Table Of ContentEis uma obra fundamental e totalmente original
de investigação dos fenõmenos sociais. Situando-
se entre o ensaio e a narrativa para construir seus
modelos cognitivos lúcidos, Canetti organiza seu
trabalho de pesquisa por meio da fenomenologia
e da dialética dos símbolos. Esta metodologia
permite ao autor-vincular dados histõricos e
sociológicos com os resultados mais recentes da
investigação em psicopatologia.
Nasce assim uma nova disciplina, uma espécie
de Antropologia Patológica, que, ao estudar a
interação entre a massa e o poder, revela as
anomalias patológicas do ser humano em sua
totalidade biopsíquica.
Entretanto, o autor não se detém no simples
diagnóstico. A Antropologia Patológica, o estudo
da patologia social e cultural, o conduz,
contrapondo as constantes do comportamento
coletivo com as expressões do poder, a
estabelecer as própriaS bases de uma
terapêutica. Como na psicanálise, a revelação
da natureza da enfermidade com a indicação
precisa dos centros infecciosos, a tomada de
consciência das próprias raízes do mal, são fatos
que na realidade predispõem à cura.
~-27.(cid:9) .01
(cid:9)
Cód. 7-02-04-060 /
Editara Universidade de Brasília MELHORAMENTOS
MASSA E PODER
Ao receber o Prêmio Nobel de
MASSA E PODER
Literatura, Canetti não era consi-
derado um azarão, pois, ao lon-
go de muitos anos, ele construiu
uma sólida reputação literária,
baseada em dois livros muito só-
lidos e incomuns; o próprio Auto
de Fé, um embasamento para
chegar a sua obra maior Massa
e Poder, na qual tenta uma aná-
lise imaginária mais sistemática
das multidões como um fenôme-
no e dos efeitos de massa nas
sensações do cotidiano.
Não há dúvida de que Canetti
com esta obra enriqueceu so-
bremaneira nosso conhecimen-
to dos processos de massa e po-
der. Ele olha para os fenômenos
como se estes ainda não estives-
sem enevoados por qualquer
teoria, não organizados para fá-
cil acolhimento. A obra de Ca-
netti, escrita numa linguagem
,alara, objetiva e forte deve mui-
to às disciplinas científicas e a
um conhecimento envolvente
de culturas estranhas, especial-
mente das "primitivas", que en-
contraram acolhida com ele.
Canetti está lá, onde a antropo-
logia, a sociologia e a psicolo-
gia nascem e se fecundam reci-
procamente.
Elias Canetti
1
MASSA E PODER
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CONSELHO DIRETOR
Abílio Machado Filho Tradução de
Amadeu Cury
Rodolfo Krestan
Aristides Azevedo Pacheco Leão
Isaac Kerstenetzky
José Carlos de Almeida Azevedo
José Carlos Vieira de Figueiredo
José Ephim Mindlín
José Vieira de Vasconcellos
Reitor: José Carlos de Almeida Azevedo
Vice-Reitor: Luiz Octávio Moraes de Sousa Carmo
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CONSELHO EDITORIAL
Afonso Arinos de Melo Franco
Antônio Paim
Arnaldo Machado Camargo Filho
Cândido Mendes de Almeida
Carlos Castello Branco
Geraldo Severo de Souza Ávila
Heitor Aquino Ferreira
Hélio Jaguaribe
Josaphat Marinho
José Francisco Paes Landim
José Honório Rodrigues
Miguel Reale
Octaciano Nogueira
Tércio Sampaio Ferraz Júnior
Vamireh Chacon de Albuquerque Nascimento
Vicente de Paulo Barretto
/
Presidente: Carlos Henrique Cardim EditoraUniversidade de Brasília MELHOMMERTOS
CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação SUMÁRIO
Câmara Brasileira do Livro, SP
Canetti, Elias, 1905-
C225m(cid:9) Massa e poder / Elias Canetti ; tradução de Rodolfo
Krestan. — São Paulo Melhoramentos ; [Brasília] : Ed.
Universidade de Brasília, 1983.
(Hoje e amanhã) A MASSA
1. Comportamento de massa 2. Poder (Ciências so- Inversão do temor de ser tocado (cid:9) 11
ciais) 3. Psicologia social 4. Sociedade de massa I. Título. Massa aberta e fechada (cid:9) 12
A descarga (cid:9) 14
Impulso de destruição (cid:9) 16
CDD-301.155 O estouro (cid:9) 18
(cid:9)
83-0424 -301.181 O sentimento de perseguição (cid:9) 21
Domesticação das massas nas religiões universais 22
Pânico (cid:9) 25
índices para catálogo sistemático:
A massa como anel (cid:9) 27
1. Comportamento de massa : Psicologia social 301.181 As propriedades da massa (cid:9) 28
2. Massa : Comportamento : Psicologia social 301.181 Ritmo (cid:9) 30
3. Massas : Sociologia 301.181
Estancamento (cid:9) 35
4. Poder : Psicologia social 301.155
Lentidão ou a distância da meta (cid:9) 40
As massas invisíveis (cid:9) 43
Classificação segundo o efeito dominante (cid:9) 49
Massas de perseguição (cid:9) 50
Massas de fuga (cid:9) 55
Massas de proibição (cid:9) 58
Título do original em língua alemã: MASSE UND MACHT Massas de inversão (cid:9) 61
1960 claassen Verlag GmbH, Düsseldorf
Massas festivas (cid:9) 65
A massa dupla: homens e mulheres.
Todos os direitos reservados
Vivos e mortos (cid:9) 66
Comp. Melhoramentos de São Paulo, Indústrias de Papel
A massa dupla: a guerra (cid:9) 72
Caixa Postal 8120, São Paulo
Cristais de massa (cid:9) • 78
Composto pela Artestilo Compositora Gráfica Ltda. Símbolos de massa 80
Impressão e acabamento em oficinas próprias
Edição: 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 A MALTA
Ano: 1986 85 84 83
Malta e maltas (cid:9) 101
Nos pedidos telegráficos basta citar o cód. 7-02-04-060
A malta de caça (cid:9) 106
A malta de guerra (cid:9) 108
A malta de lamentação (cid:9) 113
A malta de multiplicação (cid:9) 171
1, A comunhão (cid:9) 123
A malta interna e a malta silenciosa (cid:9) 125
DO PINHEIRO AO LIVRO, UMA REALIZAÇA0 MELHORAMENTOS
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(cid:9)
A determinação das maltas . Aversão dos chefes pelos sobreviventes
Sua constância histórica (cid:9) 127 Soberanos e sucessores (cid:9) 269
Maltas nas lendas históricas dos arandas 129 As formas de sobrevivência (cid:9) 273
Formações de homens entre os arandas(cid:9) „ ... 133 O sobrevivente nas crenças dos povos primitivos 278
Os mortos como sobreviventes (cid:9) 291
Epidemias (cid:9) 303
MALTA E RELIGIÃO A respeito da sensação de cemitério (cid:9) 306
A respeito da imortalidade (cid:9) 308
A inversão das maltas (cid:9) 139
Selva e caça entre os leles de Kasai (cid:9) 140
Os despojos de guerra entre os jívaros (cid:9) 145 ELEMENTOS DE PODER
As danças da chuva dos índios pueblos (cid:9) 149
Força e poder (cid:9) 313
Dinâmica de guerra. O primeiro morto. O triunfo 151
Força e rapidez (cid:9) 315
O islamismo como religião de guerra (cid:9) 155
Pergunta e resposta (cid:9) 317
Religiões de lamentação (cid:9) 157
O segredo (cid:9) 323
A festa do muharram entre os xiitas (cid:9) 160
Sentenciar e julgar (cid:9) 330
Catolicismo e massa (cid:9) 170
O poder do perdão. A graça (cid:9) 332
O fogo sagrado de Jerusalém(cid:9) ..... 174
A ORDEM
MASSA E HISTÓRIA
A ordem: fuga e aguilhão (cid:9) 337
Símbolos de massa das nações (cid:9) 185 A domesticação da ordem (cid:9) 341
A Alemanha de Versalhes (cid:9) 197 Contragolpe e medo de mandar (cid:9) 342
Inflação e massa (cid:9) 201 A ordem a muitos (cid:9) 344
A essência do sistema parlamentar (cid:9) 207 Espera de ordens (cid:9) 346
Divisão e multiplicação. Socialismo e produção 209 Espera de ordens dos peregrinos em Arafat (cid:9) 349
A autodestruição dos xosas (cid:9) 212 Aguilhão-ordem e disciplina (cid:9) 350
Ordem. Cavalo. Flecha (cid:9) 352
Castrações religiosas: os skoptsys (cid:9) 355
Negativismo e esquizofrenia (cid:9) 358
AS ENTRANHAS DO PODER
A inversão (cid:9) 361
A dissolução do aguilhão (cid:9) 364
Tomar e incorporar (cid:9) 223
Ordem e execução. O verdugo satisfeito (cid:9) 367
A mão (cid:9) 233
Ordem e responsabilidade (cid:9) 369
Sobre a psicologia do ato de comer (cid:9) 242
A METAMORFOSE
O SOBREVIVENTE
Pressentimento e metamorfose entre os bosquímanos 375
O sobrevivente (cid:9) 251 Metamorfose de fuga. Histeria, mania e melancolia 381
Sobrevivência e invulnerabilidade (cid:9) 252 Automultiplicação e auto-ingestão. A figura dupla
Sobreviver como paixão (cid:9) (cid:9) 254 do totem (cid:9) 387
O poderoso como sobrevivente 256 Massa e metamorfose no delirium tremens (cid:9) 399
A salvação de Flávio Josefo (cid:9) 260 Imitação e simulação (cid:9) 412
6 7
O personagem e a máscara . . .(cid:9) 416
A desconversão (cid:9) 421
Proibições de metamorfose (cid:9) 422
Escravidão ...........(cid:9) ,(cid:9) . .(cid:9) 427
ASPECTOS DO PODER
-As posições do homem: o que elas contêm de poder 431
A MASSA
O maestro (cid:9) 439
Glória (cid:9) 442
A ordenação do tempo (cid:9) 443
A corte (cid:9) 445
O trono crescente do imperador de Bizâncio (cid:9) 446
Idéias de grandeza dos paralíticos (cid:9) 447
PODERIO E PARANÓIA
Reis africanos (cid:9) 457
O sultão de Delhi: Muhammad Tughlak (cid:9) 471
O caso Schreber. Primeira parte (cid:9) 483
O caso Schreber. Segunda parte (cid:9) 499
Epílogo (cid:9) 515
Notas (cid:9) 523
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Inversão do temor de ser tocado
Não existe nada que o homem mais tema do que ser tocado
pelo desconhecido. Ele quer saber quem o está agarrando; ele
o quer reconhecer ou, pelo menos, classificar. O homem sempre
evita o contato com o estranho. De noite ou em locais escuros
o terror diante de um contato inesperado pode converter-se
em pânico. Nem mesmo a roupa oferece segurança suficiente;
é fácil rasgá-la, é fácil chegar até a carne nua, lisa e indefesa
do agredido .
Todas as distâncias que o homem criou em torno de si
surgiram a partir deste temor de ser tocado. As pessoas se
fecham em suas casas nas quais ninguém pode entrar, e so-
mente dentro delas é que elas se sentem relativamente seguras.
O medo do ladrão não diz respeito apenas às suas intenções de
assalto, mas também a um temor de ser tocado por um ataque
repentino e inesperado vindo das trevas. A mão, transformada
em garra, sempre volta a ser utilizada como símbolo deste
medo. Uma boa parte deste contexto foi incluída no duplo
sentido da palavra "agarrar". Tanto o contato mais inofensivo
como o ataque mais perigoso estão incluídos neste termo, e
sempre existe uma certa influência do segundo sentido sobre
o primeiro. O substantivo "agressão" passou a designar uni-
camente o sentido pejorativo do termo,
Esta aversão em relação ao contato não nos abandona
quando nos misturamos com outras pessoas, A maneira como
nos movimentamos na rua, entre muitas pessoas, em restau-
rantes, trens e ônibus, é determinada por este medo. Mesmo
quando nos encontramos muito próximos de outras pessoas,
quando podemos contemplá-las e estudá-las detalhadamente,
evitamos, na medida do possível, entrar em contato com elas.
Quando agimos de outra maneira, isto ocorre apenas porque a
outra pessoa nos agrada e então a aproximação parte de nós
mesmos.
A rapidez com que nos desculpamos quando, involunta-
riamente, entramos em contato com alguém, a ansiedade com
a qual se esperam estas desculpas, a reação violenta e às vezes
agressiva quando o pedido de desculpas não é feito, a anti-
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palia e o ódio que sentimos em relação ao "malfeitor", mesmo pergunta; no entanto, mesmo assim, têm pressa de chegar
quando não existe maneira de se ter certeza de que ele real- lá onde se encontra a maioria. Existe uma espécie de decisão
mente o é -- toda esta confusão de reações psíquicas relativas nos seus movimentos que se diferencia consideravelmente da
ao ser tocado pelo estranho, em sua extrema instabilidade e manifestação de uma curiosidade comum. Pensa-se que o mo-
irritabilidade, demonstra que se trata de algo muito profundo vimento de uns contagia os outros, mas não é apenas isto:
que nos mantém em posição de alerta e nos deixa suscetíveis eles têm todos uma meta. E antes de encontrarem palavras
a um processo que jamais abandona o homem depois que ele apropriadas para descrever isto, a meta passa a ser a zona de
estabeleceu os limites de sua pessoa. Até mesmo o sono, que maior densidade, o lugar onde se reúne o maior número de
nos torna muito mais indefesos, é extremamente fácil de ser pessoas.
É preciso dizer mais algumas coisas a respeito desta forma
perturbado por este tipo de temor.
Somente quando imerso na massa é que o homem pode extrema da espontaneidade da massa. Lá onde ela se origina,
escapar deste temor em relação ao contato. Esta é a única no seu próprio núcleo, ela não é tão espontânea quanto parece.
situação na qual o temor se transforma no seu oposto. Para Mas no restante, se deixarmos de lado as cinco, dez ou doze
isto é necessária uma massa densa, na qual um corpo se estreita pessoas a partir das quais ela se originou, a espontaneidade
contra outro corpo, densa também na sua constituição anímica, realmente existe. E a partir do momento em que ela se torna
ou seja, quando já não se presta mais atenção a quem "se consistente, existe o desejo de aumentar esta consistência. A
aperta" contra a gente. Assim que uma pessoa se abandona à ânsia do crescimento é a primeira e principal característica da
massa, ela deixa de temer o seu contato. Neste caso ideal, massa. Ela quer incluir todos os que estão, de alguma forma,
todos são iguais entre si. Nenhuma diferença conta, nem mesmo ao seu alcance. Todo e qualquer ser com forma humana pode
a dos sexos. Qualquer pessoa que se aperte contra nós, torna-se tomar parte dela. A massa natural é a massa aberta: seu cresci-
idêntica a nós mesmos. Nós a sentimos, da mesma forma como mento não tem limites prefixados. Ela não reconhece casas,
sentimos a nós mesmos. De repente, tudo acontece como que portas ou fechaduras; todos os que relutam em se incluir nela
dentro de um só corpo. Talvez este seja um dos motivos pelos tornam-se suspeitos. O termo "aberta" deve ser compreen-
quais a massa procura se apertar tão densamente: ela quer se dido aqui num sentido amplo: a massa é aberta em todas as
livrar da maneira mais completa possível do temor do contato partes e em todas as direções. A massa aberta existe enquanto
de cada um dos seus indivíduos componentes. Quanto maior cresce, Sua desintegração tem início no instante em que deixa
for a veemência com a qual os homens se apertam, tanto maior de crescer,
é a certeza de que eles não se temem entre si. Esta inversão do Pois com a mesma rapidez com a qual se formou, a massa
temor de ser tocado faz parte da massa. O alívio que se pro- também se desintegra. Nesta forma espontânea, ela é uma con-
paga dentro dela — e que será examinado dentro de outro figuração frágil, Sua abertura, que lhe possibilita o cresci-
contexto — alcança uma proporção impressionantemente ele- mento, é simultaneamente seu perigo. Dentro dela sempre
vada na sua densidade máxima. permanece vivo o pressentimento da desintegração que a amea-
ça, e da qual ela procura escapar através de um crescimento
acelerado, Enquanto pode, ela incorpora tudo; no entanto, por
Massa aberta e fechada incorporar tudo, ela é forçada a se desintegrar.
Em oposição à massa aberta, que pode crescer até o infi-
Uma aparição tão enigmática quanto universal é a da massa nito, que se encontra em todos os lugares e que justamente
que surge repentinamente onde antes não havia coisa algu- por este motivo reclama um interesse universal, existe a massa
fechada,
ma. É possível que algumas pessoas tenham estado juntas,
umas cinco, dez ou doze, no máximo. Nada foi anunciado, nada Esta renuncia ao crescimento e estabelece como sua
era esperado. Repentinamente, tudo está cheio de gente. De meta principal a permanência. A característica que mais chama
todos os lados pessoas começam a afluir como se todas as a atenção nela é o limite. A massa fechada se estabelece; ela
ruas tivessem uma única direção. Muitos não sabem o que cria o seu lugar limitando-se; o espaço que ela irá preencher
aconteceu, sendo incapazes de responder a qualquer tipo de lhe é assinalado. Ela é comparável a um recipiente no qual
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se verte um liquido; sabe-se sempre quanto líquido pode ser qual ele encerra sua propriedade e sua própria pessoa, o posto
colocado dentro dele. Os acessos ao espaço são limitados; não que ele ocupa, o status que almeja, tudo isto serve para criar,
se pode ingressar nele de qualquer maneira, O limite é res- para fortalecer e para aumentar distâncias. A liberdade é tolhi-
peitado. Este limite pode ser feito de pedra, de paredes sóli- da no momento em que existe um movimento de maior pro-
das. É possível que haja a necessidade de um determinado fundidade em direção a outra pessoa. Impulsos e reações de-
ato de recepção; talvez seja preciso pagar uma determinada saparecem como água num deserto. Ninguém é capaz de chegar
quantia pelo ingresso. E quando o espaço está repleto com a às proximidades, às alturas de outra pessoa. Hierarquias fir-
densidade desejada, ninguém mais é admitido. Mesmo quando memente estabelecidas em todos os âmbitos da vida impedem
transborda, a parte principal continua sendo a massa densa a intenção de chegar até os superiores, de inclinar-se até os
dentro do espaço fechado; e os que permaneceram do lado de inferiores, a não ser em termos de aparências superficiais. Nas
fora não podem realmente fazer parte dela. diversas sociedades existentes, estas distâncias estão recipro-
O limite serve para impedir um aumento desordenado, camente equilibradas de maneira diferente. Em algumas delas,
mas também para dificultar e para retardar a desintegração. a ênfase é dada às diferenças de origem; em outras, às dife-
A massa ganha em estabilidade o que sacrifica em termos de renças de ocupação ou de propriedade.
possibilidade de crescimento. Ela se protege de influências Não é importante detalhar aqui todas as características
externas que poderiam ser-lhe hostis e perigosas. No entanto destas hierarquias. O importante é que elas existem por todos
ela conta de maneira toda especial com a repetição. Através os lados, que estão instaladas na consciência dos homens, e
da perspectiva de voltar a se reunir, a massa supera todas as que determinam de maneira decisiva o comportamento deles
vezes a sua própria dissolução. O edifício, o arcabouço espera em relação aos demais. A satisfação de se estar acima de outras
por ela, ele existe por causa dela, e enquanto ele existir a pessoas dentro de uma hierarquia não compensa a perda de
massa continuará se reunindo exatamente da mesma maneira, liberdade de movimentos. Nas suas distâncias, o homem se
O espaço continua existindo mesmo nos momentos de maré torna mais rígido e mais sombrio. Ele é obrigado a suportar
baixa e, pelo seu vazio, ele lembra o tempo da maré cheia. estas cargas e não avança, não progride. Ele se esquece de
que estas cargas foram criadas por ele mesmo e deseja liber-
tar-se delas. Mas como poderá libertar-se delas sozinho? Por
A descarga mais que faça para conseguir isto, por maior que seja sua
determinação neste sentido, ele continua situado entre os de-
O acontecimento mais importante que se desenrola no interior mais, que fazem seus esforços malograrem. Enquanto os
da massa é a descarga. Antes disto, a massa em si não chega demais se ativerem às suas distâncias, ele será incapaz de se
a existir realmente; é através da descarga que ela se integra aproximar deles.
de verdade, A descarga é o momento no qual todos os que Somente todos juntos são capazes de se libertar de suas
pertencem a ela se despojam de suas diferenças e sentem-se distâncias. E é exatamente isto o que acontece dentro de uma
iguais massa. Na descarga todas as separações são colocadas de lado
Entre estas diferenças devem ser consideradas principal- e todos se sentem iguais. Dentro desta densidade, como pra-
mente as de imposição externa: diferenças de status, de posi- ticamente não existe espaço entre as pessoas, os corpos se
ção e de propriedade. Os homens, como indivíduos, sempre pressionam uns contra os outros, e cada um fica tão próximo
têm consciência destas diferenças, que têm peso enorme, for- do outro como de si mesmo. O alívio que isto provoca é
çando-os a posições claramente separadas. O homem se situa impressionante. É em função deste momento feliz, no qual
com segurança num lugar determinado, mantendo-se distante ninguém é mais, ninguém é melhor do que os outros, que os
de tudo o que se aproxima dele com gestos judiciais eficazes. homens se transformam em massa.
Como um moinho de vento numa planície extensa, assim o No entanto o momento da descarga, tão desejado e tão
homem permanece em pé, expressivo e em movimento; até repleto de felicidade, comporta em si mesmo um perigo par-
o próximo moinho de vento não existe coisa alguma. Toda a ticular. Ele padece de uma ilusão básica: os homens que re-
vida, como ele a conhece, é definida por distâncias: a casa na pentinamente estão se sentindo iguais, não foram realmente
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tinuação. No entanto seria errôneo acreditar que a facilidade
igualados para sempre. Eles retornam às suas casas separadas de quebrar os objetos constitui o fato decisivo. Já foram ata-
e dormem nas suas próprias camas. Eles conservam suas pro- cadas esculturas feitas das pedras mais duras, que foram mu-
priedades; não renunciam aos seus nomes. Eles não repudiam tiladas e tornaram-se irreconhecíveis. Os cristãos destruíram
os seus familiares, nem tampouco escapam deles. Somente em as cabeças e os braços dos deuses gregos. Reformadores e
casos de transformações especiais e muito sérias é que os revolucionários fizeram com que fossem baixadas dos seus
homens se libertam de velhos laços, contraindo novas ligações. pedestais imagens de santos, às vezes até de alturas conside-
E estas ligações que pela sua própria natureza são capazes de radas como um perigo mortal; e mais de uma vez a pedra que
admitir apenas um número limitado de membros e que devem
se quis triturar era tão dura que foi impossível destroçá-la
assegurar sua própria existência mediante regras especiais e
completamente.
rígidas, eu as denomino cristais de massa. Posteriormente tra-
A destruição de imagens que representam alguma coisa
tarei demoradamente de suas funções.
é a destruição de uma hierarquia que deixou de ser aceita.
A massa propriamente dita, porém, se desintegra. Ela
Desta forma são atacadas as distâncias habituais, que estão à
sente que acabará por se desintegrar. E teme esta decomposi-
vista de todos e que são válidas em todos os lugares. Sua
ção. Ela somente poderá subsistir se o processo da descarga
dureza era a expressão de sua permanência; elas existiam,
tiver continuidade devido à chegada de novos elementos hu-
eretas e imóveis, há muito tempo, desde sempre, e era impos-
manos. Somente o incremento da massa impedirá que seus
sível aproximar-se delas com intenções de hostilidade. Mas
componentes tenham de submeter-se novamente às suas cargas
agora elas estão caídas e destroçadas. A descarga se consumou
privadas.
através deste ato.
No entanto, não é sempre que se chega a este ponto. A
destruição do tipo mais comum, à qual nos referimos inicial-
Impulso de destruição
mente, consiste somente num ataque a todos os limites. Portas
e janelas pertencem às casas, sendo ao mesmo tempo a parte
Fala-se freqüentemente a respeito do impulso de destruição
mais delicada de sua limitação com o exterior. Uma vez des-
da massa; esta é a primeira de suas características, que salta
troçadas as portas e as janelas, a casa perdeu sua individuali-
aos olhos e é impossível negar que se encontra em toda parte,
dade. Agora, qualquer pessoa pode entrar nesta casa segundo
em todos os países e dentro das mais variadas culturas. Apesar
sua própria vontade; nada e ninguém se encontra protegido
de se tratar de uma realidade comprovável e que é geralmente
dentro dela. De maneira geral, acredita-se que nestas casas
desaprovada, ela jamais chega a ser satisfatoriamente explicada.
estejam abrigados os homens que pretendem se excluir da
De preferência, a massa destrói casas e coisas. Como
massa, os seus inimigos. Agora, tudo o que os separava da massa
muitas vezes se trata de objetos frágeis, como cristais, espelhos,
foi destruído. Entre eles e a massa já não existe coisa alguma.
vasilhames, quadros e louças, existe uma tendência a se acre-
Estes homens podem sair e juntar-se a ela. Podem ser pro-
ditar que seria justamente esta fragilidade das coisas que incita
curados e apanhados.
a massa à destruição. É bem verdade que o ruído produzido
No entanto, existe mais do que isto. O próprio indivíduo
pela destruição, o barulho das vidraças se partindo fornece
tem a sensação de que dentro da massa ele consegue ultrapas-
uma contribuição importante ao encanto da coisa toda: são
sar os limites de sua própria pessoa. Ele se sente aliviado, já
os vigorosos vagidos de uma nova criatura, os gritos de um
que todas as distâncias que o voltavam para si mesmo e que
recém-nascido. O fato de eles serem tão facilmente provocados
o encerravam em si mesmo foram abolidas. Ao eliminar estas
aumenta sua popularidade; tudo grita em uníssono e esse ba-
cargas da distância, ele se sente livre e sua liberdade o impele
rulho equivale ao aplauso das coisas. Uma necessidade parti-
à ultrapassagem destas fronteiras. E o que acontece com ele
cular desse tipo de barulho parece existir no início dos acon-
deve acontecer também com os outros, e ele espera a mesma
tecimentos, quando a massa ainda está sendo formada por um
coisa por parte dessas outras pessoas. Ele se irrita com o fato
número bastante reduzido de elementos, e quando ainda não
de que um recipiente de barro seja formado apenas por limites.
aconteceu quase nada. O barulho promete o reforço desejado
Numa casa desagradam-lhe as portas fechadas. Ritos e cerimô-
e funciona como um presságio feliz de que haverá uma con-
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