Table Of ContentTEMA: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
TÍTULO: INTERVENÇÕES DA MÁSCARA NA RELAÇÃO ENTRE ATOR E
ESPAÇO CÊNICO
Alex de Souza (bolsista FAPESC/CAPES); Prof. Dr. Valmor Beltrame (orientador);
Programa de Pós-Graduação em Teatro (Doutorado) - PPGT/UDESC.
As relações desenvolvidas pelo ator em relação ao espaço podem ser analisadas
por meio de diferentes pontos de vista. De início, é necessário compreender que ao atuar,
o conceito de “espaço” não se reduz a apenas “extensão limitada em uma, duas ou três
dimensões; distância, área ou volume determinados” (HOUAISS, 2009 – verbete: 1
espaço), mas ao contrário, amplia-se graças à ação do ator neste espaço. Para Patrice
Pavis, ao se tratar de teatro, “espaço” pode ser diferentemente compreendido como: “1.
Espaço Dramático; 2. Espaço Cênico; 3. Espaço Cenográfico (ou Espaço Teatral); 4.
Espaço Lúdico (ou Gestual); 5. Espaço Textual; 6. Espaço Interior” (PAVIS, 2007, p.
132-133 – verbete: espaço). Entretanto, aqui nos cabe discutir o trabalho do ator em
relação ao chamado “espaço cênico”, conforme a definição de Pavis:
É o espaço concretamente perceptível pelo público na ou nas cenas, ou ainda
os fragmentos de cenas de todas as cenografias imagináveis. É quase aquilo
que entendemos por “a cena” de teatro. O espaço cênico nos é dado aqui e
agora pelo espetáculo, graças aos atores cujas evoluções gestuais
circunscrevem este espaço cênico. (PAVIS, 2007, p. 133 – verbete: Espaço
Cênico 2)
Este espaço destaca-se de qualquer outro local concreto e real predominantemente
pelo uso do qual é feito. Assim, uma praça pode ser inicialmente um “espaço público”
e/ou um “espaço de lazer”, mas a partir do momento em que ocorre nesta mesma praça
um ato teatral, ela passa a ser um “espaço cênico” enquanto durar aquele ato. Considera-
se então a relação do ator com o espaço por ele ocupado como fundamental para a
caracterização de um espaço cênico. Mas, se há uma relação entre ator e espaço ocupado,
presume-se que há alguma distinção entre eles, que o ator não é parte deste espaço ou
passa a se destacar dele em algum momento. O encenador suíço Adolphe Appia (1862-
1928) compreende esta relação entre ator e espaço da seguinte forma:
No espaço “informe e vazio”, o ator representa em três dimensões; sua
plasticidade ocupa portanto um fragmento de espaço impondo-lhe sua forma.
Mas o ator não é uma estátua; sua plasticidade não elimina o fato de ele ser
vivo e sua vitalidade expressa-se pelo movimento; ele não ocupa o espaço
somente com seu volume mas também com seu movimento. O corpo, sozinho
no espaço ilimitado, mede este espaço com seus gestos e suas evoluções ou,
mais claramente, apropria-se portanto de uma porção do espaço, limitando-a e
condicionando-a. Sem ele, o espaço volta a ser infinito e não poderá ser
dominado. (APPIA apud RATTO, 2001, p. 39)
Para Appia, a força do ator em relação ao espaço está em sua vitalidade expressa
pelo movimento. É a ação e a presença do ator que transforma, delimita, identifica ao
público que se trata de um espaço da cena e não mais um espaço “em devir”, infinito.
Mas não é simplesmente o movimento que altera o espaço. Um ventilador pode mover-
se e ainda assim não alterar o espaço que ocupa. O ator vivo ou o objeto que simule vida
autônoma move-se para realizar vontades, necessidades, desejos. O movimento do corpo
ao respirar, um olhar fixo em determinado ponto, o deslocamento do ator entre dois
objetos de cena, apontar o dedo para alguém da plateia, são movimentos que
circunscrevem o espaço de atuação, determinam ao público o que e onde está acontecendo
a ação. Contudo, para apropriar-se dessa “porção de espaço” e poder condicioná-la à sua
vontade para a plateia, é fundamental que o ator seja capaz de perceber este espaço por
ele ocupado da forma mais plena possível. Percebendo o espaço e percebendo-se no
espaço é que o ator se torna capaz de relacionar-se com o mesmo.
Para o prosseguimento desta reflexão, entende-se por “percepção” como “a
capacidade de vincular os sentidos a outros aspectos da existência, como o
comportamento, no caso dos animais em geral, e o pensamento, no caso dos seres
humanos”. (VEZZÁ e MARTINS, 2008, p.04). Ou seja, a percepção seria a capacidade
de atribuir significados aos estímulos sensoriais captados pelo corpo, a interpretação das
informações recebidas. Segundo Vezzá e Martins (2008),
A percepção é um processo ativo do indivíduo, que explora as informações
para dar relevo a elas: quais são os aspectos fundamentais e quais os
desprezíveis para obter o conhecimento buscado. Quando o indivíduo olha à
sua volta, seus olhos passeiam sobre as coisas conhecidas que o cercam, e
identificam entre todos os estímulos luminosos que os atingem os traços
relevantes para que ele tenha a percepção do conjunto. Ela é possível graças ao
contexto em que cada um se encontra e à sua experiência passada – tem-se o
conceito de mesa, cadeira, chão, janela, e de várias configurações possíveis nas
quais estes elementos estão agrupados, aí incluída a configuração das
sensações do corpo em contato com estes objetos – tem-se uma memória
conceitual e também corporal. (p.04-05).
Sendo a percepção formada por esse sistema cognitivo que parte das sensações, é
interessante notar que há três principais grupos de aferências sensoriais no corpo que
chegam ao sistema nervoso central: sensações interoceptivas (ou introspectivas),
sensações exteroceptivas (ou extrospectivas) e a propriocepção. As sensações
interoceptivas são aquelas provenientes de dentro do corpo, que informam ao sistema
nervoso central sobre as condições internas do organismo e, dessa forma, percebemos
quando estamos com fome, sede ou cólica intestinal. As sensações exteroceptivas, por
sua vez, são provenientes de fora do corpo, captadas pelos nossos cinco sentidos (visão,
olfato, audição, paladar e tato). Já a propriocepção, é um sistema sensorial que une
informações internas e externas ao corpo, com a finalidade de identificar a si próprio entre
suas partes e sua condição referente ao espaço que ocupa. Sobre a propriocepção, Alain
Berthoz discorre:
A propriocepção muscular e articular e os captadores vestibulares cooperam
com a visão e com os captadores táteis da pele – em conjunto com os do corpo
e os dos pés, por exemplo, para medir nossos movimentos. Tudo isso forma o
que chamei em meu livro de Sentido do movimento. Não existem, portanto,
somente os cinco sentidos clássicos, serão oito ou nove. O que é absurdo e
inacreditável é que, apesar da acumulação extraordinária de conhecimentos
que nós temos atualmente sobre esses captadores, continuemos a falar em
cinco sentidos! (BERTHOZ apud CORIN, 2001, p.02)
Berthoz refere-se ao movimento como sendo também um sentido, uma forma de
chegar à percepção. Em seus estudos acerca do assunto, o autor aponta que o corpo é
capaz de identificar acelerações, assim como alterações de nível, eixo ou rotação somente
durante o movimento. Portanto, o movimento é o principal responsável pela
propriocepção. Contudo, para coordenar movimentos no espaço, estão envolvidos todos
os três grupos de aferências complementarmente. Segundo Berthoz,
Partindo das informações de todos os sentidos, o cérebro, para coordenar
nossos movimentos, deve construir uma percepção coerente e única da
orientação e do movimento de nosso corpo no espaço. A coerência perceptiva
é assegurada pelas convergências das informações de todos os nossos sentidos.
Por exemplo, a visão e o sistema vestibular devem trabalhar juntos para medir
o movimento. A visão permite medir a velocidade permanente, enquanto os
captadores vestibulares só podem medir o momento da aceleração quando
mudamos de velocidade. Dentro do elevador, a uma velocidade constante, não
temos impressão de estarmos subindo. Os dois captadores são
complementares. (BERTHOZ apud CORIN, 2001, p.02)
Quando há algum tipo de incoerência na percepção, sentimos imediatamente o
distúrbio e o corpo reage, com tonturas, enjoos e desequilíbrios, por exemplo. A relação
do corpo com o espaço altera-se pois não há clareza na percepção dos diferentes sentidos.
Mas conhecendo os modos operativos da percepção, o ator pode jogar com isso em seu
trabalho. E nesse jogo de percepções tornar possível ao ator “dominar” e “transformar”
um espaço físico, concreto, num espaço cênico. O lugar onde se encontra pode mudar sua
configuração de acordo com o modo como é utilizado, propondo uma nova percepção ao
público.
O ator vê uma cadeira. Inicialmente, o sentido da visão identifica por meio da luz
que chega à retina aquele objeto. Há um processo cognitivo que relaciona aquela imagem
específica às imagens semelhantes vistas antes (memória) e com toda a experiência já
vivida do ator com o objeto cadeira. Deu-se a percepção e o ator compreende que viu uma
cadeira. Contudo, o ator vai além e segue relacionando a imagem da cadeira com outras
imagens e experiências, que resulta numa aproximação com a imagem de um cavalo. O
ator, ao invés de relacionar-se com a cadeira do modo como costumeiramente se faz,
relaciona-se com ela como se fosse um cavalo e passa a ocupar o espaço de uma maneira
distinta. O público que reconhece a assimilação feita pelo ator passa a perceber que o
espaço da cena não é mais o palco, tablado ou praça de antes, o espaço então passa a ser
percebido como uma arena de rodeios.
Porém, como o ator pode lidar com um espaço tendo a sua própria percepção
alterada?
Ao utilizar uma máscara, o ator terá inevitavelmente alguns de seus sentidos
limitados ou com uma sensibilidade diferente do habitual. As alterações variam conforme
o tipo de máscara utilizada mas sempre causará, ao menos de início, uma sensação de
estranheza. Isso porque a maior concentração de captores de sentidos em nosso corpo está
situada na cabeça. Os relatos de experiências iniciais com máscaras se assemelham
bastante nesse sentido, como podemos observar com o exemplo do ator Moretti, famoso
por interpretar o Arlechinno em uma montagem de Giorgio Strehler:
O ator resistia à máscara, e recusava as suas restrições. Moretti explica então a
Strehler que tem dificuldade para respirar com a máscara, que fica sufocado,
literalmente, e que aquele corpo estranho o incomoda. Convencido, ao
contrário, da qualidade e da comodidade daquela máscara, Strehler mantém a
sua posição: sendo de couro maleável, deveria servir “como uma luva”. O
ensaio começa, mas o ator, furioso, reclama, xinga, odeia aquela máscara que
o impede de interpretar com fineza a sua personagem: “Ele estava tão furioso
quanto um jovem potro selvagem em quem se tivesse posto as rédeas pela
primeira vez”, recorda Sartori, pois sem dúvida fazia questão de mostrar
ostensivamente ao diretor a sua oposição. Não aguentando mais, explode:
“Não se pode trabalhar com esta coisa no nariz; ela me aperta, não vejo nada”.
E joga a máscara no chão. Sartori grita. Moretti pega uma tesoura e amplia os
olhos da máscara. O ensaio tem de ser interrompido. (FREIXE, 2010, p. 05-
06)
A reação de Moretti, inicialmente estarrecedora ao encenador e ao confeccionador
da máscara, é compreendida por Dario Fo, que comenta:
A princípio, o uso da máscara para um ator é uma experiência angustiante. Não
tanto pelo uso em si, mas muito mais pela restrição do campo visual e no plano
acústico-vocal. A voz fica gritando dentro da cabeça, atordoando, ressonando
nos ouvidos. Até acostumar-se ao seu uso, é impossível controlar a respiração.
Estranha-se a máscara, que se transforma em uma jaula de tortura. Pode-se
dizer que ela nos tira a possibilidade de concentração. (FO e RAME, 2004, p.
47)
Apesar de parecer ser algo tão terrível ao ator algumas vezes, a professora Ana
Maria Amaral esclarece a contrapartida da máscara:
Mas por que é a máscara considerada instrumento no treinamento do ator
quando, na verdade, o que ele (pelo menos num primeiro impacto) sente ao
usá-la é uma grande sensação de desconforto? De pronto, ao vesti-la, percebe
uma limitação no seu campo visual, a respiração é dificultada e a voz ou se
distorce ou perde força. Em compensação, o espaço à sua volta toma outras
dimensões, o simples mover o corpo exige uma atenção tal que, para mínimos
gestos, exige-se muita concentração. A máscara leva à conscientização do
corpo, tornando o ator muito sensível aos estímulos físicos que o cercam. Por
isso ela é fundamental para sua formação, principalmente quando o ator
pretende se expressar através de personagens materiais, inanimados.
(AMARAL, 2002, p. 43)
A conscientização do corpo e do espaço proporcionados pelo uso da máscara são
pontos interessantes levantados por Amaral, que remetem à redescoberta da máscara no
século XX, especialmente com Jacques Copeau (1879-1949). Copeau recorre à máscara
em seu trabalho buscando desnaturalizar o corpo e conscientizar o ator de seus gestos,
para que sejam mais sintéticos (FREIXE, 2010). O trabalho de Copeau reverbera
consequentemente nos aprofundamentos com relação à pedagogia teatral desenvolvidas
por Jean Dasté (1904-1994), Léon Chancerel (1886-1965) e Jacques Lecoq (1921-1999).
Relacionando com as pesquisas sobre percepção, Vezzá e Martins (2008) afirmam
que automatizamos os movimentos a partir do momento em que dominamos a sua
execução, deixando de percebê-los. Isso acontece, por exemplo, ao caminhar. Depois de
aprender a caminhar, não se percebe mais o processo, até que haja alguma alteração nas
respostas sensoriais que provoquem uma nova percepção. Do mesmo modo, Amaral tem
razão em afirmar que a máscara leva à conscientização do corpo, pois causando tal
desconforto inicial e limitação a alguns sentidos, força o ator a ter novas percepções sobre
si e o espaço que ocupa. Isso também se deflagra na história de Moretti, que segundo
Freixe (2010), encontra mais tarde na mesma máscara que o tolhia, a melhor aliada em
seu trabalho:
Para Moretti, as limitações da máscara logo se tornaram trampolins para a
invenção. O seu jogo adquiriu outra dimensão, e ele recebeu da máscara o dom
de uma liberdade inimaginável. As primeiras máscaras de Arlequim
experimentadas por Moretti possuíam olhos redondos muito pequenos, como
nas máscaras antigas que chegaram até nós. Foi a dificuldade de ver como na
vida cotidiana que fez Moretti compreender que era preciso inventar uma
gestualidade particular, animal, que até então havia apenas esboçado de fora,
referindo-se às atitudes de Arlequim tais como as vemos nas gravuras, e que
sentia agora como absolutamente necessárias. Moretti tirou proveito dessa
visão alterada que tinha com a máscara: inventou a caminhada por saltos e
solavancos, pois tinha que “situar a margem de ação em função do campo
visual, olhar sem cessar para seus pés para precisar por onde está andando, e
não tropeçar num obstáculo eventual”. Assim, num espaço muito restrito, devia
executar o movimento num breve lapso de tempo, o que dava aos seus
deslocamentos um caráter ao mesmo tempo mecânico e profundamente
orgânico. A urgência que tinha de “ver” se tornava metafórica da outra
urgência que ele tinha: a de “viver”. (FREIXE, 2010, p. 06)
Ao admitir as limitações impostas pela máscara, Moretti reencontrou
verdadeiramente o significado do modo de agir do seu personagem. O modo como se
movia e se relacionava com o espaço deixou de ser uma escolha racional e arbitrária para
se tornar uma necessidade fisiológica. Nesse sentido, percebe-se que tal qual postulou
Appia, Moretti tornou-se um ser inegavelmente vivo em movimento ocupando e
dominando o espaço cênico.
Mas a intervenção da máscara na percepção do ator não ocorre apenas pela
afetação dos sentidos extrospectivos. Conforme a pesquisa de Fernando Linares,
A partir do momento em que o estudante/ator coloca a máscara, a sua mente
se dividirá entre a visão do espaço real, para se orientar em cena, a sustentação
da imagem de si mesmo vestido com a máscara e em imaginar o que a máscara
enxerga com seus olhos pintados. A partir destes elementos, ele poderá
explorar os códigos que promovem a sua expressividade. (LINARES, 2010, p.
163)
Vemos a partir desta citação que o ator mascarado trabalha simultaneamente em
distintos âmbitos de relação com o espaço. Ele lida com o espaço concreto que ocupa,
portanto há uma relação direta de todos os seus sentidos extrospectivos com a sua
percepção e o espaço ocupado. Mas ao utilizar uma máscara, o ator também constrói uma
corporeidade própria para a figura que representa, consequentemente, alterando a sua
propriocepção. Uma máscara que remeta a um idoso, por exemplo, acaba por exigir do
jovem ator uma postura que em nada se assemelha com a sua postura habitual. A sua
propriocepção lhe informará que a coluna arqueada, os joelhos rígidos e a respiração
pesada estão fora dos seus padrões e precisam ser corrigidos. Há uma alteração de
percepção que será trabalhada pelo ator de modo que essa se torne uma “segunda
natureza”, enquanto estiver portando aquela máscara.
Partindo das limitações impostas pelo objeto agregado ao seu corpo, o ator pode
fazer disso parte de seu material criativo e aprofundar seu trabalho. A máscara possibilita
ao ator, enquanto objeto de cena e/ou de treinamento, a rica possibilidade de perceber o
mundo de novas maneiras. Reencontrar-se no espaço, relacionar-se de maneiras até então
inimaginadas com o lugar, as pessoas e os objetos que compõem o mesmo, pode ser o
diferencial entre uma atuação regular e uma atuação memorável para o público.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo:
SENAC, 2002.
CORIN, Florence. Le sens du mouvement. [O sentido do movimento]. Entrevista com
Alain Berthoz, p. 80-93. In: Vu du corps. Nouvelles de Danse. Trad. Lucrécia Silk.
Bruxelles: Contredanse, n. 48/49, 2001.
FO, Dario; RAME, Franca. Manual mínimo do ator. 3. ed. São Paulo: Ed. SENAC,
2004.
FREIXE, Guy. “Cinquième Partie ― L´âge d´or du Masque ― De L´Renaissance du
masque de La COMMEDIA DELL´ARTE” [I – Renascimento da máscara da Commedia
dell´Arte], p. 163-178, in Les Utopies du masque sur lês scènes européennes du XXe siècle
[As Utopias da Máscara nos palcos europeus do século XX]. Montpellier: L´Entretemps,
2010. p. 19-22. Tradução inédita de José Ronaldo Faleiro.
HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão
monousuário 3.0. [S.l.]: Objetiva, 2009.
LINARES, Fernando J. J.. A máscara como segunda natureza do ator: o treinamento
do ator como uma “técnica em ação”. 2010. 180 p. Dissertação (Mestrado em Artes) –
Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. 2 ed. São
Paulo: Ed. SENAC, 2001.
VEZZÁ, Flora. M. G; MARTINS, Emerson. F. Sensação, Percepção, Propriocepção?
Revista Brasileira de Ciências da Saúde. São Caetano do Sul, v. 6, nº 15, jan/mar, 2008.
Disponível em:
<http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_ciencias_saude/article/view/531/376>
Autora:Ana Maria Rodrigues;Orientador:Luiz Humberto Arantes;Universidade Federal de
Uberlândia
A desregrada vida do pequeno Moleque Tião e os desafios de ser Grande Otelo
Resumo
O presente texto apresenta uma reflexão sobre o espetáculo “Moleque tão Grande Otelo” e as
questões étnico-raciais que envolvem a peça e permearam a vida do artista. O artigo fala de como
os acontecimentos da vida do ator Grande Otelo tiveram implicações em sua arte, os fatos que
marcaram sua carreira e que são mostrados no espetáculo, “misturam” arte, vida, fantasia e
realidade. Com o intuito de desvendar o ator, a autora também faz referência a sua própria
história enquanto atriz e a similaridade de suas raízes com as de Sebastião Bernardes de Souza
Prata que se tornou para o mundo o Grande Otelo.
Palavras chave:
Grande Otelo, espetáculo, vivência.
Nesse artigo, apresentarei algumas considerações baseadas no projeto de criação do
espetáculo “Moleque Tão Grande Otelo”, montagem que o grupo Athos de Teatro, realizou em
2011, com dramaturgia e encenação de Luiz Humberto Arantes no qual, além de trabalhar como
atriz sendo a avó de Otelo, fiz também a produção do espetáculo. Ao estudar o processo de
criação e a história de vida de Grande Otelo, notei que havia muitos pontos de conexão de sua
trajetória com minha própria história de vida e meu processo de formação como atriz. No
processo de pesquisa de campo realizei um resgate de memórias pessoais, que perpassaram
momentos da minha infância e adolescência. Cenas que me abriram em direção ao novo, ao
outro, e a um novo olhar a respeito de questões concernentes ao universo afro-descendente.
Assim, pretendo realizar, com o artigo, uma intersecção entre o universo vivido por Grande Otelo
em sua experiência de vida a partir do material colhido no processo de montagem do espetáculo
Moleque Tão Grande Otelo e a minha trajetória pessoal passando por questões de vivências de
uma forma geral como a infância, as dificuldades do meu trabalho de atriz que são similares, em
alguns aspectos com a trajetória de vida do grande gênio dos palcos. Para reforçar o estudo deste
material, serão realizadas algumas considerações baseadas nos textos “Experiência e Paixão” de
Jorge Larrosa, ”Memória (in) Performance” da Professora Doutora Mara Lúcia Leal e “Tempo
Passado” de Beatriz Sarlo.
O moleque Otelo
O espetáculo “Moleque Tão Grande Otelo” revelara os bastidores da vida de Grande Otelo,
mostrando seus duplos, homem de teatro com grande poder de comunicação e talento em
contraponto com uma vida desregrada como boêmio e ébrio. Sebastião Bernardes de Souza Prata
vivia seu Grande Otelo com o intuito de trazer a alegria que, muitas vezes, não possuía. Sua arte
como ator foi usada para encarar, com riso, as angústias e o preconceito que vivenciava. Ele não
era somente artista, fazia da sua arte o alento para a sua vida, o que lhe gerou infortúnios. O
próprio Otelo traz, em seus depoimentos risonhos, brincantes, como bom palhaço, o fato de que
vivia “escondendo no riso a sua dor”. Sua arte possui um caráter libertador que escamoteava suas
dores e angústias, e se próprio biógrafo relata a respeito: “absolve-se ou condena-se Grande Otelo
por sua vida errante e, ao mesmo tempo, encantadora. Compreendemos que a arte o liberta”
(SANTOS, 2011).
O processo criativo do espetáculo, desenvolvido pelo encenador Luiz Humberto Arantes, foi
marcado pela construção a partir das memórias, sejam elas biográficas pelo livro de Sergio
Cabral, ou autobiográficas, pelos depoimentos e entrevistas em vídeo e em texto do próprio
artista. Todas estas fontes apontaram em uma montagem carregada de memórias híbridas, de um
lado do próprio artista e, em outra perspectiva, aliado ao contexto histórico social da época.
Nesse caso, trabalhando a partir de conceitos stanilavskianos, como a “memória emotiva”,
“mergulhei” em meu próprio universo e, revisitei etapas de meu processo formador como mulher
negra e atriz, me nutrindo de um arcabouço emocional que me forneceu material suficiente para
me aproximar, com cautela e denodo, dos sofrimentos e alegrias da arte de se fazer artista como
Otelo se fez. Entremeada por emoções variadas, vivenciadas ao longo de minha trajetória de
formação revisitando meu passado e vivência ao lado de meus irmãos, acionei o material de que
necessitava para revigorar meu trabalho cênico. Corpo e memória atrelados em conexão com o
passado e a reconstrução da história de Otelo, lugares comuns que se convergem, experiência e
memória. Em meu corpo, memória e experiências me trouxeram entendimento e me conectaram
com Otelo. Esta relação de experiências vividas fisicamente, que podem nos levar a um lugar de
compreensão do mundo através do sensorial resguardado no corpo é relatada pelo encenador
Constántin Stanislavski:
(...) é somente através da percepção, da relação do corpo com o mundo
por meio dos sentidos que se aciona a memória, que no caso da
involuntária, seria para Stanislavski a “verdadeira” erupção do passado,
carregada de sensações e sentimentos. (Stanislavski apud Mara, p. 66,
2011)
No espetáculo, revelamos os lugares comuns onde Otelo passou e que compõe o
arcabouço da memória concernente ao imaginário dos cidadãos uberlandenses como o Colégio
Estadual Bueno Brandão, onde ele estudou, a esquina do Hotel Presidente onde engraxou sapatos,
ou quando vendia jornal na Estação Ferroviária Mogiana. Desta forma, o universo em que
Sebastião Bernardes de Souza Prata viveu perpassa por espaços sensíveis de cada homem, como
a terra natal e lugares de vivência com respectivos familiares, adquirindo memórias como um fio
que, entrançado, compõe a construção da imagem de um homem. A respeito da pesquisa deste
material de campo sobre Otelo, os seus lugares comuns ajudaram a formar o arcabouço
necessário à formação do material de trabalho e levaram ao universo de identidade e
compreensão do espaço étnico racial naquele tempo e naquela sociedade. Este tipo de pesquisa
que nos leva à compreensão de nosso questionamento a respeito de nossa etnia a partir de
material biográfico de Otelo, e autobiográfico, ao mesmo tempo, relacionado com minhas
vivências é revelado na pesquisa da Professora Mara Leal em sua tese de doutorado, que a partir
de seu processo fez a seguinte reflexão:
Description:Axioms for Environmental Theater.” New York: Applause, 1994. SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon: David Sylvester. 2a. edição, São