Table Of Contento livro Aabolição de Emília Viotti daCosta,
publicado originalmente em 1982,que agora
Dn
re~parece acrescido de um novocapítulo,
aao
jé nasceu como um modelo aser seguido
por todos os historiadores que se impuserem
adifícil tarefa detranscender alinguagem
n·o
llcadêmica sem perder aconsistência
EMÍLIA VIOTII DA COSTA
historiográfica eaqualidade estilística.
Redigido com oobjetivo deesclarecer opúblico
leigo ascomplexidades políticas, econômicas,
aLl"
sociais eideológicas doprocesso histórico que rreira
culminou com aabolição daescravidão no luaCoelho
Brasil, olivro, escrito por uma das maiores ndes
hezan
historiadoras brasileiras, como se poderia
oMortatti
esperar, nem de longe caivítima da
ão Sposito
simplificação. Muito pelo contrário; além de
lognesi
apresentar com maestria uma poderosa síntese
Borges
do processo daabolição daescravidão, enkel -
encontramos ao longo dotexto informações [o
precisas eanálises cuidadosas que honram A ABOLIÇAO
ocompromisso do historiador de redigir uma
história acessível dealto nível. Oesmiuçamento Dog
dasdiferentes fases daabolição, desuas lutas
políticas eparlamentares, dadiscussão das leis
emancipacíonístas edesuas medidas
protelatórias, daascensão dosmovimentos
populares edasrebeldias escravas aparece 8a ed. revista e ampliada
recheado de informações precisas eeruditas,
que tornam este um texto aser desfrutado
tanto pelo estudante como pelo historiador.
Logo no início dotexto, por exemplo, ao
focalizar os primeiros lampejos deuma
consciência antiescravista noBrasil, Emilia
Viotti nos lembra daatuação pioneira de
Hipólito daCosta naelaboração de uma crítica
b escravidão já em 1811,informação esta quase
esquecida atualmente. Assim segue olivro,
npresentando as conjunturas históricas que
justificoram aemergência dos movimentos
llbolícionistas materializadas em um amplo
~
qllndro: dils leis deproibição aotráfico
editora
IlIlorno1Cion!l1elegislação emancipacionista às
unesp
nMIIcrnoWllfill Clscravano longo do
111111111111,1111
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CIP - Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dosEditores de Livros, RJ
C87a
8.ed.
Costa, Emília Viotti da
A abolição/Emília Viotti da Costa. - 8ª ed. rev. e ampl. - São
Paulo: Editora UNESP, 2008. Para
il.
]ordana
Inclui bibliografia
Miguel
ISBN 978-85-7139-832-0
]úlia
1.Escravidão - Brasil. 2.Brasil- História - Abolição daescravi
dão, 1888. I.Título.
08-2425. CDD: 981.04
CDU: 94(81)
Editora afiliada:
EJUJ:EI:)
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I'" I\IIII'IIC'I\ I.nUnnyelCaIibe Editoras Universitárias
~
sUMÁRIo
~
9 Introdução
13 Capítulo 1
Da defesa da escravidão à sua crítica
23 Capítulo 2
A abolição do tráfico
33 Capítulo 3
A busca de alternativas
39 Capítulo 4
O abolicionismo. Primeira fase: 1850-1871
51 Capítulo 5
O abolicionismo. Segunda fase: a Lei do Ventre Livre
6I Capítulo 6
Do carro de boi à ferrovia
77 Capítulo 7
O abolicionismo. Terceira fase: a Lei dos Sexagenários
95 Capítulo 8
Abolicionismo e abolicionistas
III Capítulo 9
Heróis anônimos. O protesto do escravizado.
A abolição
127 Capítulo 10
Depois do fato
133 Capítulo 11
O impacto da abolição
INTRODUÇÃO
139 Cronologia
141 Bibliografia
A 8 de maio de 1888, o ministro da Agricultura, conse
lheiro Rodrigo Augusto da Silva, apresentou à Câmara dos
Deputados uma proposta do Executivo declarando extinta a
escravidão no Brasil. A Comissão, nomeada pela Câmara
a fim de estudar a proposta, imediatamente deu parecer fa
vorável, requerendo urgência para a votação do projeto. No
relatório apresentado à Câmara, o deputado Duarte de Aze
vedo, falando em nome da Comissão, afirmou que esta esta
va convencida de que era impossível retardar por um só
momento "a longa aspiração do povo brasileiro no sentido
de satisfazer uma necessidade social e política"; caracterizava
ainda a abolição como "um preito de homenagem prestado à
civilização do século e à generosidade de coração de todos
aqueles que amam o bem da humanidade". Essas palavras
foram acompanhadas por aplausos e exclamações de júbilo
vindas das galerias e dos recintos da Câmara. Mais de 5 mil
pessoas tinham-se reunido nos arredores da Câmara para
acompanhar a discussão.
Depois de alguns debates e apresentação de emendas, a
Câmara, dispensando as formalidades habituais, conseguiu,
~mprazo recorde, pôr a proposta em votação. Oitenta e três
deputados votaram favoravelmente ao projeto. Apenas nove
votaram contra. Eram todos membros do Partido Conserva-
10 EMÍLIA VIOTII DA COSTA A ABOLIÇÃO 11
dor e, com exceção de um deputado por Pernambuco, todos raças, comparável àquela que resultara nos massacres de São
os demais representavam a província do Rio de Janeiro - o Domingos, um século antes.
último reduto da escravidão. Os fazendeiros de café das áreas As catástrofes anunciadas por aqueles que esperavam ver
decadentes do vale do Paraíba expressavam assim, por inter a economia do país destruída também não ocorreram.
médio de seus representantes na Câmara, sua oposição à lei Depois de breve período de desorganização, a vida se nor
que viria dar um golpe de morte em suas fortunas já abaladas. malizou. Nas cidades e nas fazendas, a produção reassumiu o
ritmo anterior.
Para eles, a abolição sem indenização representaria um golpe
do qual dificilmente se recuperariam. Nada podiam fazer, Para uns poucos fazendeiros, a abolição significou a ruí
porém, para impedir a aprovação da lei. Era impossível con na e a perda de status: "um golpe terribilíssimo", na opinião
ter o entusiasmo que empolgara outros mais felizes para quem de um deles. "O assalto mais inclemente que até hoje se per
a abolição não representava abalo fundamental. petrou no Brasil contra a propriedade privada", no dizer de
Depois de aprovado pela Câmara, o projeto foi encami um descendente de senhores de escravos. Os que esperavam
nhado ao Senado, onde foi igualmente recebido com grande ser indenizados pela perda de seus escravos viram seus so
alegria. Imbuídos do mesmo senso de urgência, os senadores nhos frustrados. Desiludidos, voltaram-se contra o governo
aprovaram-no a 13 de maio, encaminhando-o à Regente, que os levara à ruína. Mas seu ressentimento e protesto per
princesa Isabel. Na tarde do mesmo dia, a princesa assinava deram-se entre as exclamações de júbilo dos escravos e de
a lei que ficou conhecida na história do Brasil sob a designa todos aqueles que se haviam identificado com a causa da
abolição.
ção de LeiÁurea. Em regozijo pela passagem da lei, o dia 13
de maio foi considerado feriado nacional e a Câmara entrou Na resposta à Fala do Trono, apresentada pela Câmara
em recesso por um período de cinco dias. dos Deputados em junho de 1888, os deputados, dirigindo
Mais de 700 mil escravos, em sua maioria localizados nas se à princesa Isabel, assim se expressaram:
províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, fo
Desfizemo-nos Senhora, do ominoso legado que apenas por
ram assim, do dia para a noite, transformados em homens
constrangimento da indústria agrícola havíamos mantido atéhoje,
livres. Nas senzalas e nos quilombos os negros festejaram sua
restituímos àpersonalidade humana osforos integrais desuadigni
liberdade. Os jornais louvaram a lei. Muitas páginas foram
dade emface do princípio de igualdade política; consagramos oda
escritas em sua comemoração. Nas ruas, a população cele
uniformidade da condição civil e eliminamos assim da legislação
brou ruidosamente a emancipação dos escravos.
a única exceção repugnante com a base moral do direito pátrio, e
Dessa forma, por um simples ato legislativo endossado
com o espírito liberal das instituições modernas.
pela Coroa e aclamado pela maioria da população, elimina Esse fato, que é testemunho do nosso adiantamento social e
va-se uma instituição que vigorara por mais de três séculos. político, eque deve acrescentar aconsideração que oBrasil mere
Por mais longos e difíceis que tivessem sido os caminhos da cia das nações civilizadas, foi ruidosamente aplaudido dentro e
Abolição, chegava-se ao fim, sem que fosse preciso lançar o fora do Império. (Falas doTrono, desde oano de 1823 até oano de
1889. São Paulo, 1977.)
país em uma guerra civil, como sucedera nos Estados Uni
dos. Lá os escravos só conquistaram sua liberdade depois de
longa e cruenta guerra, na qual os proprietários de escravos e Com essas palavras, a Câmara dos Deputados dava por
seus aliados defenderam, de armas na mão, sua propriedade encerrada sua responsabilidade em relação aos escravos.
ameaçada pelo governo da União. E, a despeito dos receios Cumprira sua missão: libertar os homens brancos do peso da
qUl' alguns proprietários de escravos sentiram por ocasião da escravidão e das contradições que existiam entre a escravi
:l!1o!i\':lo, o p:lfs não se viu às voltas com uma guerra entre as dão e os princípios liberais adotados pela Constituição brasi-
12 EMÍLIA V10TT1 DA COSTA
leira, em vigor desde 1824. Removera a pecha de atraso que
desmoralizava a Nação diante do mundo. O Brasil era o últi
mo país do mundo ocidental a eliminar a escravidão! Para a
maioria dos parlamentares, que se tinham empenhado pela
abolição, a questão estava encerrada. Os ex-escravos foram
abandonados à sua própria sorte. Caberia a eles, daí por dian
te, converter sua emancipação em realidade. Se a lei lhes
garantia o status jurídico de homens livres, ela não lhes for
CAPÍTULO 1
necia os meios para tomar sua liberdade efetiva. A igualdade
DA DEFESA DA ESCRAVIDÃO
jurídica não era suficiente para eliminar as enormes distân
cias sociais e os preconceitos que mais de trezentos anos de À SUA CRÍTICA
cativeiro haviam criado. A Lei Áurea abolia a escravidão
mas não seu legado. Trezentos anos de opressão não se elimi
nam com uma penada. A abolição foi apenas o primeiro pas
so na direção da emancipação do negro. Nem por isso dei
xou de ser uma conquista, se bem que de efeito limitado.
É a história dessa conquista que queremos narrar. Durante três séculos (do século XVI ao XVIII) a escravi
Quando examinamos os acontecimentos que levaram à dão foi praticada e aceita sem que as classes dominantes ques
abolição da escravatura, nos vem à mente uma série de ques tionassem a legitimidade do cativeiro. Muitos chegavam a
tões: por que se repudiava, em 1888, uma instituição que justificar a escravidão, argumentando que graças a ela os ne
durante séculos fora aceita sem objeção? Por que tanta ur gros eram retirados da ignorância em que viviam e converti
gência no encaminhamento do projeto? Como explicar que dos ao cristianismo. A conversão libertava os negros do pe
a maioria dos parlamentares, muitos dos quais tinham sido cado e lhes abria a porta da salvação eterna. Dessa forma, a
eleitos com o apoio de senhores de escravos, aprovasse a lei, escravidão podia até ser considerada um benefício para o ne
sem maiores debates? Por que os senhores de escravos não gro! Para nós, esses argumentos podem parecer cínicos, mas,
tentaram impedir, de armas na mão, o ataque à sua proprie naquela época, tinham poder de persuasão. A ordem social
dade que a própria Constituição garantia? Que papel desem era considerada expressão dos desígnios da Providência Divi
penharam os negros e os escravos nesse processo? Por que a na e, portanto, não era questionada. Acreditava-se que era a
abolição tardou tanto a ser decretada no Brasil? São essas vontade de Deus que alguns nascessem nobres, outros, vilões,
algumas das questões a que pretendemos responder nas pági uns, ricos, outros, pobres, uns, livres, outros, escravos. De
nas que se seguem. acordo com essa teoria, não cabia aos homens modificar a
ordem social. Assim, justificada pela religião e sancionada pela
Igreja e pelo Estado - representantes de Deus na terra -, a
escravidão não era questionada. A Igreja limitava-se a reco
mendar paciência aos escravos e benevolência aos senhores.
Não é difícil imaginar os efeitos dessas idéias. Elas permi
tiam às classes dominantes escravizar os negros sem proble
mas de consciência. Os poucos indivíduos que no Período
Colonial, fugindo à regra, questionaram o tráfico de escravos
14 EMÍLIA VI0TTI DA COSTA
A ABOLIÇÃO 15
e lançaram dúvidas sobre a legitimidade da escravidão, fo
siasmo as novas idéias revolucionárias. No bojo dessas idéias
ram expulsos da Colônia e o tráfico de escravos continuou
havia, entretanto, algumas contradições fundamentais. Como
sem impedimentos. Apenas os próprios escravos questiona
conciliar o direito de propriedade que os senhores tinham
vam a legitimidade da instituição, manifestando seu protesto
sobre seus escravos com o direito que os escravos tinham (co
por meio de fugas e insurreições. Encontravam, no entanto,
mo homens) à sua própria liberdade? Como conciliar a su
pouca simpatia por parte dos homens livres e enfrentavam
jeição do escravo com a igualdade jurídica, que, segundo
violenta repressão.
a nova filosofia, era um direito inalienável do homem?
Muito cedo os escravos e os negros livres perceberam o
significado revolucionário das novas idéias. Muito cedo, tam
Liberalismo e escravidão
bém, os senhores de escravos deram-se conta do dilema que
a prática revolucionária criava. Quando os inconfidentes
As doutrinas que justificavam a escravidão foram, no
mineiros discutiam as possibilidades de um levante contra a
entanto, abaladas no decorrer do século XVIII. Em sua luta
administração portuguesa, eles se perguntavam se seria pos
pela destruição do Antigo Regime, a burguesia européia criou
sível promover uma insurreição contra Portugal sem primei
conceitos novos, que vieram pouco a pouco solapar a visão
ro libertar os escravos. Reconheciam o quanto a elite colo
de mundo que justificava a ordem tradicional. Com o intui
nial dependia do trabalho deles, mas, ao mesmo tempo,
to de combater os antigos privilégios que cimentavam a or
receavam que, em caso de insurreição, seria impossível con
dem política e social existente, os revolucionários do século
ter a massa de escravos que facilmente se empolgaria com as
XVIII criticaram a teoria que atribuía aos reis um poder divi
idéias de liberdade e igualdade.
no e proclamaram a soberania dos povos, exigindo a criação
Essa preocupação não era infundada, como ficou demons
de formas representativas de governo. Afirmaram ainda a
supremacia das leis e os direitos naturais do homem, entre os trado alguns anos mais tarde. Em 1798, mulatos e pretos li
quais o direito de propriedade, de liberdade e de igualdade vres e escravos foram condenados na Bahia por defenderem
de todos perante a lei. "os abomináveis princípios franceses" e por tramarem contra
No pensamento revolucionário do século XVIII encon os poderes constituídos. Os revolucionários da conjura baia
tram-se as origens teóricas do abolicionismo. Até então, a na (como muitos outros revolucionários daí por diante) não
escravidão fora vista como fruto dos desígnios divinos; agora tinham lido os autores da Ilustração: Rousseau, Voltaire, Mon
ela passaria a ser vista como criação de vontade dos homens, tesquieu, Raynal, que tanto entusiasmavam os intelectuais
portanto transitória e revogável. Enquanto no passado con da época, mas tinham entendido, à sua maneira, a mensa
siderara-se a escravidão um corretivo para os vícios e a igno gem de liberdade e igualdade que a nova ideologia revolu
rância dos negros, via-se agora, na escravidão, sua causa. In cionária continha. Certamente pouco sabiam sobre a França
vertiam-se, assim, os termos da equação. Passou-se a criticar ou sobre os franceses, mas tinham feito destes os símbolos de
a escravidão em nome da moral, da religião e da racionalida almejada liberdade. A repressão desencadeada contra os que
de econômica. Descobriu-se que o cristianismo era incom defendiam "os princípios franceses" parecia confirmar ainda
patível com a escravidão; o trabalho escravo, menos produ mais a validade desses símbolos. As autoridades identifica
tivo do que o livre; e a escravidão uma instituição corruptora vam-se com a opressão, os novos princípios, com a liberda
da moral e dos costumes.
de. Dessa forma, a própria repressão contribuiu para dar maior
Enquanto na Europa a revolução burguesa produzia seus força a essas idéias.
frutos, no Brasil, os colonos que se sentiam cada vez mais
Como sempre acontece na história, o discurso ideológi
reprimidos pela política metropolitana acolhiam com entu-
co tinha muitas leituras e os símbolos, múltiplos significados.
16 EMÍLIA VIOTTI DA COSTA A ABOLIÇÃO 17
Cada grupo social entendia o novo ideário revolucionário à tomyr~domin}nte econdenaram a escravidão, não eram típi
cos da elite brasileira. Por razões de família ou por formação
sua maneira e como a sociedade estava dividida em grupos,
profissional, não se identificavam inteiramente com sua pró
cujos interesses eram contraditórios - senhores que deseja
vam manter seus escravos no cativeiro, e escravos que dese pria classe.(Hipólito da CostaJ por exemplo, um dos primeiros
a criticar o tráfico de escravos em um periódico ue era publi
javam ser livres -, a leitura da cartilha revolucionária tam
bém era contraditória. Essa contradição, que a retórica e o cado em Londres dendminado~orreio BraZIliense, vivia na In
simbolismo revolucionário podiam ocultar temporariamen glaterra onde sefamiliarizou com as~ias liberais. Não éde es
te, dado seu caráter abstrato e universalizante, a prática bem tranhar, pois, que já em 1811 escre~esse que a escravidão era
cedo iria desvendar. contrária às leis da natureza e às disposições morais dos ho
Na época da Independência, os escravos viram suas aspi mens, e recomendasse a substituição do trabalho escravo pelo
rações à liberdade frustradas. Se bem que a Carta Constitu trabalho livre. José Severiano Maciel da Costa, autor de Me
cional de 1824 incluísse um artigo transcrevendo a Declara mória sobre anecessidade deabolir a introdução deescravos africa
ção dos Direitos do Homem e do Cidadão (cópia quase idêntica -nos no Brasil, e~ que sugeria a maneira ~pelaqual essa abolição
à original francesa de 1789), na qual se afirmava que a liberda poderia ser feita e recomend~va_soll!Çõe§..para remediar~a fal
de era um direito inalienável do homem, manteve-se escra
ta de braços que a interrupção do tráfico acarretaria, também
vizada quase a metade da população brasileira. A Constitui ~ão era um típico representante da elite nativa.
ção ignorou os escravos. Sequer reconheceria sua existência. Se bem que tivesse se formado na Universidade de Coim
A eles não se aplicavam as garantias constitucionais. bra, como muitos outros brasileiros pertencentes a famílias
Não obstante esse flagrante desrespeito à humanidade
importantes, ele não voltara imediatamente ao Brasil depois
do escravo, a consagração dos princípios liberais pela Cons
de formado. Exercera a magistratura em Portugal e tornara
tituição foi o primeiro passo em direção à criação de uma se um burocrata a serviço da Coroa portuguesa. De 1808 a
consciência crítica em relação ao sistema escravista. A ques
1817, fora governador da Guiana Francesa. Durante os anos
tão que se apresentaria a partir daí era como justificar a escra
de sua formação tornara-se um admirador de pensadores fran
vidão em uma sociedade em que se aceitavam os novos prin
ceses e ingleses como Adam Smith, Bentham e Jean-Baptiste
cípios liberais. Como negar aos escravos os direitos humanos
Say. Os anos que vivera no exterior permitiram-lhe certo dis
que, em princípio, aplicavam-se a todos?
tanciamento em relação aos interesses mais imediatos das
Na época da Independência e muitos anos depois, a maio
classes dominantes brasileiras, se bem que com elas se identi
ria da classe dominante no Brasil continuava a depender intei
ficasse de muitas formas. Tal qual outros indivíduos de sua
ramente do trabalho escravo. Por isso, fariam ouvidos surdos
classe, ele se horrorizara com os levantes de escravos em São
aos argumentos de uns poucos indivíduos que, identificados
Domingos e Barbados e receava que algo semelhante viesse
com as novas idéias ilustradas então em voga na Europa,
a ocorrer no Brasil. Temia que os escravos, contagiados pelas
denunciavam a contradição entre liberalismo e escravidão
idéias de liberdade e igualdade, viessem a massacrar os bran
e condenavam a escravidão em termos morais, religiosos e
cos. Sua crítica à escravidão não era, no entanto, apenas fru
econômicos.
to desses receios. Ela nascia, sobretudo, da convicção - ca
racterística do pensamento burguês europeu - de que o
o
trabalho escravo produzia rendimentos inferiores aos do tra
discurso ilustrado
balho livre e inibia o desenvolvimento das indústrias. Essa
opinião não era endossada pela maioria dos proprietários de
Qs poucos indivíd!los da classe dominante que, na época
escravos dessa época. Mas, apesar do caráter até certo ponto
da Independênciã e nos anos qÚese seguiram, divergiram do
, ~r)
\/('7 [ c \ -
A ABOLIÇÃO 19
18 EMÍLIA VIOTTI DA COSTA
Apesar de suas críticas à escravidão, nem José Bonifácio,
"progressista" de sua proposta a favor da interrupção do trá
nem Maciel da Costa chegaram a propor a abolição imedia
fico, havia nos argumentos de Maciel da Costa um tom pre
ta. Ambos consideravam a emancipação dos escravos uma
conceituoso e racista muito comum entre os homens das clas
questão delicada e difícil de ser resolvida. Ambos argumen
ses dominantes. Entre as várias críticas que fazia à escravidão,
tavam que, para que a abolição pudesse ser decretada, era
Maciel da Costa dizia que ela era responsável pelo "abastar
preciso, primeiro, tomar medidas que facilitassem a transi
damento" da raça portuguesa.
ção do trabalho escravo para o trabalho livre.
Não muito diferente dessas eram as idéias de José Boni
fácio de Andrada e Silva, o patriarca da Independência. Em ó~":>
, 0\'<>
"sua Representação à Assembléi"ã' Constituinte, escrita em 1823 S \?
Discurso escravista
e publicada na França em 1825, José Bonifácio - que, aliás, '-lO~t,;
não chegou a apresentar sua representação à Assembléia
Enquanto essas vozes isoladas denunciavam a incompa
Constituinte, pois esta foi dissolvida pelo imperador em 1823,
tibilidade entre cristianismo e escravidão (incompatibilida
antes mesmo que terminassem os seus trabalhos argumen-
í
de raramente percebida durante o Período Colonial), discor
tava que era impossív_el.teI ~ma Constituição duradoura em
riam sobre a inco~tibilidade _e~tre os princíl2ios liberais
um país em que a maioria da população era escravizada. Nil
que tinham inspirado a Constituição e o sistema escravista,
~piniã~ de José Bonifác~,-; escra~idão -;;a uma instituição
condenavam o trabalho escravo por se~enos- p~odutivo do
"\ ~efasta, c<;muptora da ~oral e dos costumes e inibidora do
que o livre e denunciavam os efeitos desmoralizadores da
I progresso do país. José Bonifácio, no entanto, tal como Maciel
e~rãvidão sobre a moral e os costumes, a maioria da popula
da Costa ou Hipólito da Costa, não era um representa~te
ção continuava a ignorar esses argume;;'tos e se opunha a
I tiPICõ da-; classes dominantes. Passara a maior parte de sua
qualquer medida que visasse à cessação do tráfico ou à ex
-..vida em Portugal, primeiro como estudante e depois como
tinção gradual da escravatura.
funcionário do governo português. Ocupara cargos impor-
Em defesa da escravidão, continuava-se a repetir velhos
tantes na administração portuguesa antes de voltar ao Brasil -
argum~s, ~ad(;"s des~ o Pe-rí;-do Colonial. -Õiz~se qu; a
com a idade de 56 anos. Durante dez anos viajara pela Eu
~sc;avidão ;r~eEéfi~p~a-9 n~g!,2, pois que o retirava da
ropa, tendo visitado um grande número de países. Quando
barbárie em que vivia para introduzi-lo no mundo cristão e
voltara ao Brasil, às vésperas da Independência, d~pois de
----- civilizado. Afirmava-s~~e o negro não era capaz de sobre-
ter vivido na Eurol2a por mais de trinta anos, tro~xera con
viver em liberdade. Alguns, embõra reconhecessem que a
-si-g~o uma enorme bagagem cultural. Leitor ávido, espírito
escravidão fosse conde~á-;er;m -termos morais, argumenta:
curioso, cientista e humanista, homem vivido e experiente,
vam qti"eela era um mal nec~sário, -pois a economia nacio
José Bonifácio logo se tornou confidente e conselheiro do
~al não poderia funcion~r sem o escravo. A abolição da es
príncipe D. Pedro e teve importante papel na proclamação
cravatura, diziam eles, seria a ruína do país.Essa foi a ~pinião
da Independência. Cedo, no entanto, incompatibilizar-se-ia
que acabou por predominar entre as-elites. Por isso, enquan
com as elites políticas brasileiras, que não podiam concor
to os representantes da Nação declamavam na Câmara dos
dar com a crítica de José Bonifácio à escravidão e sua pro
Deputados, nas Assembléias Provinciais e no Senado o ideário
posta de suspensão do tráfico de escravos. Irritados com suas
liberal, continuava-se a importar escravos da África em nú
idéias, que lhes pareciam muito radicais, os proprietários
mero crescente, a fim de atender à crescente demanda de
e os traficantes de escravos tudo fizeram para afastá-lo do
mão-de-obra.
poder.