O diário de Lena : a história real de uma adolescente durante a Segunda Guerra

252 Pages·2015·1.25 MB·Portuguese

by  Lena Mukhina [Mukhina

Lena Mukhina
O diário de Lena
A história real de uma adolescente durante a Segunda
Guerra
Tradução
Jorge Bastos
Sumário
Capa
Folha de rosto
Foto: Lena Mukhina, estudante.
Créditos
Prefácio
Diário de Lena
1941
1942
Posfácio
Cronologia dos acontecimentos do cerco de Leningrado
Foto: Lena Mukhina, 1955.
Notas
Lena Mukhina, estudante.
Copyright da tradução francesa © Robert Laffont, Paris, 2014.
Copyright © Central National Archive for Historical-Political Documents, São Petersburgo, 2012.
Copyright © Notas e estabelecimento do texto by Dr. Alexander Chistikov, Dr. Alexander Rupasov, e Dr.
Valentin M. Kovalchuk, 2012.
Copyright da tradução brasileira © 2015 by Editora Globo s.a.
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Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa(Decreto Legislativo no 54, de 1995).
Título original: Le Journal de Léna: Leningrad, 1941-1942
Editor responsável: Estevão Azevedo
Editor assistente: Juliana de Araujo Rodrigues Editor digital: Erick Santos Cardoso
Preparação: Juliana Campoi
Revisão: Tomoe Moroizumi e Huendel Viana
Diagramação: Jussara Fino
Capa: Delfin [Studio Delrey]
Imagens da capa e das páginas 2, 6 e 252: Collection of the author all rights reserved Imagens da quarta
capa e da página 22: © afp Photo/Azbuta cip-brasil. catalogação na publicação sindicato nacional dos
editores de livros, rj
M912d
Mukhina, Lena, 1924-1991
O diário de Lena : a história real de uma adolescente durante a Segunda Guerra / Lena Mukhina ; tradução
Jorge Bastos. - 1. ed. - São Paulo : Globo Livros, 2015.
Tradução de: Le Journal de Léna: Leningrad, 1941 - 1942
isbn 978-85-250-5999-4
1. Mukhina, Lena, 1924-1991. 2. Guerra Mundial, 1939-1945. I. Bastos, Jorge. II. Título.
14-16799 cdd: 927.8164
cdu: 929:78.067.26
1a edição, 2015
Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo s.a.
Av. Jaguaré, 1485
São Paulo-sp – 05346-902
www.globolivros.com.br
Prefácio
Este devia ser apenas o diário íntimo de uma colegial de Leningrado, meio
introvertida e solitária. Um diário como O herói do nosso tempo, do grande
poeta russo Mikhail Lermontov, em que ela tomaria nota de “tudo, de
absolutamente tudo, como fazia Petchorine”. Isso até que a História, com a
invasão da urss pela Alemanha nazista na madrugada de 22 de junho de 1941,
viesse dar um tom particular — que rapidamente se tornou dramático — ao
Diário de Lena Mukhina. Presa na emboscada, como mais de 2 milhões de
habitantes de Leningrado, ela atravessou o mais longo cerco — 872 dias e noites
— por que já passou uma cidade moderna, durante o qual mais de 700 mil civis
— um em cada três moradores da cidade — morreram de fome e exaustão.
Para tentar compreender a experiência extrema, fora do comum, que levou
aos limites das possibilidades humanas toda uma população faminta, isolada do
mundo e sacrificada, o leitor dispunha até o momento de pouquíssimos
testemunhos, sendo o mais conhecido o Diário do cerco de Leningrado, de Lidia
Ginzburg (1902-1990), célebre especialista em Púchkin, amiga de Anna
Akhmatova e de Ossip Mandelstam. No entanto, tudo diferencia esse Diário,
[1]
escrito essencialmente a posteriori e por uma grande personalidade intelectual
— colocando em cena um personagem não identificado, denominado
convencionalmente N, figura simbólica do sitiado —, do caderno de notas
diariamente atualizado por Lena Mukhina, uma simples estudante de dezesseis
anos, surpreendentemente madura, sensível e observadora!
Primeiras páginas do diário de Lena.
O Diário de Lena, descoberto há não muito tempo nos arquivos de
Leningrado, onde foi registrado no início dos anos 1960 em um fundo que reuniu
centenas de diários e anotações pessoais escritos durante o cerco, é um
[2]
testemunho ao mesmo tempo comovente e extraordinariamente preciso da
tragédia que viveu a população da cidade sitiada, sobretudo durante o período
mais duro, o terrível inverno de 1941-1942. Iniciado em 22 de maio de 1941,
exatamente um mês antes da invasão nazista, o Diário é brutalmente
interrompido um ano depois, em 25 de maio de 1942. As pesquisas feitas pelo
historiador Sergei Yarov, que descobriu o manuscrito, demonstraram que Lena
Mukhina não morreu durante o cerco, mas foi evacuada da cidade sitiada poucos
dias depois da interrupção de seu diário, no início de junho de 1942.
O que sabemos de Lena Mukhina? Pouquíssimo, na verdade. Nascida na
cidade de Ufa em 21 de novembro de 1924, Lena viveu por algum tempo em
Leningrado, nos anos 1930, com a mãe, Maria Nikolaievna. Ao ficar doente, sua
mãe confiou-a à irmã, Elena Nikolaievna (o que explica o fato de, no Diário,
Lena chamar a tia de “mamãe Lena” — para diferenciá-la da mãe, morta no
início da guerra, em julho de 1941). Depois da morte da velha Aka
(provavelmente a “babá” de mamãe Lena), de fome e exaustão, em 1o de janeiro
de 1942, e depois da morte de mamãe Lena, em 7 de fevereiro de 1942, a menina
se viu completamente só na cidade sitiada. Restava apenas uma parenta
longínqua, Jenia, meia-irmã da tia, que morava na cidade de Górki (antiga Nijni-
Novgorod), às margens do Volga. Para essa cidade é que Lena foi finalmente
evacuada, durante a grande operação realizada a partir de fins de maio de 1942,
em embarcações através do lago Ladoga, principal — e sempre frágil —
“brecha” no cerco de Leningrado.
Em Górki, recebida por Jenia Jurkova, Lena Mukhina concluiu o ensino
médio e mais tarde, terminada a guerra, voltou a Leningrado. Deu início então
aos estudos de nível superior no Instituto de Artes Aplicadas, seguindo uma
formação de mosaicista. Sem encontrar trabalho em Leningrado no final do
curso, foi preciso partir para o interior, primeiro para Rybinsk, cidadezinha no
nordeste da Rússia, e depois para Kemerovo, na Sibéria, onde desenhou cartazes
de propaganda para o canteiro de obras de uma grande central térmica. Depois
da morte de Stálin, ela conseguiu — grande privilégio! — um trabalho em
Moscou, como ilustradora numa indústria mecânica. No final dos anos 1960,
com a saúde debilitada, passou a trabalhar em casa como desenhista, criando
desenhos para os tecidos de uma empresa têxtil. Lena Mukhina morreu em
Moscou em 1991, aos 67 anos, após uma vida anônima de “soviética média”.
Antes de voltarmos ao que O diário de Lena acrescenta ao nosso
conhecimento do cerco de Leningrado, relembremos seu contexto histórico. Em
quais circunstâncias a cidade caiu na emboscada, no final do verão de 1941? O
que sabemos hoje da terrível fome que dizimou os leningradenses?
De acordo com o plano Barbarossa, estabelecido pelo Estado-Maior da
Wehrmacht, quatro grupamentos militares deviam efetuar o Blitzkrieg contra a
urss e forçar o Exército Vermelho a capitular antes do inverno de 1941. O grupo
da Finlândia, sob as ordens do general Von Dietl e do marechal finlandês
Mannerheim, tinha como objetivos a cidade de Murmansk e o controle do litoral
do mar Branco. O grupo Norte, comandado pelo general Von Leeb, estava
encarregado de avançar contra Leningrado. O grupo Centro, o mais importante,
sob o comando do general Von Bock, devia marchar na direção de Moscou. E o
grupo Sul, dirigido pelo general Von Rundstedt, tinha como missão ocupar a
Ucrânia.
Como em todos os lugares, o avanço alemão contra Leningrado foi
fulgurante. Em duas semanas, as forças soviéticas do “Eixo norte-oeste”,
comandadas pelo marechal Vorochilov, membro do Politburo e um dos mais
próximos colaboradores de Stálin, são postas em debandada nas repúblicas
bálticas. Em 8 de julho, os alemães ocupam Pskov, a duzentos quilômetros de
Leningrado, enquanto os finlandeses avançavam, é verdade que mais lentamente,
pelo noroeste, rumo a Petrozavodsk, no lago Onega.
Na tentativa de retardar o avanço alemão na direção de Leningrado, as
autoridades organizam um verdadeiro levante em massa de civis. Diga-se que,
mais do que em qualquer outra cidade soviética, dezenas de milhares de
cidadãos, homens (não mobilizáveis), mulheres e adolescentes, se alistaram
como voluntários, logo nos primeiros dias de guerra, para participar da defesa da
cidade. Uma parte é encaminhada a batalhões complementares, formados às
pressas e imediatamente enviados à frente de batalha, onde são dizimados logo
nos primeiros choques com as unidades alemãs. Mas a maioria dos voluntários é
direcionada para a abertura de trincheiras e fossas antitanques, para a instalação
de barreiras de arame farpado e construção de fortificações e casamatas. No
início do mês de agosto, mais de meio milhão de leningradenses se concentra na
urgente edificação de três linhas de defesa, sendo duas delas nos limites
imediatos da cidade.
Quando as tropas alemãs lançam sua “ofensiva final” contra Leningrado,
em 10 de agosto, a situação logo se torna catastrófica e a cidade em poucas
semanas está sitiada. A sudoeste, no rio Luga, a primeira linha de defesa é
rapidamente superada; e, em 21 de agosto, quando os alemães tomam a cidade
de Tchudovo, interrompe-se a estrada de ferro que ligava Moscou a Leningrado.
Uma semana depois o invasor conquista Mga, cortando, assim, a comunicação
ferroviária entre Leningrado e o restante do país. No sul, a situação não é menos
desesperadora para os soviéticos, que conseguem, apesar de tudo, manter uma
cabeça de ponte em Oranienbaum, enquanto os alemães alcançam o Golfo da
Finlândia. Simultaneamente, mais a leste, as tropas alemãs chegam à margem
meridional do lago Ladoga e se apoderam de Chlisselburgo.
No final do mês de agosto de 1941, é então de esperar que os alemães
tomem de assalto a cidade de forma relativamente rápida. É nesse contexto de
extremo perigo que o primeiro-secretário do partido comunista de Leningrado,
Jdanov, o marechal Vorochilov e o presidente do soviete do local, Popkov,
lançam o famoso “Apelo ao povo de Leningrado”. Esse apelo para a defesa da
cidade pelo próprio povo faz com que os leningradenses, privados — como,
aliás, o restante da população soviética — de todo tipo de informação sobre a
derrocada do Exército Vermelho, tomem consciência da gravidade da situação.
Já é tarde demais para abandonar a cidade, submetida desde o dia 4 de
setembro a ataques da aviação alemã. Os bombardeios dos dias 8, 9 e 10 de
setembro — descritos com precisão no Diário de Lena — são particularmente
violentos e provocam inúmeros incêndios, sobretudo em depósitos de
combustível e de abastecimento situados perto do porto. Nessa situação crítica,
as autoridades avaliam o momento de abandonar toda a parte da cidade na
margem sul do Neva e concentrar a resistência nos bairros do norte. Em 13 de
setembro, Merkulov, o número 2 do nkvd, chega de Moscou especificamente
[3]
como portador de uma mensagem ultrassecreta do Comitê de Defesa do Estado,
com instruções para que as autoridades de Leningrado destruam pontes, fábricas
e edifícios públicos considerados estratégicos, caso o inimigo atravesse a última
linha de defesa nos subúrbios ao sul da cidade. Dois dias antes, o general Jukov
foi nomeado para o comando da frente de Leningrado. Substituindo um
Vorochilov desnorteado, ele consegue, in extremis, estabilizar o front a poucos
quilômetros da parte sul da cidade. Ela, no entanto, continua totalmente isolada
do restante do país, à exceção de comunicações bem precárias pelo lago Ladoga.
Tudo indica que, nesse momento, Hitler e o Alto Comando alemão já
tenham decidido não tentar tomar de uma vez a cidade, preferindo deixá-la à
míngua. A diretriz do Alto Comando, datada de 29 de setembro de 1941, é
explícita: “Propomos um cerco radical da cidade, destruindo-a com tiros de
artilharia de todo calibre e bombardeios aéreos. Se, pela situação criada, houver
pedidos de rendição da cidade, eles devem ser rejeitados, pois não nos cabe
solucionar questões de sobrevivência da população e sua alimentação. No que
nos concerne, nesta guerra, não temos nenhum interesse em manter sequer uma
parte da população”. Leningrado, o berço do bolchevismo, devia simplesmente
ser riscada da face da Terra, e seus habitantes, morrer de fome.
[4]
No início de setembro, com a cidade cercada e todas as ligações
ferroviárias cortadas, a situação do abastecimento de Leningrado se torna
catastrófica. A rapidez do avanço alemão tomou de surpresa as autoridades, que
só puseram em funcionamento um sistema de cartões de racionamento em 18 de