Table Of ContentEUGEN FINK
A FILOSOFIA DE NIETZSCHE
£
EDITORIAL PRESENÇA
Título original
NIETZSCHES PHILOSOPHIE
© Copyright by Verlag W. Kholhammer GmbH,
Stuttargt, Berlin, Köln, Mainz
Capa de Rui Ligeiro
Tradução de Joaquim Lourenço Duarte (Peixoto
Reservados todos os direitos
para a língua portuguesa à
EDITORIAL PRESENÇA, lda.
Rua Augusto Gil, 35-A — 1000 LISBOA
Capítulo I
A «METAFÍSICA DE ARTISTA»
1. A filosofia de Nietzsche por detrás das máscaras
Friedrich Nietzsche é uma das maiores figuras vitais na his
tória das ideias do Ocidente, um ser fatídico que nos obriga a tomar
decisões finais, um formidável ponto de interrogação no caminho
percorrido até agora pelo homem europeu, determinado pela herança
da Antiguidade e por dois milénios de cristianismo. Nietzsche aca
lenta a suspeita de que este caminho seria um caminho errado, de
que o Homem se teria perdido, de que seria necessário voltar atrás,
uma recusa de tudo quanto até então se considerava «sagrado»,
«bom» e «verdadeiro». O nome de Nie.tzsche está indissoluvelmente
ligado a uma crítica radical da religião, da «filosofia, da ciência e da
moral. Se Hegel empreendeu o gigantesco cometimento de abarcar
toda a história das ideias como um processo evolutivo no qual todas
as etapas foram repensadas e devem ser apreciadas cada uma sequndo
a sua lei própria, se Hegel julgou poder responder num sentido
positivo da história da humanidade europeia, Nietzsche nega impie-
dosa e claramente o passado, repudia todas as tradições, apela a
uma reconversão radical. Com Nietzsche, o homem europeu chega
a uma encruzilhada. É comum a Hegel e a Nietzsche a consciência
histórica que se volta e reflecte sobre todo o passado ocidental,
As citações das obras de Friedrich Nietzsche são transcritas
por Eugene Fink a partir da edição Integral das obras de Nietzsche
publicada por Krö ner Verlag. Na falta de uma edição portuguesa das
obras completas deste autor, optámos pela tradução ad hoc das
referidas citações, ainda que corrêssemos o risco de fazer uma leitura
mais discutível dos textos nietzscheanos. (N. do T.)
7
examinando-o valorativamente. Ambos se situam deliberadamente
na esfera dos primeiros pensadoras gregos, ambos regressam às
origens, ambos são heraclíticos. Hegel e Nietzsche comportam-se
entre si como o Sim que tudo aceita em relação ao Não que tudo
contesta. Hegel leva a cabo uma imensa tarefa conceptual ao
repensar e integrar todas as transformações da compreensão humana
do ser, reunindo todos os temas contraditórios da história da
metafísica na unidade superior do seu sistema e levando assim
essa história metafísica a uma conclusão. Para Nietzsche, essa
meisma história é apenas a história do unais longo erro, uma história
que ele combate com paixão desmedida, »numa polémica veemente
de quem suspeita e acusa, -no seu ódio furioso e amiargura sar
cástica. Ele apresenta-se-nos pleno de espírito e simultaneamente
armado com toda9 as dissimuladas malícias de um panfletário.
Para o seu combate, serve-se de todas as armas de que dispõe,
da sua apurada psicologia, da cauâticidade do seu humor, do seu
fervor e .sobretudo do seu estilo. Nietzsche entregaise por inteiro
à luta, mas *não é concaptualmente que se dedica à destruição da
metafísica, .pois -não executa a demolição com os meios do pensa
mento abstracto do ser; repudia o conceito, luta contra o rac‘ona-
lismo, contra uma violação da realidade pelo pensamento. O con
flito de Nietzsche com o passado estende-se por uma frente mais
ampla. Ele <bate-<se não só contra a tradição filosófica, mas também
contra a moral e a religião tradicionais. A sua luta tem a fomia
de uma extensa crítica da cultura. Este aspecto reveste-se de grande
importância
A crítica nietzscheana da cultura esconde com demasiada
facilidade o facto, mais profundo, de se tratar, em Nietzsohe, essen
cialmente apeinas de um conflito filosófico com a metafísica ociden
tal. Na verdade,, Ntetzsche _sühmete toda a cultura_d^pagada, àjua
críticaJestruidora. Ao mergulhar profundamente no passado, ao
poF fundamentalmente em questão a tradição ocidental, Nietzsche
rompeu desde o princípio com os críticos moralizantes em voga no
século xix.jrEle não só se volta em_ atitude crítica para o passado
como também poê êni..práticajjrria decísao7~procede a uma reava
liação dos valores ocidentais, possui" uma l7dnlad^ d ^ fütuTõ~, ~üm
fffograma/ um ideal. Não é, porém,' um utopiistã, nem um"reformã:
dor ou benfeitor dó universo; Nietzsche não acredita no «progresso».
Em relação ao futuro tem uma_jombria profecia, é o áugurn do
milismõ~eurõpèuT^O 'niilismo parece, entretanto, ter chegado e não
apenas à Europa. Todos o conhecem e falam dele, assistimos mesmo
à sua «ultrapassagem». Nietzsche anuncia j> advento do. niilismo
«para,.os próximQgjcjp^ séculos». Também ~na direcção do futuro
a consciência histórica de Nietzsche visa longe. É, por consequência,
prova de pobreza e mesquinhez de espírito pretender confiná-lo
nois estreitos limites da h:stória contemporânea para, a partir daí,
8
interpretar um .pensador que historicamente abrange todo o nosso
passado europeu e que apresenta um projecto de existência para
03 séculos vindouros. É necessário recusar com a maior_energia as
tentativa^ de misturar~~Nietizscfre~Tcom a actualidade ijpoliticaZI2£-
apresentá-lo como o glprificador-clássico -da violência,- do imperia-
femo alenráo, como o demónio germânico açulado contra 'todos.ps
valores da cultura mediterraniçs. ou cQ:sa._semelhante. À filosofia_
de Nietzsche não poderia,_ na yerdade, escapar ao_ destino de toda
a_grande filosofia, o de ser vulgarizada e trivL-alizada. Qúé em
política abusaram de (Nietzsche, porém, não constitui argumento
contra ele, mesmo que se queira provar que uma prática política
de má reputação teria 'nascido de uma compreensão -ingénua da
sua verdadeira filosofia. Os grandes construtores de sistemas como,
por exemplo, Aristóteles, Lei<bniz, Kant ou Hegel estão, em virtude
da dificuldade do estilo das suas obras, talvez menos expostos a
serem mal entendidos do que Nietzsche, aparentemente de acesso
mais fácil, que atrai pelo brilho do seu estilo, pela forma aforística,
que seduz pela temeridade das suas formulações, que enfeitiça pela
beleza dos seus textos, que atoidoa pela magia das suas posições
extremas. Considerando a sempre crescente influência exercida por
Nietzsche deve ponderar-se esta séria pergunta: a influência de
Nietzsche decorrerá da sua filosofia ou de temas secundários da
6ua obra, se não mesmo do poder de sedução dos meios estilísticos
sugestivos de que se serve a sua inteligência viva?
A nossa resposta talvez decepcione. A filosofia de Nietzsche
é precisamente aquilo que menos actua, aquilo que talvez continue
ainda mal compreendido e que aguarda uma interpretação mais
próxima do essencial. O filósofo Nietzsche oculta-se sob o disfarce
djM^íticouda cultura, do misterioso áugure, do profFta^TêJmejiité.
As máscaras encobrem o essencial. O séculcTsüscit a“m úItiplos sequa
zes das máscaras de Nietzsche, mas continua ainda longe da sua
filosofia. Todavia, no decurso dos últimos decénios, a imagem de
Nietzsche sofreu uma transfiguração característica. Nos rnícios do
século «representa-se» Nietzsche sobretudo como o genial diagnos-
ticador da decadência cultural, como o criador de uma psxologia
das profundezas que desvenda os sentidos ocultos, de uma arte
superior da adivinhação e da interpretação; celebra-se em Nietzsche
o espírito sàgaz que descobriu o ressent.ment e a décadence
e cujo olhar malévolo recai em tudo o que é mórbido e podre; é
considerado artista, poeta grandiloqüente, profeta. Como afirmou
certa vez Scheler, Nietzsche deu à palavra «vida» a sonoridade
do ouro; fundou a «filosofia da vida». Quanto menos se compre
ende realmente a filosofia de NietzscheTmais exuberante sejorna
o c u l t o e!zsche^^nságurad^em~y , estili-
tíHo eflTTimbofa Á~partir da biogràflã^di~obra faSKca^Se^obra
de arte de uma «lenda». As interpretações que se fazem de Nietzsche
9
nos últimos tempos denotam um mais rigoroso sentido das reali
dades; podemos notar nelas uma tendência inversa. Muitas vezes
parte-se também da biografia para se tentar explicar a obra a partir
da vida que a criou. Mas Nietzsohe é visto com menos ilusões;
já não é tomado pelo super-homem que ele proclama no seu
Zaratustra. Pelo contrário. A apurada psicologia do desmascaramento
que Nietzsche acabou por manejar com perfeito virtuosismo passa
a ser aplicada a ele próprio. Nietzsche surge então como um homem
que sofre profundamente, como unTser destroçado a quem a,vida
prejudicou. Só a paTtír de uma incapacidade de se~desembaraçar
do Cristianismo c possível explicar o ódio selvagem e infernal
contra ttudo o que é cristão; ,só a partir do seu aperfeiçoamento
moral, da sua absoluta rectidão se pode explicar a sua crítica da
moral, o seu moralismo; só a partir das suas misérias e privações
de sofredor é possível compreender o seu hino de louvor à vigorosa
vida selvagem, ao homem forte, à grande saúde. A imagem de
Nietzsche é definida em função mais de aspectos periféricos da sua
obra do que do cerne da sua filosofia. Está fora de discussão que
as" «conquistas psicológicas de Nietzsche» sejam consideráveis; ele
abriu-inos os olhos para o facto, de_oi_sentido aparente dasi exipressoês
dã- alma encobrir um‘outro, latente, e para os inúmeros fenómenos
da ambivalência; a sua arte da análise psicológica é de primeira
ordem., É outrossim indiscutível que Nietzsche é dotado de um'1
inquietante faro para os acontecimentos
oTsifiãis do porvir e predizer o.futuro; indiscutivelmente, o artista
possui a sensibilidade de uma flor,_ umF inesgotável"cãpcldadè “de
invenção, ulM^fantáSTã^^êxübeFãffteT"o olhar de um visionário. Indis
cutivelmente, Nietzsche é um poeta.
«De :todos os que se ocultam,.eu sou o mais oculto», disse
Nietzsche a respeito de si próprio. É para 'nós talvez mais difícil
compreender o 'filósofo, porquanto esse é precisamente o verda
deiro Nietzsche. Dissimular a sua natureza essencial tornou-se em.
Nietesche uma pàfx5o; èle gõstá de uma maneira inquietaste , do
disfarce; da mascarada, da chariatanicè. Todos'os «perfis» em que
se manifesta dissimulam-no também: nenhum filósofo escondeu
porventura as suas reflexões sob taritós sofismas. Dir-se-ia que a
sua natureza rutilante e irrequieta não consegue ohegar a uma
expressão clara e definida, que ele representa muitos papéis.
Tais figuras são o «espírito .livre» da época de Humano, Tudo
Demasiadamente Humano, do príncipe Vogelfrei, de Zaratustra
c da sua derradeira identificação com Diónisos.
Que representa, porém, este gosto pela máscara? Tratar-se-á
apenas de um artifício literário, de uma mistificação do público,
ou de um método, que permanece impune, dè sustentar uma teíe
sem, no entanto, ficar ligado a ela? Explicar-se-á definitivamente
este traço de Nietzsohe pelo facto de, suspenso sobre o abismo,/
10
ele não haver criado raízes em parte nenhuma, e pretender para si
próprio e para os outros dar a ilusão de ter os pés assentes no ohão?
Uma exploração psicológica jamais conseguirá decifrar este enigma
da existência de Nietzsche. Numa imagem carregada de simbolismo,
fala Nietzsche do «labirinto»: o ser humano,é, para ele, um labi-
•rinto do,qual_ ainda,ninguém achou .a. saída..e~no~ qual itodos.os,
fiêròls pereceram. O próprio Nietzsche é o homem labiríntico.por
excelência. iNão lhe podemos arrancar o segredo da sua existência;
ele pôs-se a salvo através de muitos dédalos, muitas máscaras e
figuras. Mas devemos preocupar-nos? As dníerpretações da obra
de Nietzsche pecam em geral pelojfacto Be se itentar o acesso-a-da
atravêsJdcThomem, de a biografia ser utilizada corno chave. Com
efeito, a vida de Nietzsche é ainda mais secreta do que a sua obra.
Mas a faceta extraordinária do seu destino, a siua paixão e, por
outro lado, a sua pretensão de messianismo, o inaudito patético
da sua atitude que assusta, irrita, perturba e enfeitiça — tudo isto
nos incita a volver o olhar para o homem em vez de nos ocuparmos
apenas da obra. Nietizsche impele-nos para si próprio. Oa- seus
livros_g_ão_ todos .escritos .em..estilo confessional; ele não é um autor
que se deixa ficar no segundo-plano ;..pefo xonirário, fala-de maneira,
quase intolerável de si, das suas experiências espirituais, da süa
doénça,' dds seüs gostos. Nietzsche mostra uma arrogância' sem
igual ao incomodar o leitor com a pessoa do autor, ao mesmo tempo
que afirma que, no fundo, todos os seus livros não passam de monó
logos de Nietzsche consigo próprio. Nietzsche utiliza essa exigência
insolente em relação ao leitor como um instrumento artístico, como
um acepipe literário; ele atrai para si admiradores precisamente
•na medida em que os repele, este patético aristocrático desperta
irritação e interesse. Nietzsche é um escritor de fino recorte, possuí
o instinto do efeito, domina todos os registos, desde os acordes
delicados c sublimes até às fanfarras estridentes, detém um pronun
ciado sentido da melodia natural da língua, constrói frases amplas,
cheias de saber e arte, respeitando o ritmo da gradação, com um
ímpeto que coloca cada palavra no lugar devido; no entanto, domina
igualmente o ritmo síaccato das frases breves e densas, fulgurantes
como o raio. O seu. estilo estimulante está carregado de electricidade
espiritual e ao mesmo tempo ele sabe solicitar, com virtuosismo, as
■forças irracionais da alma humana. O estilo de Nietzsche assenta
no efeito. Dele se pode dizer o que Nietzsche dizia acerca da
música de Wagner. Há muita espectacularidade, muita sedução e
enfeitiçamento no estilo de Nietzsche; Mas existe também grande
esplendor quando o pensamento chega à proximidade essencial da
poesia. Q_brilho.da linguagem, de .Nietzsche. a sua extrema subiec-
dvidade-induzem-nos constantemente... a desviar o>s_ol.hos da obra
para o autor, que nda dc.mil..maneiras, se espelha.
11
Ü E ainda uma outra razão existe para a atitude habitual dos
intérpretes de Nietzsche. Com excepção de um número reduzido
de textos, Os livros de Nietzsche não têm o carácter de obras em
que as ideias se encadeiem para formar um todo, obras que ofere
çam um pensamento que se desenvolve à medida que progride.
Constituem antes recolhas da-aforismos. Nietizsche, que estava impe
dido de 'trabalhar à escrivaninha por períodos prolongados devido
a uma doença dos olhos, fez do aforismo uma obra de arte. Mas
seria decisão precipitada querer explicar o estilo aforístico de
Nietzsche unicamente pela circunstância exterior da doença ocular
e acreditar que ele apenas soube tirar partido da necessidade. D .afo-r
rismo é an>tes_adequado ao estilo de pensamento de Nietzsche, pois
permite á breve e 'ousçdajformuiação que renuncia* a .apresentação
de_ razogs. NfétzscHê pensa como que por rasgos de pensamento
•mais do que segundo a forma laboriosa da exposição abstracta,
constituída por longas cadeias de conceitos. O .seu pensamento é
intuitivo, processasse por imagens, e é dotado de uma inaudita
capacidade de criar símbolos. Os aforismos de Nietzsche, forte
mente expresisivos, -assemelham-se a pedras -polidas._E,-.na_en tanto,
•não se encontram.Jsolados, pois constituem, na sua sucessãQ,
unidade de um livro, um todo singular. Nietzsche é mestre da
afte da* composição; cada livro tem* o seu clima próprio, cuja pre
sença latente se faz sentir em todos os aforismos, cada um com
o seu ritmo próprio, o seu timbre inconfundível. Nenhum livro de
Nietzsche se assemelha aos outros. Quanto màis olhos e ouvidos
tivermos para isto, tanto maior é o nosso espanto em relação a esta
realização artística. Contudo, ao mesmo tempo aumenta a nossa estra
nheza pelo facto de Nietzsche, que tanto deu aos seus livros, ter
sempre recuado perante a tarefa de uma elaboração sistemática,
conceptual. É apenas _nos_ escritos póstumos que encontramos i
esboços de sistemkpprojectos cie 1 evariiriíiã^ídêias até ao desen-í
voMmento-últimor^-grandoabr;^ 'fornia y
alòrística dos seus 1 ivros^con.sjjtuem__justamen te asjpeòtos ^no.cLYOS I
à'apresentação dÊT sua“filosofia. Nas suas obràs^primas*, que .visam
sempre ao efeito e, ao mesmo tempo, à persuasão, à sedução esté
tica— seja ela a da aprovação consciente ou a do desmesurado
ex!agero—, Njetzsohe escondeu mais do que expôs a sua filosofia.
Se a sua ^obra apenas exprimisse 'experiência existencial
particular de um homem ameaçado, não precisaríamos de ocupar
mos dele. Nietzjsche não seria para nós uma figura vital. Seria,
sim, uma personalidade interessante, um grande homem a quem
se presta tínvda homenagem. Mas se ele é um filósofo, isto é,
alguém que tem a missão de pensar o nosso ser humano, se lhe
foi dado o encargo da verdade da nossa existênoia, nesse caso
ele diz-nos respeito, quer queiramos quer não. Terá Nietzsche,
em relação à humanidade moderna que nós tomos, esta responsa-
12
bjj^dade? Onde se situa ele enquanto pensador? Nunca pode
remos obter resposta satisfatória para estas perguntas, mergulhando
por mais profundamente que seja na personalidade de Nietzsche,
reunindo itodos os testemunhos isobre ele e utilizando a mais pene
trante psicologia. É unicamente através de uma reflexão rigorosa
sobre os seus pensamentos filosóficos que .poderemos conhecer o
lugar de Nietzsche »na história -dos pensadores do Ocidente; só
assim poderemos sentir um pouco da seriedade 'do seu problema.
Também .se nos preocuparmos séria e lealmente corremos perigo.
Nietzsche é perigoso para ’todo aquele que travar relações com
ele e não apenas para os jovens que ficam expostos sem protecção
ao seu cepticismo, à sua desconfiança sem Tmites, à sua arte de
sedução da alma. O perigo em Nietzsohe reside não apenas -n.a sua
natureza encantatória, na musicalidade da sua linguagem persua
siva, mas sobretudo numa inquietante mistura de filosofia e sofismas,
de pensamento original e de desconfiança profunda do pensamento
em relação a si próprio. Nietzsohe é o filósofo que põe ejçn
questão toda ji-história da filosofia ocidental, que vê ina filo-
sõfiTnjnr<<movimêhto profundamente negativo». O pensamento
de Nietzsohe inão segue a via que o pensamento do ser rasgou
no longo decurso dos séculos; Nietzsche duvida desta via e dá
combate à metafísica. No entanto, não duvida da metafísica como
dela duvidam o positivismo da vida quotidiana ou o das ciências.
O seu ataque à metafísica não brota da esfera pré-filosófica da
existência, pois ele não é naiv. Em-Nietzsche, o próprio pensa-
menjO-se volta_ contra a metafísica. Nietzsche procura um novo
começo após vinte e cinco séculos de interpretação do ser pela
metafísica. Na sua Juta..contra .a-metafiVca ocidental,. Nietzsche
continua ainHã ligado aela, «apenas a subverte». Ma,s neste. iiyroj
(focamos precisamente o problema de saber se Nietzsche . é
apenas o metafísico às avessas ou se nele se anirnc:a uma nova
experiência original do ser. Não se resolve este problema em poucas
palavras, é necessária uma longa e aprofundada reflexão, é pre
ciso refazer as vias do penramento de Nietzsche, há que mergulhar
na sua obra e, final e principalmente, ter um debate com ele. Tenta
remos primeiramente uma interpretação provisória, procuraremos
depois, numa revisão atenta dos textos nietzrcheanos, dilucidar os
temas fundamentais do seu pensamento e seguidamente poremos
a questão das relações entre esses temas fundamentais e os pro
blemas fundamentais da filosofia tradic;onal, a questão de se saber
se se reconhece neles o.s elementos do questionamento metafísico,
para finalmente prepararmcs a interrogação sobre aquilo em que
consiste a nova experiência do ser em N,;etzsche.
Nós buscamos a filosofia de Nietzsche. Ela encontra-se oculta
nas seus textos, dissimulada no esplendor da sua linguagem, na
força sedutora do seu estilo, no isolamento dos seus aforismos,
13
escondida atrás da personalidade fascinante que constantemente
atrai para si o nosso olhar. Contudo, para procurar esta filosofia
precisamos, evidentemente, de possuir já um pré-conceito do. que
sèjà a filosofia; não procuramos às cegas, ®em orientação, e tão-
-pouco nos orientamos apenas ipela afirmação do autor quanto ao que
ele designa por «filosofia». O ..pré-conceito que nos guia a todos
nós, porém, é, segundo a história da nossa civilização, a meta
física. A ela, contudo, Nietzsche declarou, guerra. Eis-nos, por
conseguinte ma estranha situação de, na demanda da filosofia de
Nietzsche, perdermos o fio condutor, de perdermos o fio de Ariadne
que nos poderia introduzir no labirinto do pensamento nietzscheano.
Com que direito, porém, falamos nós ainda da filosofia em relação
a ele, se ele rompe com a .tradição .inteita? táfo .$e_deyepa_. ençôjt-
trar e forjar uma nova palavra para aquilo ~que e . a filosofia, de
Nietzsche?—Mas o pensamento de Nietzsche que, na sua paixão,
apaga um enorme espaço de tempo, não anula os primórdios da
filosofia ocidental. Nietzsche regressa a Heráclito. Os seus pri
meiros adversários são os eleatas e Platão, assim como a tradição
metafísica que deles decorre. Heráclito representa a raiz primordial
1 da filosofia de Nietzsche. Ao fim de dois mil e quinhentos anos,
I Heráclito reaparece com a gigantesca pretensão de apagar o longo
1 trabalho intelectual realizado durante esse lapso de tempo e de
; indicar ao género humano um caminho novo e, no entanto, anti-
■ quíssimo, em contradição com toda a tradição. Neslta atitude
I em face da história evidencia-se a elevada consciência de missão de
^Nietzsche, o seu sentimento de ser um homem fatídico, como
jafirma no Ecoe Homo nos seguintes termos:
«Eu conheço a minha sorte. Um dia virá em que se ligará
ao meu nome a recordação de um acontecimento formidável, a
recordação de uma crise como nunca houve na Terra, da mais
profunda colisão das consciências, de uma decisão tomada contra
tudo o que até aos nossos dias havia sido acreditado, exigido, senti-
ficado. Eu não sou um homem, sou dinamite.»
2. A equação fundamental ser=.valor. O ponto de partida:
A Origem da Tragédia no Génio da Música
Afilosofia de Nietzsche encontra-se oculta; está mais encoberta
do que pàtente na sua obra. Evidentemente, em certo sentido, pode
dizer-se de todas as filosofias^ qüè a’ síia formação literária não às
torna simplesmente objectivas e acessíveis a toda a gente, que
: existe uma particular relação de tensão entre, a sua divulgação,
o sentido natural das palavras do discurso e o pensamento filosó
fico» Mas a «filosofia» de Nietzsche não apresenta apenas o
! carácter de uma tal ocultação. Está escondida nunia obra que se
14