A questão da ideologia

138 Pages·2002·54.912 MB·Portuguese

by  Leandro Konder

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Sumário
Copyright O troo2 by Leândro Konder
João Baptistâ da Costa Àguìar
Bolcheviquesem l,eningrado,julho de l9l 7
Fotógr.fo desconhecido.
Ì,!ciano Marchiori
wladimirÀraú.io
Revìsão
habel JorgeCury
Cãr'ìcn S- dâ (bstâ
Dadns hÍdrìÍrnnnn d. cJiìlo$tãÕ íí PubÌi.11.lo ({I) Agradecimentos ..
(ciúrÌr lt*i[nr d0 LnJò, \P, Bmsil) Introdução .-........
A,ìuLíio dr ideoloÈir / lÌrDdro l(.nd{ - tiio Prú[ì ] iìnpiÍhii dd PARTE I
1.4 questão da ideologia antes de Marx....................'......... 15
...
r.ldeologi,r l ldeologia Hislór ì r. litulo, 2. A questão da ideologia em Marx 30
3. A questão da ideologia entre os marxistas do
or5:91 xx
início do século 51
Írn,lddi.{.o plorN8h. :liÍ!lÒossoo rfiinr rnqitÌoco: 4. Em Lukács........ 59
5. Em Mannheim. 69
Adorno..-.........
6. Em Horkheimer e 74
7. Em Marcuse..... 88
Benjamin...
8. Em 94
Ízootl 9. Em Gramsci ..... 1o2
Todos os diÍeitos desta edição Ì€servado$ à l0.EmBakhtin....
111
EDITORÂ SCHIVÁRCZ Ì,TDÂ.
AÌthusser
Rua Bândeira Paulistâ 7o2, cj. 32 11. Em Ì18
o4j32-oo2 - São Palllo * sP 12. Em Goldmann 124
ïèlefone (u) 37o7-35oo 13. Em Habermas 128
wFarwx .lctor)m 3p7aon7h-i3a5doatsletras.com-br 14. ... E no Brasil .. 46
Agradecimentos
tàR'Í E Il
.................
15. Ideologia e linguagem r51
ideoÌogia.....................
16. Objeções à 164
pós-modernismo......
17. Ìdeologia e 176
......................
18. Ideologia e história 187
psicanáIise.......-..........
19. Ideologia e 199
.-.........................
20. Ideologia e arte 212
...........................
21. Ideologia e ética 226
cotidiano..................
22.Ideologia e 237
......................
23. Ìdeologia e política 248
Uma questão nunca inteiramente resolvida? ........................ 257
Bibliografi a.......... 267
Índice onomástico 273
Outras obras doautor..,..,...,..,......... 279
Ao longo de muitos anos' tenlìo convetsado sobre a questão da
ideologia com muita gente. Em esPeciâI, o tematem estado presen-
- te em animadas cliscussões com Cristina Konder, Carlos Nelson
Coutinho, MiÌton Temer e Margarida (Guida) de Souza Neves'
Mais recentemente, CarÌos Nelson (Caíto) Konder se toÍnoll um
interìocutor imprescindível.
Discuti algumas das idéias desenvolvidas neste livro com cole-
gas, alunos e ex-aìLrnos. Entre os que me têm ouvido mais assidua-
mente estão Isabel Lelis, Sonia Kramer, Menga Lüdke, Tania
Dauster, Ana Waleska Mendonça, Alícia Bonamino, Maria Luiza
Oswald,Vera Candau, Apparecida Mamede, Creso Franco e Ralph
Bannell. Mais longamente, submeti a paciência de Zaia Brandão'
Rosália Maria Duarte e Ana Elvira Raposo à exposição do meu
pensamento, ouvindo sempre observações instiganies'
Além disso, ministrei um curso sobre a questão da ideolÕgia
para alunos de pós-graduação no Depârtamento de Educação da
puc Rt em 2001 e apreciei enormemente a reação dos estudantes'
Ana Luiza Smolka me proporcionou ocasião de falar em Introdução
Campinas sobre a questão da ideologia para um amplo públíco.
Mais recentemente, o livro foi lido por Eugenio Bucci, que fez
observâções extremamente argutas e lúcidas.
Sou grato a todos e também âo cNpq, pela bolsa de produtivi-
dade em pesquisa que me concedeu.
Michael Lôwy, autor de um dos melhores ensaios dedicados
ao tema da "ideologia",já chamou a atenção de seus leitores para â
polissemia do conceito:
Existem poucos conceitos na história da ciência social moderna que
sejam tão enigÌnáticos e polissêmicos como esse de ideoìogia. Ao
longo dos últimos dois séculos ele setornou ob.jeto cle uma acumula-
ção incrível, até mesmo fabulosa, de ambigtidades, paradoxos, arbi-
trariedades, contra-sensos e equívocos. (Lõwy, 1987, pp.9- 10)
Umarápidaolhada na bibliografia, no final destevolume, bas-
tará para proporcionar ao leitor uma idéia da vastidão das publica-
çÕes que veicularam as "Ìeituras" diversas e contraditóÌias a que o
conceito foi submetido.
O presente trabalho não pÍetende propor mais uma interpre-
tação do conceito de ideologia, uma exegese disposta a coÍÍigir
todas as outras.Âs páginas que se seguem,a rigor, não estão sequer
dedicadas ao conceito propriamente dito: de fato, elas giram em borar ou a âdotar representâçoes ideologicamente distorcidas da
tÕrno de uma questão (e não é casual que o Ìivro se intitule, justâ- reâlidade polÍtica e social.
*
mente, A questão da ideologia). Apesar da presença de Pareto e d€ outros - poucos anti-
Em que consiste, precisamente, essa questão? Para uma expli- marxistas, a lista dos teóricos que insistem em retolnar o conceito
cação preliminar, vale a pena recorrermos ao Dicionário de políti- em suâ âcepção íorfe é umâ lista da qual constam, sobretudo, os
ca, coordenado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gian- pensadores qrLe estão àe algum modo enpenharlos etn desdobrar a
franco Pasquino. Nele, o verbete ideologia, escrito por Mario reflexiio de Marx sobre o tema.
Stoppino, começa coÌì uma coìÌstâtação que coincide, no essen- Este Ìivro procura reconstituir aÌguns aspectos clo movimen-
cial, com :r de Michael Lôwy, transcrita acìma: to da reflexão desses pensadores a respeito da ideoÌogia, algumas
carâcterísticâs daquilo que cada um retomou da concepção de
Tanto na linguagen político-prática como na linguagem filosófica, Marx, acïescentando eventualmente complementos ot"t correções,
sociológica e poìítico-científica, [âo existe ta]vez nenhuma outra ou aÌgumâs caÍacterísticas daquilo que cada um considerou supe-
palavra que possa ser comparada à ideologia pela freqüência com a rado e procurou eliminar ou substituir no enfoque do autor (junto
quaÌ é !ÌÌrpregada e, sobretucìo, pela gama de significados diferentes com Engels ) de Á ideología nlemò.
clue lhe são atribuíclos. Muitas vezes, os filósofos evocados a seguir tbrnruÌaram seus
pensaÌnentos imbuídos da convicção cle que havianl conseguido
Mas, apoiando-se em Bobbio, Stoppino dá r.rn passo adiante elaborar unr novo conceito de ideologiâ e com ele estavam resolven-
e propõe uma curiosa cÌìstincão: cle distil.ìgue entre um significado do problemas que seus predecessores não tinham conseguido soÌu-
,ftrco e u rn significado .forrc. O sìgnificado t?Ìco é âquele er.Ì qÌle o cionar. É provável, no plano subjetivo, que essa convicção os teÌlha
ter mo designa sistenras de crenças poÌíticas, conjuntos de icÌéias e ajudado, que ela lhes tenba fortâlecìdo a disposição, o ânimo para
valores cr.rja função é a de orientar compoÍtamentos coletivos rela- aprof ndar suas construções teóricas. O presente trabalho, contu-
tivos :ì ordem pública. O significado /orte é aquele em que o teÌ mo do, foiernpreendido com outrô objetivo, com outrir preocupação.
se refere, desde Marx, a uma distorção r.ro conÌrecimento. Na pri- Não se pretende, aqui, contribr.rir para resolver a cluestão cla
meira acepção, o coÌìceito é neutro; t.Ìa segunda, é crítico, negativo. ideologia, submetendo o conceito a mais uma - a enésima! -
Stoppino escreve: "Na ciência e na sociologia política coÌìtenìporâ- reformulação. O que se procura fazer, nâs páginas que se seguem, é
neas predomina nitidamente o significado fraco cla ideologia'Ì revisitar as diversas expressões que â questão da ideoÌogia veio
EÌìtre os represelltaÌ.Ìtes - lììinoritários - <ia perspectiva qr.re assumincìo desde Marx até o presente na perspectiva da esquerda,
trabalha com o significado/orre da ideoÌogia se acham aÌguns pou- em suas diversas vertentes teóricas. O interesse do estudo, então,
cos teóricos convictanrente antimarxistas, como o itâliano Vilfredo está inteiramente voltado para a questão como tal.
Pareto, para quem os instintos filncìamentais da natureza humana A convicção con a qual este livro foiescrito é a de que, inde-
são muito mais fortes do que os fatores sociais e por isso influem, pendentenìente do maior ou menor alcance do ser"r vaÌor opcrató-
inevitavelnente, na psicoÌogia dos in<1ivíduos, induzindo-os a ela- rio em diferentes campos do tr abalho cientíÍìco, o corceito de ideo-
to
Iogia, em seu signifrcado "forte", trouxe para o pensamento contem-
porâneo a exìgência de se defrontar com uma questao crucial, inesca-
moteável, extremamente instígante, que o obrìga a um autoquestio-
namenÍo rqdical e o desafia a uma auto-renovação dramátíca.
É como se a questão da ideologia fosse, hoje, uma novaversão
do enigma que a Esfinge propôs a Édipo. Em vez da alternativa"ou
decifras o enigma ou te devoro", a questão da ideologia, moderna
Esfinge, nos provoca, irônica: "Decifra-me, enquanto te devoro".
PARTE
r. A questão da ideologia antes
de Marx
O tema da ideologia - entendido como o registro de pressões
deformadoras atuando sobre o processo de elaboração do conhe-
cimento - é um tema muito antigo.
Desde que os gregos, pioneiramente, passaram a refletir sobre
os problemas mais gerais dos seres hurnanos - de onde viemos, o
que é o mundo, quem somos nós, para onde vamos etc. - seÌr se
prenderem às explicações religiosas tradicionais (os mitos), una
questão crucial, que emergia sempre no caminho da reflexão,era: o
que é o conhecimento?
Platão já advertia seus contemporâneos de que podiam estar
enxergando sombras e pensar que estavam vendo seres reais,
Vinte e cinco séculos se passaram e aindagação continuou a ser
feitacom insistência: o que é, exatamente, conhecer? O queme auto-
riza a afirmar que efetivamente conheço alguma coisa? Quem me
garante que o que eu sei (on acho que sei) corresponde à realidade?
O poeta espanhol Antonio Machado disse, com muita graça:
"en mì soledad / he visto cosas muy claras / que no son verdaà".O fato
de vermos as coisas com muita clareza não assegura que elas sejam Trilhando os novos caminhos e explorando as novas possibi-
tais como as vemos. Ìidades, o conhecimento realiza avanços prodigiosos, porém fica
Mesmo que os órgãos dos sentidos fossem mais confiáveis do exposto a maiores equívocos. Os erros cometidos empiricamente
que de fato são, eles me proporcionariam, no máximo, o acesso â são limitados e simples; os erros que se cometem com base na ela-
urn nível bastante Ìimitado da realidade. boraçâo teórica, entretanto, são sutis e compìexos.
Um homem podeterespecial apreço, por exemplo, pela cadei- Se a experiência me mostra que fui vítima de uma ilusão de
ra em que costuma se senÌar. Conhece-a - empiricamente - há ótica ou me enganei na apreensão de um som, posso ficar momen-
mrritos anos, Esta lamìlìarizado com sua cor. conì sua forma, com taneamente perplexo, mâs não terei grandes dificuldades para
a macìez do assento, com a solidez da madeira e a estrutura do res- reconhecer e corrigir o engano. Se, contudo, cot.Ìstluí uma inter-
paldar. Já observou, talvez, cacla centímetro deÌa. os arranhôes pretação, articulei fatos e idéias, elaborei uma teoria e incorporei o
sofridos, as falhas na pintura. ldentifica até mesmo o cheiro deÌa. que foi observado a um conjunto de noções organizadas, nas quais
Mas o que ele sabe, de fato, sobre a cadeira? tenho confiança,o reconhecimento do equívoco se torna mais deli-
Podemos dizerque o cidadão do nosso exemplosabemuitas coi- cado e, com freqüência, mais doÌoroso.
sas, apreendidas por srÌiÌ percepção sensoriaÌ. Parâ saber outrâs O desenvolvimento das ciéncias depende da teoria, da abstra-
coisas fundamentais, entretanto, eÌe precisará ir alént da empiria: ção. Ao mesmo tempo, ele nâo proporciona âo conhecimento
precisará trilhar caminhos que exigem a âbstração teórica. npeionhru-m a garantia de que não haverá descaminhos. E - o que é
qualquer falha na construção saudavelmente ambiciosa do
O conhecimento da cadeira só poderá vir a se aprofundar se o
conhecimento científico pod€rá, em princípio, causar transtornos
seu zeloso usuário a comparar com outras cadeiras, estudar sua
muito superiores aos que costumam seracarretados pelas deficìên-
concepção, como eÌa foi concebida peÌo deslgner, qual é o ser"r esti-
cias da Ìimitada percepçáo empirica.
lo,como foifeitapelo carpinteiro, qual foi a técnica que ele utilizou, Por isso, um dos campos temáticos mais importantes da filo-
quais eram as opções técnicas e estilísticas disponíveis, quais as
sofia, a teoria do conhecimento, sempre se ocupou, de um modo
peculiaridades da madeira escolhida, que ligações a cadeira tem
ou de outro, de algumas das questões que integram a problemáti-
com a cultura do seu tempo e de que modo se insere na sociedade ca daquilo que, a partir do século xlx, viria a ser designado como
que a viu ser criada.
ideologia.
Trata-se, portanto, de um conhecimento que não pode ficar Houve numerosos momentos nos quais o conhecirnento, vol-
limitado à percepção sensível direta: precisa construir interpreta-
tando-se sobre si mesmo, sentiu-se obrigado a reconhecer seus
ções abstratas, baseadas em informações que não podem ser ime- próprios paradoxos. Alguns pensadores indagaÍam: como posso
diatamente cotejâdas com a experiência tividapelo oltservador. O saber se sei o que sei, se não posso cotejaï o que supostamente sei
sr:jeito se abstrai da muhiplicidade das sensações, da percepção com o que sou forçado a admitir que não sei?
imediata, e se fixa em determinados elementos, que vão sendo des- Ao avançar, o conhecimento tem ampliado seu quadro de
dobrados e postos em conexão uns com os outros. referências, seu acervo de informações, mas também tem aumen-
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tado tanto seus problemas de organizaçâo interna como sua per- De acordo com Bacon, eram quatro as espécies de ídolos: os
cepção da vâstidão da sua ignorância. Quanto mais o sujeito ídolos da tribo,os ídolos da caverna, os ídolos do foro e os ídolos do
conhece, mais ele se clá contn do quânto desconhece. E foi essa teatr0,
constatação que levou Nicolau de Cusa, no início do Renasci- Os ídolos da tribo eram as conveniências específicas do gênero
mento, a sustentâr aïdéia òa douta ignorância,isto é, a tese de que o humano, que os homens acreditam que são, automaticamente, a
verdadeiro sábio é o que se sabe ignorante. expressão corretâ da realidade da natureza e do mundo.Os ídolos
Nicolau de Cusa,naverdade, propunha uma nova maneira de da caverna eram as conveniências de cada indivíduo como tal, que
se pensar o conhecimento- EÌe dizia: não podemos conceber a infi- Ìevam cada pessoa a acreditar que sua opinião tem, naturalmente,
nitudeem Deus, só podemos lidar com uma concepção humanado validade geral. Os ídolos do foro provinham da comunicâção entre
infinito, por isso o conhecimento que temos clas coisas finitas que os indivíduos através da linguagem e da imperfeição das palavras,
compõem o nosso mundo é sempre limitado, imperfeito. Deus é o o que resulta numa adaptação clos homens à inépcia comunicativa.
Absoluto Máxímo,é absoÌutamente incomparável, ao passo que no Por fim, havia os ídolos do teatro, resì.rltantes do fato de que
nosso mundo tudo é relativo, nosso conhecimento é obtido por todas as idéias - filosóficas, científicas ou m€ras crendices e
comparação e trbpeça inevitavelmente em contradições. Só nos superstições - chegam à alma crédula da população na forma de
cabe, entâo, ser humildes, debruçar-nos com modéstia sobre as "verdades" encenadas, sancionadas pela autoridade da tradição e
contradições do mundo (Cusa, Ì979). fortalecidas por sua capacidade de simplificar as idéias, tornando-
Alérn disso, em diversas ocasiões, surgiram, na história da filo- as agradáveis e lisonjeiras para as pessoas.
sofia, reflexões segundo as quais, além das enormes dificuldades Embora combata os ídolos, Bacon descreve um quadro pouco
intrínsecas da construção do conhecimento, o esforço do conhecer alentador, que reconhece de maneira bâstante realista, nas condi-
enfrenta, inevitaveÌmente, pressões deformadoras provenientes de çÕes da época, a força colossal de que esses ídolos dispõem.
aÌguns elementos cor.ìstitrÌtivos da cuÌtura e cla sociedade onde o No capítulo 49 do Notum Organumse pode ler:
sujeito cognoscente vive.
Uma das reflexões mais vigorosas dedicadas a esse tema, ainda O intelecto humano nào é luz pura, pois recebe influência da vonta-
no Renascimento, pode seÍ encontrada no Noyum Organum, ào de e dos afetos, donde se pode gerar a ciência que se quer. Pois o
inglês Francis Bacon. O pensador britânico, preocupâdo com a homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso,
exagerada abstratividade das teorias tradicionais, herdadas da rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a
Idade Média, empenhou-se numa enérgica revalorização de um sobriedade, porque sofrcia a esperança; os princípios supremos da
conhecimento que permanecesse maispróximo do nível empírico, natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da
da experiência, da observâção diretâ dos fatos. Para ele, era preciso arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e
levar os seres humanos ao "trato direto das coisas'] para ajudáJos a efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inú-
se libertar do cipoal de noções faÌsas que lhes eram incuìcadas (e meras são as fórmulas pelas cluais o sentimento, quase semPre
que Bacon chamava de "rdoLos"). imperceptiveÌmcnte, se insiuua e afeta o intelecto. (Bacon, 1982)
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Outro pensador rer.Ìascentistâ que abordou a questão da ideo- Havia, na perspectiva dos teóricos das luzes, um robusto oti-
logia sem nonÌeá-la foi o francês Montaigne, que denunciava a mismo. E não é casualque aPalavra o tifttistflo ïenha súrgido na pri-
estreiteza ideológica de sua própria cultura, a cultura européia. meira metade do século xvltt. Embora alguns dos caffipeoes da
Observando a conquista daAmérica e o brutaÌ desrespeito com que causa ilustrada tenham sido perseguidos e encarcerados pela
os conquistadores lidavam com as culturas de outros povos,Mon- repressão, eles tit.tham confiança no futuro e tendiam a crer que o
taigne escreveu:"Nós os chamamos de bórbaros ou povos do Noyo poder de peÍsuasão da argumentação racional e a difusão de
Murulo, porém nós os superamos em todos os tipos de barbárie" conhecimentos científicos produziriam efeitos devastadores sobre
(Montaigne, lssals, r, cap. 31). as bases mais resistentes dos males huÌÌranos: â ignorância, o pre-
Dois séculos mais tarde, outro pensador francês, Diderot, conceito e a superstição.
retomou a crítica de Montaigne à presunção do eurocentrismo e Essa confiança no que estavam fazendo e no que estavam pen-
procurou aprofundar sua anáÌise do fenômeno, no Suplemento à sando animava os pensadores nas batalhas que travavam; poÍém,
viagem de Bougainville. Diderot sugere que a pretensão de univer- ao mesmo tempo,lhes atenuava as inquietações, quando se debru-
t
salidade da cultura dos conquistadores e o compor tamento preda çavam sobre si mesmos e se perguntavam sobre a legitimidade e
tório dos euïopeus no processo da expansâo colonial estavam ìiga, confi abilidade de seus conhecimentos.
dos à espinhosa questão da propriedade privada. No início do século xtx, essa confiança já passava a sofrer aba-
No primeiro diálogo do livro, um personagem afirma que os los provenientes de turnultos históricos, de mudanças sociais e cri-
selvagens possuem a terra em comum e por isso levam uma vida ses políticas inesperadas, desencadeadas pelos acontecimentos e
mais pacífica que a dos civiÌizados, já que "todâ guerra nasce de pelas repercr:ssões da RevoÌução Francesa. O perÍodo napoleônico,
uÌna pretensão comum à nesma propriedade'l E, no segundo diá- com suas guerras, com o recrutamenttl compulsório em Ìarga esca-
logo, unr velho taitiano recrimina os brancos, dizendo Ìhes:'Aqui, la, agravou esses abalos, atingindo a consciência de anrpÌos setot es
tudo é cle todos. E vocês chegaran para estabelecer uma diÍ'erença da população, alterando seu estado de espírito na própria vida co-
entreoÍeÍ/eorrc!': tidiana. As pessoas não conseguiam ntais se satisfazer conr expÌica-
Para un.r fil(rsofo d <> Séaúo dns Lttzes,entretanto, aüÌdâ Ììão era çoes racìonalistas tranqüilizadoras, âo se verem envolvidâs elÌl
possível aprofundar a reÍìexão sobre a complicadíssima relação situações de tensão e incertezas. Ficou mais difícil sustentar os
entre a busca da universalidade no conhecimento, de um lado, e os princípios do IÌurninismo nos termos em que eram defendidos por
desejos individuais e interesses particulares, de outIo. seus câmpeões no sécuìo xrrttt.
O lluminismo tendia a confiar demais no conhecimento. Os Foi então que Destutt deTracy, retomando idéias dos r/ássicos
iluminístas tendiam a acreditar que todas as questões, em princí- das Irizes, especialmente de Condillac, publicou seu livÍo Eleffien-
pio, poderiam ser adequadamente resolvidas no plano dâ teoria, se tos de ideologia (em l80l).
recebessem um tratamento teoricamente correto. Para eles, erâ O volume teve considerável repercussão Nele, Destutt de
difícil pensarque mesmo as boas teorias precisam, modestamente, Tracy concebia a ideología como uma nova disciplina fiÌosófica'
se remeter à vida, à ação, à história. que devia incorporar os resultados mais significativos de todas as
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