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Sumário
CAPA
ROSTO
INTRODUÇÃO
1 - “CREDE NO EVANGELHO”
2 - “EU SOU O CAMINHO”
3 - “O JUSTO VIVERÁ DA FÉ”
4. - “CONHECER A CARIDADE DE CRISTO”
5. - “QUEM ME VIU, VIU O PAI”
6 - “O ESPÍRITO VOS CONDUZIRÁ - À VERDADE COMPLETA”
COLEÇÃO
CRÉDITOS
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INTRODUÇÃO
As páginas que se seguem estudam o mistério da fé nos seus diversos aspectos,
assim como podemos conhecê-los pelos livros do Novo Testamento. Buscamos ser o
mais fiel possível aos textos do Novo Testamento.
As duas primeiras meditações inspiram-se nos Evangelhos sinóticos, as duas
seguintes na teologia do apóstolo Paulo, e as duas últimas nos escritos do evangelista
João. Os diversos livros do Novo Testamento não se repetem, nem se contradizem.
Todos são necessários, se quisermos uma visão completa e harmoniosa do mistério da
fé. Cada livro, tomado isoladamente, nos daria uma concepção parcial e
desequilibrada da fé.
A geração apostólica não se preocupou em elaborar uma síntese da doutrina cristã.
Contentou-se com uma justaposição de pontos de vista complementares. Quisemos
manter esse estado disperso e não acabado da teologia neotestamentária. A cada um é
licito fazer uma nova tentativa de síntese teológica. Mas esse propósito parece
supérfluo a quem pretende apenas meditar as Sagradas Escrituras para voltar às fontes
da fé e da vivência cristã.
O leitor não encontrará aqui uma teologia da fé, mas apenas fragmentos para uma
eventual teologia. Se sentir em si a vocação de teólogo sistemático, deverá ir além de
nosso propósito e recorrer às experiências de dois mil anos de trabalho teológico
cristão.
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1 - “CREDE NO EVANGELHO”
Jesus apareceu aos olhos do povo de Israel como profeta, e grande profeta, não há
dúvida. “Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27), perguntou ele aos
discípulos. Responderam-lhe: “Uns dizem que és João Batista, outros, que és Elias,
outros, ainda, que és um dos profetas” (Mc 8,28). Depois do grande sinal dado em
Naím, todos proclamaram: “Um grande profeta surgiu entre nós, e Deus visitou o seu
povo” (Lc 7,16). Por sua vez, Jesus aplica a si mesmo o provérbio: “Não há profeta
sem honra, a não ser na própria pátria, entre os parentes e na sua casa” (Mc 6,4). Isso
foi depois de constatar que sua cidade e sua família não acreditavam nele.
Jesus foi e é mais do que profeta. Mas o que ele propriamente permanece para nós
é misterioso. Por isso, foi necessário que ele aparecesse sob a figura e em
prolongamento de outros papéis, que não exprimem tudo o que ele era e é, mas que
constituem o caminho para conhecê-lo. Prolongando a linha dos profetas, ampliando
a imagem dos profetas, seguiremos pelo menos um caminho que nos permitirá
compreender algo dele. Podemos aplicar a Jesus as categorias da missão profética
sem perigo de erro, com a condição de ultrapassar-lhes os limites. Assim fizeram os
evangelistas. O próprio Cristo encaminhou os seus apóstolos nesse sentido.
Ora, que faz um profeta? Que pede um profeta? Um profeta pede a fé. Insiste,
exige, exorta, ameaça, suplica e até chora porque tem de pedir a fé na sua mensagem.
Não lhe é possível demonstrar a verdade de sua mensagem, fornecer às pessoas
incrédulas, céticas ou desconfiadas as provas da verdade de sua mensagem.
Conhecemos as torturas morais que sofreram os profetas do Antigo Testamento por
essa incapacidade de comprovar a verdade de suas declarações.
E por que a fé? Porque o profeta anuncia acontecimentos futuros. O profeta
anuncia o que Deus vai fazer: o que Deus resolveu fazer no meio da humanidade.
Caso se tratasse apenas de anunciar esses atos do Criador que se renovam
ciclicamente na criação, como os acontecimentos da natureza, a fé não seria
necessária. Bastaria a contemplação filosófica das obras da criação. Mas o profeta
anuncia novidades. Anuncia a realização de desígnios ocultos de Deus. Anuncia
acontecimentos imprevisíveis, que não se acham contidos na evolução normal das
realidades terrestres. Anuncia acontecimentos que só podem provocar admiração e
surpresa, e até escândalo.
Como o profeta chegou a saber das intenções ocultas de Deus? Os documentos
literários que possuímos não nos permitem reconstituir as experiências psicológicas
que acompanharam a missão profética. Jamais saberemos o que se passou com os
profetas, em sua psicologia, a não ser em parte, por analogia com as experiências
místicas modernas, das quais os beneficiados nos deixaram alguns documentos
analíticos. Mas a própria distância cultural entre os profetas do Antigo Testamento e
os místicos modernos nos leva a relativizar muito tais analogias. Confessemos que
nunca saberemos de que modo Deus criou na mente dos profetas a convicção, a
certeza, a quase evidência de que algo ia acontecer por intervenção dele: se foi em
forma de pressentimento, de iluminação repentina ou de lento crescimento de uma
certeza interior. Em todo caso, o profeta soube e anunciou.
Ora, o futuro é indemonstrável. Tratando-se de um futuro realmente novo, que de
nenhuma maneira se pode prever por extrapolação dos fatores já atuantes na história,
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não existem argumentos para confirmar a previsão. O futuro ainda não existe.
Portanto, não é propriamente objeto de nossa inteligência. Como a Bíblia o proclama
tantas vezes, só Deus conhece o futuro, a tal ponto que, se alguém anunciou o futuro,
e esse anúncio foi confirmado pelos fatos, é sinal de Deus.
O profeta vê o futuro. Vê aproximar-se o ato de Deus, do qual vai depender o
futuro do ser humano, e queria comunicar sua visão aos seus irmãos e irmãs. Mas
somente pode apelar para a fé deles. Não consegue comunicar-lhes o próprio
sentimento de evidência.
É verdade que Deus entrega nas mãos de seus profetas o poder de fazer sinais.
Mas os próprios sinais se referem ao ato futuro de Deus. Os sinais permanecem
incompreensíveis para quem não aceita a perspectiva nova que se abre sobre o futuro.
Para quem recebe a mensagem com fé, os sinais dados pelos profetas são claros e
confirmam as palavras. Para quem se nega a receber a mensagem, os sinais são
apenas fatos aberrantes e sem significado. Serão objetos de curiosidade, de admiração
ou de escândalo, ou simplesmente passarão desapercebidos. Vejamos como as várias
categorias do povo eleito reagiram diante dos sinais dos profetas e de Jesus. A nova
perspectiva de um novo futuro dá a chave dos sinais realizados pelos profetas. Para
quem não acredita, os sinais em nada ajudam: nunca criam a convicção, nem
substituem a fé.
Diremos, então, que a fé é simplesmente confiança no profeta? Não. A fé não se
apoia nas qualidades do profeta. Ela é iluminação interior pela qual a palavra do
profeta se revela de repente como sendo a verdade.
Na fé, a pessoa percebe de repente que seu destino será totalmente transformado –
melhor dizendo, que acaba de ser transformado, pela manifestação do desígnio de
Deus. Percebe que se realizou na sua vida a palavra de Jesus a Pedro: “Quando tu eras
moço cingias-te a ti mesmo e andavas por onde querias; quando, porém, fores velho,
estenderás as mãos, outro te atará e te levará para onde não queres” (Jo 21,18).
* * * * *
Para manifestar-se aos seus, Jesus assume o papel de profeta. Ele também anuncia
o que vai acontecer. Esse anúncio ultrapassa e completa todos os anúncios anteriores.
Pois o ato de Deus que ele anuncia é a conclusão de todos os atos anteriores, o ato em
que todos adquirem seu significado definitivo. Jesus vem e entra na humanidade e
diz: “Completou-se o tempo. Chegou o reino de Deus. Convertei-vos e crede no
Evangelho” (Mc 1,15). Isto é: Deus vai instalar seu reino: o seu advento é iminente,
tão iminente que as primeiras manifestações já estão secretamente presentes.
Jesus voltou a Nazaré, sua cidade. Esteve de novo no meio de seus parentes e
conhecidos. Explicou-lhes a sua mensagem. Procurou convencê-los. Mas “não creram
nele” (Mc 6,3). E Jesus “admirou-se da incredulidade deles” (Mc 6,6). O evangelista
acrescenta: “E não pôde operar nenhum milagre, senão o de curar alguns doentes,
impondo-lhes as mãos” (Mc 6,5). Consta que os sinais seguem a fé. Os sinais são
dados aos que creem. Diante da incredulidade dos seus, Jesus fica paralisado: os
sinais esvaziam-se de seu conteúdo.
Por que a incredulidade dos familiares de Jesus? Podemos compará-la com a
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incredulidade dos judeus no tempo de Jeremias, ou com a incredulidade dos hebreus
para com Moisés no deserto, ou, ainda, com a incredulidade dos contemporâneos de
Noé. As situações são semelhantes. Em todas essas circunstâncias, a visita de Deus é
iminente, mas as aparências são tão tranquilas, os acontecimentos tão normais, que
ninguém acredita numa mudança possível.
Jesus parecia tão humano, tão normal. O mundo continuava tão normal, tão
habitual. As profecias de Jesus pareciam tão improváveis. Tão improvável parecia o
fato de ele ter recebido comunicação divina, que a interpretação de seus familiares
para explicar-lhe as palavras era a de que era louco. A visita de Deus era iminente,
mas o caminhar do mundo permanecia inalterado. O reino de Deus estava próximo.
As primeiras realizações já estavam presentes. Mas esse reino era a tal ponto discreto,
e respeitava a tal ponto a marcha ordinária das coisas, que passou despercebido aos
olhos da maioria.
Mas os discípulos perceberam. O encontro com Jesus despertou neles o
pressentimento de que uma grande novidade estava aparecendo. A palavra e a
presença dele despertou-lhes no fundo da alma uma luz nova. Entre ele e eles se
estabeleceu uma comunicação misteriosa, que suscitou a convicção da verdade.
Quando Jesus disse a Simão e a seu irmão André: “Segui-me e vos farei
pescadores de homens” (Mc 1,17), eles perceberam que uma coisa terrível e decisiva
estava acontecendo, que essas palavras iam mudar sua vida. Além de todas as
circunstâncias visíveis, além das aparências visíveis desse homem que os interpelava,
perceberam que era a hora de Deus. O dia de Deus tinha chegado. Os outros comiam
e bebiam, trabalhavam e se divertiam como sempre. Eles sentiram que a esperança da
humanidade estava aí.
Assim foi também com aquela mulher humilde e iletrada que quis tocar na veste
de Jesus. “Jesus lhe disse: Filha, tua fé te salvou. Vai em paz e fica curada da tua
enfermidade” (Mc 5,34). Não teve fé porque ficou curada, mas ficou curada porque
teve fé. Segundo o modo de sua inteligência e de sua cultura, essa mulher percebeu
em Jesus os primórdios do reino de Deus. Acreditou no anúncio do reino de Deus.
Aos que creem, os sinais são dados como testemunho e penhor do reino iminente.
* * * * *
Por um lado, poderíamos pensar que Jesus tornou a fé nele mais fácil pela
transparência dos sinais que fez. Por outro lado, consta que o conteúdo do anúncio o
tornava mais impenetrável. Pois Jesus não anuncia somente o advento do reino. À
medida que o tempo passa e sua mensagem suscita reações, Jesus se vê forçado a
revelar os caminhos insondáveis e incríveis do reino. “Ele começou a ensinar-lhes
que o filho do homem deveria sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos
príncipes dos sacerdotes e escribas, ser entregue à morte...” (Mc 7,31; ver também Mt
9,31; 10,33-34).
Com essas condições, os acontecimentos não somente não comprovam o anúncio,
mas parecem desmenti-lo claramente. Pela morte e pelo martírio, Jesus dá a
impressão de ser absorvido pela banalidade da história: mais uma vítima e nada mais;
mais uma ilusão e nada mais. Tudo volta à normalidade.
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Qual será o sinal capaz de vencer o desânimo e o desconcerto em que o fracasso
visível de Jesus deixa os discípulos? Somente a ressurreição. Aos que pedem um sinal
no céu, Cristo responde: “Geração má e adúltera! Pede um sinal e não lhe será dado
senão o de Jonas” (Mt 16,4).
Sinal desconcertante também. Se Jesus ressuscitou, claro está que algo novo
apareceu, e a história do mundo ficou totalmente transformada. Mas, por outro lado,
Jesus ressuscitado apareceu somente aos discípulos, dentro de um ambiente de fé. A
ressurreição de Jesus não dará a fé aos que não a têm. Ao contrário, o fato da
ressurreição só será aceito e assimilado pelos verdadeiros discípulos. Supõe a fé para
ser reconhecido. Pois a ressurreição não teria significado fora da perspectiva do reino
de Deus que se espera. Se não tivéssemos a esperança do reino e a convicção de que o
reino se aproxima, não saberíamos nem interpretar o testemunho dos apóstolos sobre
a ressurreição.
Assim consta que a morte e a ressurreição de Jesus modificam notavelmente o
anúncio profético, sem destruí-lo. A fé cristã ainda consiste em crer que o reino de
Deus se aproxima e em esperá-lo realmente, com disposição firme, apesar de que não
se possa comprovar. Consiste também em crer que ele já chegou em parte, está
caminhando misteriosamente entre nós e está crescendo de acordo com as leis ocultas
dos desígnios de Deus. Atualmente, o reino de Deus está presente segundo o modo da
ressurreição de Jesus, ou seja, de modo oculto e imperceptível, mas real e garantido.
Está presente segundo o modo da perseguição e da morte. Ameaçado sempre,
condenado à morte, sofrendo a paixão, humilhado sempre.
Foi essa fé no reino que Jesus procurou inculcar nos seus discípulos por meio das
parábolas. “Acontece com o reino de Deus como ao homem que lança a semente à
terra: durma ele ou esteja de pé, de noite ou de dia, a semente germina e cresce, sem
que se saiba como. A terra por si mesma produz primeiro o colmo, depois a espiga, e
por fim a espiga cheia de trigo. E quando o fruto o permite, mete-se logo a foice,
porque chegou a ceifa” (Mc 4,26-29).
Não basta crer que o reino está chegando. É preciso crer que já entrou neste
mundo; já está atuando; já está preparando seu advento futuro. É preciso saber
reconhecê-lo nas aparências humildes de sua presença atual, não se deixar enganar
pelo exterior. O mundo continua como sempre. Mas dentro dele atuam forças e
energias novas.
Quem não está disposto a dar a Deus o crédito de sua fé, não pode compreender
essas parábolas. Para ele, cada uma delas será mais escandalosa do que a outra. Quem
esperava outra manifestação do reino de Deus, fica desnorteado. “Se, portanto, lhes
falo em parábola, é porque, olhando, não percebem, e, ouvindo, não escutam nem
compreendem. Cumpre-se neles a profecia de Isaías: Ouvireis e não entendereis,
olhareis e não percebereis” (Mt 13,13-14).
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Por que será que alguns chegam como que espontaneamente ao conhecimento do
reino, e outros não? Podemos atribuir à graça de Deus a discriminação? A graça da fé
não seria oferecida a todos? Sim, é dada a todos. A separação não vem de Deus, mas
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sim das disposições das criaturas humanas.
A primeira disposição para a revelação do reino de Deus é a atenção às promessas,
primeira parte da esperança. A esse respeito, o evangelho da infância de Lucas é
particularmente significativo. O autor mostra uma série de pessoas às quais foi dado
conhecer o advento do reino de Deus. São pessoas que o esperavam. Viviam na
esperança, isto é, na espera da realização das promessas.
Elas faziam como Maria, que “conservava todas estas recordações com carinho, e
as meditava em seu coração” (Lc 2,19). “Sua mãe conservava fielmente todas essas
coisas no coração” (Lc 2,51). O que Deus fez no passado tem valor de promessa. Os
desígnios de Deus nunca permanecem inacabados. Se Deus iniciou uma obra, Ele a
levará até o fim. Nesse sentido é que os sábios do Antigo Testamento deram força de
promessa a todas as realizações divinas. Aliás, os atos do Antigo Testamento não são
as únicas promessas. Cada ser humano pode ouvir os ecos das promessas divinas no
próprio coração através da consideração da própria vida e da vida do mundo. Aí, cada
um poderá perceber o pressentimento de uma visita divina. Mas é preciso recolher
com atenção essas promessas e meditá-las.
Quem permanecer atento às promessas, quem meditar as palavras, como Maria,
Simão ou Ana, certamente reconhecerá no anúncio de Jesus a palavra decisiva. Não
estará adormecido quando vier o Esposo, mas estará com a lâmpada acesa. A fé
iluminá-lo-á quando ressoar a palavra do Evangelho.
Há também quem não atribua valor às promessas. Sua vista é limitada aos
horizontes do presente e do visível. Esse não é capaz de perceber os sinais
precursores das coisas novas que Deus preparou. A ele se aplica a sentença do
Mestre: “Estes são os que ouvem a palavra, mas as preocupações deste mundo, a
sedução das riquezas e outros apetites desordenados se introduzem neles, e eles
sufocam a palavra, e esta não produz frutos” (Mc 4,19).
Assim é que a disposição de espera é intimamente ligada à despreocupação de
todas as coisas imediatas. Não foi por acaso que Jesus foi reconhecido e aceito pelos
pobres. O próprio Jesus constatou: “Como será difícil aos que têm riquezas entrar no
reino de Deus”. Os discípulos ficaram atônitos com essas palavras. Mas Jesus tornou
a dizer: “Filhos, como é difícil aos que confiam nas riquezas entrar no reino de Deus.
É mais fácil a um camelo passar pelo orifício duma agulha que a um rico entrar no
reino de Deus” (Mc 10,24-25).
Daí as bem-aventuranças dirigidas aos pobres. Pois todas as bem-aventuranças se
dirigem aos pobres: são eles os que choram, os humildes, os famintos e sedentos de
justiça etc., exatamente os pobres de Deus celebrados já pelo Antigo Testamento. Por
que são bem-aventurados os pobres? Porque os pobres estão dispostos a esperar e
espreitar os sinais do advento do reino. Estão propensos a receber com fé o anúncio
do advento de Deus e a reconhecê-lo apesar das aparências humildes.
Foi a esses pobres que Jesus disse: “Não estejais preocupados relativamente à
vossa vida, com o que haveis de comer; nem relativamente a vosso corpo, com o que
havereis de vestir... Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas
coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,25-33).
Chegamos, assim, à terceira disposição para a fé: faz-se mister procurar o reino de
Deus. “O reino dos céus é como um comerciante que anda à procura de belas perólas;
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encontrada uma de grande valor, vai, vende tudo o que possui e a compra” (Mt 13,45-
46).
Foi do reino de Deus, de seu anúncio e da fé que Jesus falou quando disse aos
discípulos: “Eu vos digo: pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-
á. Pois quem pede recebe; quem busca acha; e a quem bate, será aberto” (Lc 11,9-10)
Por isso, incessantemente, os discípulos dirigem ao Pai, que está nos céus, esta
oração: “Venha o Teu reino” (Mt 6,10).
* * * * *
Ter fé é crer que Deus nos visitará e entrará na nossa vida, e permanecer
aguardando os acontecimentos para saber aceitar neles o reino de Deus.
O reino de Deus não consta de milagres nem de maravilhas sensíveis. Podem
ocorrer milagres ou sinais sensíveis. Já sabemos que esses sinais somente se tornam
compreensíveis à luz da fé e, portanto, não são o fator que provoca a fé.
O reino de Deus vem no meio dos acontecimentos ordinários da vida. Por isso é
que muitos não o reconhecem, nem percebem a visita de Deus. O reino de Deus não
precisa interromper a sucessão dos fatos simples da vida de cada dia. Não precisa
interromper os efeitos das causas naturais. Deus irrompe na vida individual, em
primeiro lugar. Ele sabe orientar os acontecimentos. Não diremos que o reino de
Deus consiste no resultado dos acontecimentos naturais. É claro que não consiste
nisso. Mas Deus sabe ao mesmo tempo revelar e realizar o seu reino passando por
esses acontecimentos.
Que é o reino de Deus? Um mundo em que Deus reina, pessoas sobre as quais
Deus reina, que se deixam conduzir por Ele, nas quais a justiça e a misericórdia de
Deus se manifestam. Para que Deus reine não é necessário passar para outro mundo.
Não é necessário ter acesso a outro mundo diferente do nosso. Em vez disso, acontece
que Deus vem no meio do nosso mundo material, carnal, terrestre. Deus é capaz de
fazer dos atos da vida humana os instrumentos de seu reino. Precisamos crer que Ele
pretende realizar exatamente isso na nossa existência.
Por isso, devemos encarar os acontecimentos com um olhar mais profundo, que
seja capaz de perceber, além do alcance imediato do acontecimento, o significado que
Deus pretende dar-lhes.
Os acontecimentos serão para nós um apelo a uma renovação total de vida. A
terra, os vegetais, os animais repetem sempre o mesmo modo de ser. A história da
natureza é cíclica. Repete sempre os mesmos gestos. Contenta-se com desenvolver as
energias dadas no início. Mas o ser humano é diferente. Tem a capacidade e a missão
de construir uma vida melhor em si mesmo e nos outros. Todas as civilizações
tiveram essa convicção. Mas desde Abraão – e, mais ainda, desde Jesus – sabemos
que o próprio Deus está nos movendo, despertando em nós mais liberdade para que
sejamos realmente cada vez mais humanos numa luta constante contra todas as forças
que se opõem a essa vocação. A graça de Deus faz com que a novidade irrompa na
história humana.
Os acontecimentos trazem-nos o anúncio dessa novidade: de que é possível e
necessário recomeçar a vida por uma mudança radical de atitude.
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