Table Of ContentA METAFÍSICA
DOS COSTUMES
Immanuel Kant
3.a edição
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
A METAFÍSICA
DOS COSTUMES
Immanuel Kant
Tradução, apresentação e notas de
José Lamego
3.a edição
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Reservados todos os direitos
de acordo com a lei
Edição da Fundação Calouste Gulbenkian
Av. de Berna / Lisboa
2017
ISBN 978-972-31-1137-8
Nota sobre a tradução
A presente tradução atém-se ao texto de A Metafísica
dos Costumes publicado em 1907 como vol. VI (págs. 203
-493) das obras de Kant editadas pela Academia das ciên
cias da Prússia (Akademie Textausgabe). Optamos por nos
ater a este texto dado o carácter canónico da edição da
Academia.
Outras propostas de fixação do texto, como, por
exemplo, a de Bernd Ludwig - mormente no que diz
respeito à parte relativa à «Doutrina do Direito»1 -, apre
sentam, muitas vezes, sugestões plausíveis de reor
denação de certas passagens. No entanto, por razões de
segurança, entendemos seguir o texto canónico, fazendo,
porém, referência em nota de pé de página às sugestões
de Ludwig nos casos em que apresentam rearranjos rele
vantes do texto e quando, ao mesmo tempo, se escoram
numa análise textual crítica com créditos já firmados:
mencione-se aqui, sobretudo, a tese da interpolação tex
tual defendida por Gehrard Buchda e Friedricli Ten-
bruck em relação a certas passagens da «Doutrina do
Direito» - que no devido lugar será referida com maior
pormenor -, tese que não é hoje objecto de controvérsia.
Acatamos igualmente a sugestão do curador da edi
ção da Academia das ciências da Prússia de A Metafísica
dos Costumes, Paul Natorp, de tomar como referência a
primeira edição (de 1797) e não a segunda edição (de
1 Kant, Rechtslehre, Hamburgo: Meiner Verlag, 1986.
V
1803), pois esta última, apesar de publicada ainda em
vida de Kant, não terá tido já o envolvimento directo do
autor nas correcções e melhorias. No entanto, sempre
que nos tenha parecido fazer mais sentido a correcção
textual introduzida na segunda edição do que o texto da
primeira edição seguiremos aquela, dando disso conta ao
leitor em nota de pé de página.
Por vezes, mas apenas quando tal seja manifesta
mente vantajoso para o sentido e o equilíbrio do texto,
procedemos a ligeiras alterações na pontuação relativa
mente ao texto original.
Achamos também útil, para além de ser um procedi
mento habitual nas traduções de obras de autores clássi
cos, indicar em notas de margem a correspondência da
paginação da edição da Academia das ciências da Prússia.
Pode afigurar-se discutível o número de notas expli
cativas do tradutor que figuram, com asterisco, em pé de
página. Mas, visando esta tradução, no nosso propósito,
um público leitor basicamente constituído por jovens das
universidades, consideramos que essas notas explicativas
poderiam ser de alguma utilidade para um melhor en
quadramento e compreensão do texto. Pela mesma ra
zão, resolvemos juntar à tradução uma cronologia da
vida e obra de Kant, uma indicação bibliográfica para o
aprofundamento das matérias versadas em A Metafísica
dos Costumes e um pequeno estudo de apresentação da
obra.
A publicação da tradução de A Metafísica dos Costumes
neste ano em que se perfazem duzentos anos sobre a
morte do seu autor constitui o nosso contributo para
VI
manter vivos a memória e o ensinamento de Kant e pres
tar homenagem ao que ele, como talvez nenhum outro
filósofo, em tão alto grau simbolicamente representa: o
cultivo do rigor do pensamento e a paixão pela liberdade.
Lisboa, verão de 2004
O tradutor
VII
A Metafísica dos Costumes: a apresentação sistemática
da filosofia prática de Kant
É um longo caminho aquele que separa as primeiras
críticas de Kant à filosofia moral do seu tempo e a forma
final e apresentação sistemática da sua filosofia prática em
A Metafísica dos Costumes. No ensaio Untersuchung über die
Deutlichkeit der Grundsätze der Theologie und Moral, publi
cado em 1764 pela Academia de Berlim, Kant ocupa-se
de problemas do método da filosofia moral, rematando
esse escrito precisamente com a questão que virá a bali
zar o seu trabalho ulterior, a questão de saber se é «... a
faculdade do conhecimento ou o sentimento ... que de
cide os primeiros princípios da filosofia moral»1.
Já nessa obra, redigida ainda em conformidade com
o espírito «demonstrativo» da filosofia wolffiana, Kant
investigava o «primeiro princípio formal de toda a obri
gação (ersten formalen Grund aller Verbindlichkeit)»2 e identi
ficava na noção de «liberdade» esse «primeiro princípio
formal». Mas a resposta acabada ao problema fundacional
da filosofia moral só viria a ser dada por Kant na Funda
mentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, e na Crítica da
Razão Prática, de 1788.
Nestas duas obras, Kant levou a cabo a tarefa «pro
pedêutica» e fundamentadora de uma crítica da razão
prática, preliminar à exposição do sistema de filosofia
moral, que ele denominava de «metafísica dos costumes».
A execução do programa filosófico de investigação trans
1 Cf. Kant, Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der
Theologie und Moral (Akademie Textausgabe, voL II), pág. 300.
2 Cf. Kant, ob. eit., pág. 299.
IX
cendental consubstanciava-se na elaboração de uma «me
tafísica da natureza» e de uma «metafísica dos costumes»,
ambas precedidas, respectivamente, da tarefa de uma crí
tica da razão pura especulativa e de uma crítica da razão
prática3. O programa filosófico kantiano articulava-se em
torno de dois poios: de um lado, a fundamentação do
novo conhecimento científico, que tinha atingido o seu
paradigma no modelo da física newtoniana; do outro
lado, a fundamentação da obrigação moral na ideia de
«liberdade», concebida como autonomia racional - con
cepção que Kant fazia reportar a Rousseau, para ele «o
Newton do mundo moral». A «crítica» (da razão pura e
da razão prática) devia seguir-se o «sistema» ou «metafí
sica»4 (da «natureza» e dos «costumes»). Em boa verdade,
no entanto, os Princípios metafísicos da ciência da natureza
prosseguiam apenas a tarefa «propedêutica» desenvolvida
na Crítica da Razão Pura, enquanto que A Metafísica dos
Costumes intentava ir para além daquilo que tinha sido
conseguido na Fundamentação da Metafísica dos Costumes
e na Crítica da Razão Prática, procurando estabelecer um
«sistema da doutrina geral dos deveres» com base na apli
cação do princípio supremo da moralidade, atendendo à
3 Cf. Kant, Crítica da Razão Pura, B 878: «Por conseguinte, a
metafísica, tanto da natureza como dos costumes... constituem por
si sós, propriamente, aquilo a que podemos chamar, em sentido
autêntico, filosofia».
4 Esta tarefa fundamentadora e «propedêutica» da crítica em
relação à metafísica refere-a Kant, por exemplo, numa carta a Mo
ses Mendelssohn, de 6 de Agosto de 1783, assinalando que a crítica
trata de «investigar o terreno para o edifício» da metafísica, ou seja,
de assegurar a solidez dos seus alicerces.
X
peculiaridade da natureza humana, a qual, como Kant
expressamente admite, só mediante o recurso à experiên
cia poderia ser conhecida.5
Mas implicava esta referência à natureza humana (die
Natur des Menschen) o abandono do método crítico-trans-
cendental e o resvalar da filosofia moral pura para o do
mínio da antropologia prática? A fundamentação deonto
lógica da obrigação moral, como autodeterminação do
sujeito moral e independência da vontade (Wille) moral
da necessitação dos motivos sensíveis, i.e., como indepen
dência da «natureza», explicitada na Fundamentação da Me
tafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática, e a ideia
kantiana de «metafísica» (quer da «natureza» quer dos
«costumes») como conjunto de princípios a priorí condu
zem a que o sistema de filosofia moral de Kant, como
«metafísica dos costumes», contenha apenas princípios
a priori, relegando tudo o que seja empírico para o domí
nio da antropologia prática. A «metafísica dos costumes»,
como «metafísica», refere-se a um mundo «inteligível»,
assumindo a perspectiva de uma universalidade da razão
pura prática na determinação da vontade (Wille) moral.
E se a moral carece, na sua aplicação às pessoas, de uma
antropologia, ela deve, enquanto «filosofia pura ou
metafísica», ser desenvolvida em independência desta6.
5 Cf. Kant, Die Metaphysik der Sitten (Akademie Textausgabe,
vol. VI), maxime pág. 217.
6 A ideia de que a «metafísica dos costumes» representa um
«platonismo» da razão prática é repetidamente glosada pelo pró
prio Kant, por exemplo, na Crítica da Razão Pura (A 314 e segs. / B
371 e segs.).
XI