedades sem poder. De~de na cultura do Ocidente. O evolucionismo, velho compadre do
há muito reconhecemos o adversário sempre desperto, o obs etnocentrismo, não está longe. A diligência a este nivel é dupla:
táculo constantemente presente na investigJação antropológica, primeiramente recensear as sociedades segundo a maior ou
o etnocentrismo que mediatiza todo o olhar sobre as diferenças menor proximidade a que o seu tipo de poder está relativa
mente ao nosso; afirmar em seguida explicitamente (como
' O sublinhado é nosso. ontem) ou implicitamente (como hoje) llli!a continuidade entre
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todas estas diversas formas de poder. Por ter, a seguir a Lowie,
é considerado como o melhor, como se chega mesmo ao ponto
abandonado wmo ingénuas as doutrinas de Morgan ou Engels,
de atribuir às sociedades arcaicas uma certeza análoga, Por
a antropologia já não pode (pelo menos no que ~ "refere
que dizer que «nenhum povo nilótico se pode elevar ao nível da
à questão do político) exprimir-se em termos 180C!i0logwos.
Mas como, por outro lado, a tentação de continuar a pensar organização política centralizada dos grandes reinos bantos»
segundo o mesmo esquema é demasiado forte, existe o recurso ou que «a sociedade lobi não conseguiu dar-se uma organi
a metáforas bwZógicas. Donde o vocabulário anteriormoote zação política», é num certo sentido afirmar acerca destes
salientado: embrionário, nascente, pouco desenvolvido, etc. Há povos o esforço para se darem um verdadeiro poder político.
aproximadamente meio-século, o modelo perfeito que todas a~ Que sentido teria dizer que os índios Sioux não conseguiram rea
culturas, através da história, tentavam realizar, era o adulto lizar o que haviam atingido os .A:ztecas, ou que os Bororo foram
ocidental são de espírito e letrado (se possível doutor em incapazes de se elevar ao nível político dos Incas? A arqueo
ciências físicas). Isto pensa-se ainda hoje, sem dúvida, mas logia da linguagem antropológica conduzir-nos-ia, e sem que
já não se diz. No entanto, se pelo seu lado a. linguagem fosse necessário perfurar um solo na realidade bem pouco
mudou, o discurso permaneceu o mesmo. O que e um poder espesso, a pôr a nu um parentesco secreto entre a ideologia
embrionário senão o que poderia e deveria desen'!Xilver-se e a etnologia, votada esta, se não estivermos atentos, a mer
até atingir o estado adulto? E qual é esse estado adulto gulhar no mesmo pântano lamacento da sociologia e da psi
de que se descobrem, aqui e ali, as premissas embrioná cologia. Será possível uma antropologia política? Pod<:r-se-ia
rias? 11:, bem entendido, o poder a que o etnólogo está acos duvidar, se fossemos a considerar a maré sempre crescente da
tumado' o da cultura que produz etnólogos, o Ocidente. E porqu.e literatura consagrada ao problema do poder. O que sobretudo
se encontram sempre votados à desgraça estes fetos culturais
chama a atenção é constatar nela a dissolução gradual do
do poder? Qual a razão por que a.~ 'Sociedades que os con político que, não se descobrindo onde se esperava justamente
cebem abortam regularmente? Esta fraqueza congénita é facil
encontrá-lo, se crê assinalar em todos os níveis das socie
mente explicável pelo seu arcaísmo, pelo seu subdesenvolvi
dades arcaicas. Tudo cabe ootão no campo do político, todos
mento, pelo simples facto de elas ,não serem o Ocidente. As
os sub-grupos e unidades (grupos de parentesco, classes de
sociedades arcaicas seriam assim axolotles • sociológicos inca
idade, unidades de produção, etc.) que constituem uma socie
pazes de aceder, sem ajuda exterior, ao estado adulto norm~l.
dade são investidos, a propósito de tudo e de nada, duma signi
o biologismo da expressão não é evidentemente mais
ficação política, a qual acaba por recobrir todo o espaço do
que a máscrura furtiva da velha convicção ocidental, de facto
social e perder, em consequência, a sua especificidade. Pois
mui·tas vezes partilbada pela etnologia, ou pelo menos por
que, se o político existe em todo o lado, ele não existe em parte
numerosos dos seus praticantes, de que a história possui um
alguma. 11: caso de resto para nos perguntarmos se não é pre
sentido único, que as sociedades sem poder são a inlagem do
cisamente isso que se procura dizer: que as sociedades arcaicas
que já não somos e que a nossa cultura é para elas a imagem
não são verdadeiras sociedades, já que não são sociedades polí
do que é necessário ser. E não apenas o nosso sistema de poder
ticas. Resumindo, seríamos levados a decretar que o poder
político não é ,pensável, uma vez que é aniquilado no próprio
* Ax.olotles: formas larvares de batrãquios urod.elos anfibios do
acto de o captar. Nada impede no entanto de supor que a etno
género ambllstomo, orlginê.rlos do MélOioo (NdT).
logia não se coloca senão os problemas que pode resolver. 11:
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•
preciso então que nos perguntemos: em que condições o poder sociedades sem poder: como se pode então falar de a política?
político é pensável? Se a antropologia faz finca-pé é porque Ou bem que o político está presente, mesmo nestas sociedades
é
se encontra no fundo num impasse, torna-se portanto neces ou e~tão a e:'~r:ssão de controle soci·al imediato apolítico
sário tomar outra via. O caminho pelo qual ela se extravia é em _si contraditoria e de qualquer maneira tautológica: que nos
o mais fácil, o que podemos seguir cegamente, o que indica o ensma ela, com efeito, relativamente às sociedades às quais a
nosso próprio mundo cultural, não pelo facto de se desdobrar aplicamos? E que rigor possui a explicação de Lowie, por
no universal, mas antes por se revelar tão particular como ex~mplo, segundo a qual, nas sociedades sem poder político,
qualquer outro. A condição é renunciar asceticamente, dire exi~te «Um poder não oficial da opinião pública»? Se tudo é
mos nós, à concepção exótica do mundo arcaico, concepção politico, nada o é, dizíamos; mas se em algum lado existe
0
que, em última análise, determina massivamente o discurso apolítico, é porque num outro lugar o político se manifesta!
pretensamente científico sobre este mundo. A condição será Em última análise, uma sociedade apolítica não teria sequer
0
neste caso a decisão de tomar finalmente a sério o homem das seu lugar na esfera da cultura, mas deveria estar colocada a
sociedades primitivas, sob todos os seus aspectos e em todas par das sociedades animais regidas pelas relações naturais de
as suas dimensões: também sob o ângulo do político, mesmo dominação-submissão.
e sobretudo se este se realiza nas sociedades arcaicas como . Ta!vez se ~eja confrontado aí com a barreira que se põe
negação daquilo que é no mundo ocidental. 1l: preciso aceitar a. reflexao clá~s~ea sobre o poder: é impossível pensar a polí
0
a ideia de que negação não significa o nada, e que quando tico sem o politico, o controle social imediato sem a mediação
o espelho não nos devolve a nossa imagem isso não prova que n~a palavra a sociedade sem o poder. O obstáculo epistemo~
nada haja para olhar. Mais simplesmente: da mesma maneira ~ogico que a «politicologia» não soube até aqui ultrapassar,
que a nossa cultura acabou por reconhecer que o homem pri Ju~gamos detectá-lo no etnocentrismo cultural do pensamento
mitivo não é uma criança, mas, individualmente, um adulto, ocidental, ele próprio ligado a uma visão exótica das socie
poderá também ela progredir um pouco se lhe reconhecer uma dades não ocidentais. Se nos obstinarmos em reflectir sobre
equivalente maturidade colectiva. o poder partindo da certeza de que a sua forma verdadeira se
Os povos sem escrita não são portanto menos adultos encont11a realizada na nossa cultura, se persistirmos em fazer
que as sociedades letradas. A sua história é tão profunda desta forma o molde de todas as outras, inclusivamente
0
como a nossa e, a menos que seja por racismo, não há razão seu telos, então seguramente renunciaremos à coerência dos
alguma para os julgar incapazes de reflectir na sua própria disc~rs~s e deixarmos que a ciência ·se degrade em opinião.
experiência e de inventar para os seus problemas as soluções A Ciencia do homem não é talvez necessária. Mas a partir do
a.propriadas. Eis porque não poderíamos contentar-nos em momento em que a queremoR constituir e articular o discurso
enunciar que nas sociedades onde não se observa a relação de etnológico, então convém mostrar um pouco de respeito pelas
comando-obediência (quer dizer, nas sociedades sem poder culturas areaicas, e interrogarmo-nos sobre a validade de cate
político), a vida do grupo como projecto colectivo se mantém gorias como as de economia de subsistência ou de controle
por meio do controle social imedia!to, imediatamente qualifi social imediato. A não ser efectuado este trabalho crítico, expo
cado de apolítico. Que se entende ao certo por isto? Qual é o mo-~os desde l~go ·a deixar escapar o real sociológico, e em
referente pOlítico que permite, por oposição, falar de apolí seguida a. desviarmo-nos da própria descrição empírica: che
tico? Mas, justamente, não há político visto tratar-se de gamos assim, segundo as sociedades ou segundo a fantasia dos
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