Table Of Content39
RENÉGIRARD
«Obrigado, meu Pai, por revelares aos pequeninos
o que escondeste aos sábios e aos inteligentes.»
Depois, os sábios e os inteligentes vingaram-se: à força
de pisarem os Evangelhos, fizeram deles uma pilha
de excertos e bocados demasiado heteróclita para significar EU VIA
fosse o que fosse ...
Mas não será sua a última palavra! René Girard pensa,
tal como Simone Weil, que os Evangelhos são uma teoria
do homem antes de ser uma teoria de Deus. Um mapa SATANÁS
das violências, onde o orgulho e a inveja encerram
a humanidade.
Descobrir esta teoria do homem e aceitá-la é dar vida
aos grandes temas evangélicos relativos ao mal, esquecidos
CAIR DO
e abandonados pelos crentes-de Satanás ao Apocalipse. c~u
É, de igual modo, ressuscitar a ideia da Bíblia como sendo
toda ela profética de Cristo.
Assim, os Evangelhos, longe de serem «Um mito semelhante
a todos os outros», tal como se repete a bel-prazer desde há COMO UM RAIO
dois séculos, seriam a chave de toda a mitologia do passado,
e do futuro, da história inaudita que nos espera.
Perante a ruína de todos os pensamentos modernos,
serão as Santas Escrituras as únicas a ficarem de pé?
RENÉ GIRARD nasceu em Avignon no Natal de 1923, é doutorado
em Filosofia e ensinou durante muito tempo na Universidade de Stanford,
onde ainda reside. Os seus livros são estudados e traduzidos
no mundo inteiro.
É considerado pela maioria dos filósofos contemporâneos
"º
como Hegel do Cristianismo».
AG
LISBN J972 -7,7.1.-,6,22,- 9 217 ~
GIE
VOI (P)
(2 02] CRENÇA ER AZÃO
00
CRENÇA ER AZAO
1. CRENÇA E RAZÃO
Guy lAwrtlies
2. AS SEREIAS DO IRRACIONAL
Dominique Terré-Fomaccinri
3. A SlNCRON1ClDADE, A ALMA E A CIÊNCIA
H. Reeves / M. Cnzenave / P. Solie / K. Pribram / H.-F. Etter / M.-L. Von Franz
4. COSMOS E ANTHROPOS
Erro/ E. Harris
5. O COMBA TE DA RAZÃO
Manuel de Diég11ez
6. TR~ MENSAGEIROS PARA UM SÓ DEUS
Roger Ama/dez
7.,P,ÓS-MODERN1SMO, RAZÃO E RELIGIÃO
Ernest Gellner
8. A PRESENÇA DO PASSADO
Rupert Slie/drake
9. A CIÊNCIA E A ALMA DO MUNDO
Micliel Cázenave
10. AS RAÍZES DA RELIGIÃO
Henri Hatzfeld
11. PÓS-MODERN1SMO E ISLÃO
Akbar S. Alimed
12. O ISLÃO POLÍTICO E CRENÇA
Mnxime Rodinso11
13. AS FESTAS DE DEUS
Guy Deleury
14.CREDO
Hans Kiing
15. A FÉ E A RAZÃO
Nay/a Faro11ki
16. NO QUE EU ACREDITO
/acques Gaillot
17. O PERDÃO TRANSFIGURADO
/eari IA!fitte
18. A ENC!CUCA ESCONDIDA DE PIO Xl
Georges Passelecq /Bernard S11c/1ecky
19. COSMOS E THEOS
Erro/ E. Harris
20. COMO UM RELÃMPAGO RASGANl:x) A NOITE
Dalai-lAma
21. PARA ALÉM DOS DOGMAS
Dalai-lAma
22. JESUS E BUDA
Marcus Borg /Jack Kornfield
23. QUE ISLAMlSMO AÍ AO LADO?
François Burgot
24. DEUS E O B/G BANG
Daniel C. Matt
25. JESUS E BUDA
Odori Vallet
26. PARA ALÉM DO BJG BANG
Willem B. Drees
27. HUMANISMO, FRANCO-MAÇONARIA E ESPIRJTUALIDADE
Claude Saliceti
28. DARWIN, TEILHARD DE CHARDIN
Jacques Arnould
29. O FEMININO DO SER
A1111ick de Souze11elle
30. A TEOLOGIA DEPOIS DE DARWIN EU VIA SATANÁS
Jacques Amou/d
31. A GRANDE DEUSA
Jean Markale
32. UM CRISTIANISMO DE FlITURO CAIR DO CÉU
Paul Va/adier
33. O EVANGELHO DE UM UVRE-PENSADOR
Gabriel Ri11glet
COMO UM RAIO
34. RACIONALIDADE E RELIGIÃO
RogerTrigg
35. PACIFICAR O ESPíRITO
Dnlni-l.Amn
36. EM BUSCA DA DEUSA-MÃE
Lym1 E. Roller (Lucas 10,18) *
37. CONCEITOS DE DEUS
Keit/1 Ward
38. E O HOMEM CRIOU A BfBUA
André Paul
39. EU VIA SATANÁS CAIR DO CÉU COMO UM RAIO
René Girard
•Todas as traduções dos textos bíblicos presentes nesta obra tiveram como referência
a Bíblia Sagrada, nova edição papal, traduzida das línguas originais com uso crítico
de todas as fontes antigas pelos Missionários Capuchinhos, Lisboa. (N. T.)
,,
RENÉGIRARD
EU VIA SATANÁS
CAIR DO CÉU
..C OMO UM RAIO
Biblioteca Padre Vaz
Título original: Je vois Satan tomber comme l'éclair 11111111111111111111111111111111111111111111111111
20170681
Autor: René Girard
Eu via satanás cair do céu como um raio
© Éditions Grasset & Fasquelle, 1999
Direitos reservados para a língua portuguesa
INSTITUTO PIAGET
Av. João Paulo II, lote 544, 2.0 -1900-726 LISBOA •Te!. 21 8316500
E-mail: [email protected]
Colecção: Crença e Razão, sob a direcção de António Oliveira Cruz
Tradução: Vasco Farinha
Capa: Dorindo Carvalho
Paginação: Isabel Balsa
Impressão e acabamento: Rama - Artes Gráficas, Lda.
Depósito legal: 188 691/2002
ISBN: 972-771-622-9
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por
qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, INSTITUTO
xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. PIAGET
1.
Aos nwus 11dos
Olivin t' Mnttlit'I~
]t'ssit', Dn iellt', Dnvid e Pt>ta
11
Gabriel/e, Vi rgin in e Rel1l!e
FAJE
20170681
INTRODUÇÃO
Lenta mas irresistivelmente no planeta inteiro, esmaece o domí
nio do religioso. Entre as espécies vivas, cuja sobrevivência o nosso
mundo ameaça, é preciso contar as religiões. As mais pequenas
estão mortas desde há muito tempo, as maiores passam por um
momento menos bom do que aquilo que se diz, mesmo o indomável
islão, mesmo o inumerável hinduísmo.
Nalgumas regiões, a crise é de tal forma lenta que pode ainda
negar-se a sun existência sem demasiada inverosimilhança, mas
por pouco tempo. A crise acontece por todo o lado e por todo o lado
se acelera, embora com ritmos diferentes. Começou nos países há
mais tempo cristianizados e é ai que está mais avançada.
Os nossos sábios e os nossos ernditos esperam, desde há séculos,
o desaparecimento do cristianismo e, pela primeira vez, ousam afir
mar que chegou a hora. Entrámos, afirmam com solenidade, ainda
que de um m.odo pouco insípido, na fase pós-cristã da história
humana.
Certamente, muitos observadores fazem uma interpretação
diferente da situação actual. Todos os seis meses, predizem um
«regresso do religioso». Agitam o espectro dos fundam.entalismos.
Mas estes movimentos mobiliza1n apenas ínfimas núnorias. São
reacções desesperadas à, em toda a parte, crescente indiferença reli
g10sa.
11
Os comparativistas anticristãos não perde111 nunca 11ma opor
A crise do religioso é, realmente, um dado fundamental do
tunidade de comparar a l.'ucaristia cristã a festins canibais. Longe
nosso tempo. Pnra se lhe encontrar o começo é preciso remontar à
de excluir estns compnrnções, a linguagem dos Evnng1:'/hos refere
wúficnçiio primeira do planeta, às Grandes Descobertas, talvez
as: «Quem niio comer n minha carne e não beber o meu sangue, diz
mais atrás aindn, n tudo o que impele n inteligência humana para
Jesus, não terá n vida eterna.» A acreditar em ]afio, que as cita,
as comparações. ,
estas palavras nterroriznrmn de tal modo os discípulos que muitos
O co111pnrativis1110 selvagem age impiedosamente por toda a
fugiram para não mnis voltarem (6, 48-66).
parte e enfrenta todns ns religiões, mas ns mais vulneráveis são,
Em 1926, A. N. Whitehead deplorava «n falta de distinção
com todn a evidência, as 111nis intransigentes e em particular a que
clnra entre o cristianismo e ns grosseiras extravagâncias dns velhas
faz assentar n snlvnçiio de todn a Humanidade suplício de um
110
religiões tribais» («Christianity lacks a clear-cut separation
jovem judeu desconhecido há dois mil anos em ]ernsalém. Para o
from the crude fancies of the older tribal religions» ).
cristianismo, jesus Cristo é o único redentor: «niio há debaixo do
O teólogo protestante Rlldolfo Bult111an11 dizia aberta111ente que
céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar»
(A ctos 4, 12). o relato evangélico se parece demasiado com todos os mitos de morte
A feira moderna das religiões submete a convicção cristã a umn e de ressurreição pnra não ser um deles. Apesar dl.' tudo, preten
árdua proun. Durante quatro ou cinco sérnlos, viajantes e etnó dia-se crente, resol11tnmente apegado a um cristianismo puramente
logos lançaram grande quantidade, a um plÍblico cnda vez mais «existencial», desembnraçndo de tudo o que o Homem moderno
curioso, cadn vez mnis céptico, descrições de mitos arcaicos mais des considera como inacreditável«n a era do automóvel e dn electricidade».
concertantes pela sun familiaridade do que pelo seu exotismo. Para extrair do seu invólucro mitológico n nbstrncçiio de quinta
Já no Império Romano, alguns defensores do paganismo viam -essência cristii, B11ltmann praticava uma operação cirúrgica bap
na Pni:rão e nn Ressurreiçiio de Jesus Cristo um muthos análogo tizada Entmythologisierung ou desmistificação. Suprimia
ao de Osíris, Átis, Adónis, Ormuz, Dioniso e outros heróis e heroínas impiedosamente do seu credo tudo o que lhe lembmva a mitologia.
dos mitos ditos de morte e ressurreição. Considerava esta operação como objectiva, imparcial e rigorosa. Na
n
A condenaçiio, muitns vezes colectivn, de uma vítima vê-se em realidade, conferia não só nos automóveis e electricidade, mns tam
todo o lado, e em todo o lado resulta n11rnn renpnriçiio triunfal dessn bém à mitologia, um verdadeiro direito de veto sobre n revelação cristã.
mesma vítima ressuscitndn e divinizada. O que, nos Evangelhos, mais lembra os mortos e as reaparições
Em todos os rnltos arcaicos, os ritos comemoram e reproduzem mitológicas dns vítimas únicas, é a Paixão e a Ressurreicão de
o mito fundador no imolarem vítimas h11mn11ns ou animais subs Jesus Cristo. Poderá desmistificar-se o Domingo de Páscda sem
tituídos à vítima original, da qual os mitos nnrrnm n morte e o aniquilar o cristianismo? A acreditar em São Paulo, não: «Se Cristo
regresso triunfal. Em 1'egra geral, os sacrifícios ncnbnm numa refei não ressuscitou, é vã a vossa fé ... » (Coríntios, 15, 17).
ção tomada em. conwm. Animal ou humana, é sempre a vítima que
faz as despesas do banquete. O canibalismo ritual não é «umn *
invenção do imperialismo ocidental», é um dado fundamental do * *
religioso arcaico.
Apesar do seu ardor, o comparativisino dos velhos etnólogos
Sem aprovar a violência dos conq11istadores, compreende-se
nunca ultrapassou o estado impressionista. À procura frenética das
sem difiwldade a impressiio que lhes fnzimn os sacrifícios astecas.
semelhanças, a nossa época pós-colonial, por razões de ordem inte-
Viam nisso uma paródia diabólica do cristianismo.
13
12
lectual, assim como de oportunismo político, substituiu uma glorifi
menos não directamente. O mrn raciocínio incide sobre dados
cação, não menos frenética, das diferenças. Esta troca parece consi puramente humanos, refere-se à antropologia do religioso e não à
derável, mas, na realidade, não tem a menor importância. teologia. Assenta no simples bom senso e apela apenas para evi
Dos milhares de pés de erva de uma pradaria pode dizer-se quer dências manifestas.
que são todos se111ellwntes quer que são todos diferentes. As duas Para começar, é preciso que nos reconciliemos, senão com o
fórmulas são equivalentesl. velho método comparativo, pelo menos com a ideia de compara
O «pluralismo», o «m11lticulturalismo» e as outras recentes çiio. O que os fracassos do passado demonstraram foi a impotência,
variações do relativismo moderno estão fundamentalmente de não do princípio comparativista, mas do uso com um único propó
acordo com os velhos etnólogos comparativistas, mas tornam imí sito que dele fizeram, na viragem do século XIX para o século xx, os
teis as negações brutais do passado. É se111 grande esforço que pode velhos etnólogos anti-religiosos.
mos entusiasmar-nos com a «originalidade» e a «criatividade» de Devido à sua hostilidade ao cristianismo, estes investigadores
todas as culturas e religiões. baseavam-se exclusivamente nos mitos. Tratavam os mitos como
Nos dias de hoje, tal como dantes, a maioria dos nossos contem objecto~ _conhecidos, aos quais se esforçavam por reduzir os Evan
porâneos sente a comparação do cristianismo a 11111 núto como uma gelhos supostamente desconhecidos, pelo menos por aqueles que os
evolução irresistível e irrevogável, pois faz-se valer do único tipo de to111ava111 por verdadeiros. Dizia-se que se os crentes tivessem feito
conhecimento que o nosso mundo ainda respeita, a ciência. Mesmo 11111 uso correcto da sua razão, teriam reconhecido a natureza
se a natureza mítica dos Evangelhos ainda não foi demonstrada mítica da sua crença.
ci-en-ti-fi-ca-men-te, diz-se que o será mais tarde ou mais cedo. Este método pressupunha domínio da mitologia que, na
11111
rc'alidade, estes etnólogos nii.o possuiam. Eram incapazes de definir
Estará tudo isto verdadeiramente certo? com exactidão o que entendiam por mítico.
Para não voltar a cair-se neste impasse, há que voltar atrás e
Não só não está certo, com.o é certo que o não está. A compara
partir da Bíblia e dos Evangelhos. Trata-se, não de proteger a tradi
ção dos textos bfblicos e cristãos a mitos é um erro fácil de refutar.
ção judaico-cristã e, de imediato, dar por demonstrada a sua singu
O carácter irredutível da diferença judaico-cristã pode ser demons
laridade, mas, pelo contrário, começar por singularizar todas as
trado. É esta demonstração que constitui o essencial do presente
parecenças entre, por um lado, o mítico e, por outro lado, o btblico e
livro. o evangélico.
Perante a palavra «demonstração» toda a gente vai aos arames,
Graças a uma série de análises que incidem, em primeiro lugar,
os cristãos ainda mais depressa que os ateus. Em caso algum,
sobre textos bíblicos e cristãos, na primeira parte do presente ensaio
dizem os primeiros, os princípios da fé poderiam. ser objecto de uma (capitulas 1-111) e, em seguida, sobre os mitos, na segunda parte
de m.ons tração.
(capítulos IV-VII/), esforço-me por nwstrar que, por detrás de todas
Mas quem está a falar de fé religiosa? O objecto da minha
as aproximações e comparações, não há nada, há uma realidade
demonstração nada tem a ver com os princípios da fé cristã, pelo
extratextual. Há um «referente», conw dizem os linguistas, e é
quase sempre o mesmo, é o mesnw processo colectivo, é um fenó
meno de m.ultidões específico, um acesso de violência mimética,
1 Sobre as relações entre as teses do presente ensaio e o «diferencialismo»
contemporâneo, ver Andrew McKenna, Viole11ce nnd Difference, University of unânime, que se produz nas comunidades arcaicas no paroxísm.o de
lllinois Press, 1992. um certo tipo de crise social. Se for verdadeiramente unânime, esta
14 15
violência põe sempre fim à crise que n preade, reconciliando n Longe dr? semn mais ou menos equivalentes, tal como se é, for
con111nidnde contra umn vítima rínica, não pertinente, o tipo de çosamente, tentado a pensar se se confiar nas sr?melllanças do pró
vítimn n que, com 11111 tom fnmi/iar, chnmnmos «bode expiatório». prio acontecimento, os rela tos bíblicos e evangélicos distinguem-se
Lonae de minimizar ns semelhançns entre, por um Indo, os dos relatos míticos tão radical e decisivamente quanto possível.
mitos e~ por outro lado, o j11dnico-cristão, mostro ~ue iio ain~a Os rf!latos míticos retratam. as vítimas dn violência colectiva
mais espr?ctarnlares do que pensnvnm os 7..'r:'il10s r?tnologos. A v10- como rnlpados. Siio simplesmente falsos, ilusórios, mf!ntirosos. Os
lêncin central dos mitos arcaicos é bnstnntr? nnnloga à que se encon relatos bíblicos e f!va ngélicos retratam estas 111esmas vítimas como
tra cm 11111itns narracões bíblicas e, sobretudo, à Paixiio de Cristo. inocentes. São essencialmente exactos,Jiáveis e verídicos.
Na 111nior parte d~s casos, é w11a espécie de linchamento espon Em rL'gra geral, os relatos míticos são directamentr? indecifrá
tâneo que se d~senrola no mitos, e ter-se-in, se111 dúvida, r~produ veis, demasiado fantásticos para serem legíveis. As comunidades
zido contrn Cristo, sob n formn de um npedrejnmento, se Pilatos, a que os elaboram nada mais podem. fazer a não ser transfigurá-los:
fim de r?vitar a sublevação dn pop11lnçiio ameaçadora, não tivr?sse são unanimemente iludidas por um contágio z iolento, por uma
ordenado a crucificaçiio «/eaa/» de Jesus. exaltação' miméticn que as persuade da wlpabilidade do seu bode
É preciso ver, penso, e111 todas as violências míticas e bíblicas, expiatório e, assim, as reconcilia contra ele. É esta reconciliação
nconteci111e11tos reai- cujn recorrência está re/acio11ndn, em todas ns que desencadeia, num segundo tempo, a divinização da vítima,
rnlturas, com a universalidade de 11111 certo tipo de co11f!ito entre os vista como responsável da paz por fim encontrndn.
homens, as rivalidades miméticas, n que Jesus Cristo chama escân É pelo facto de ns comunidades míticas niio compreenderem
dalos. o que lhes sucede que os seus relatos parecem indecifráveis.
Na minha opiniiio, esta seq11ê11cia fenomenal, este ciclo mimético,
Efectivamente, os etnólogos nunca conseg11ira111 decifrá-los, nunca
reproduz-se continuamente, a um ritmo mais 011 menos rá~id~, n~s deram conta da ilusão s11sci ta da pela unanimidade vio!e11 ta porqui>
comunidades arcaicas. Para a identificar, os Eva11gelhos sao 111d1s não começam por discernir, por detrás da violêncin mítica, .o fenó
pensáveis, pois só neles este ciclo estn descrito deform'a inteligível e
meno de multidão.
a sua natureza é explicada.
Apenas .os textos btblicos e evangélicos permitem vencer esta ilu
Infelizmente, nem os sociólogos, que se afastam por sistr?m.a dos
são porque os próprios autores a ultrapnssaram. Quer na Bíblia
Evangelhos, nem, parndo:rnl111ente, os teólogos, sempre predispos
hebraica quer na Paixão, dão representações, exactas no essencial, de
tos a favor de qualquer uisiio filosófica do Homem, têm o espírito
fenómenos de multidiio muito análogos aos dos mitos. Inicialmente,
/ivrr? o suficiente para suspeitarem dn importância antropológica do
seduzidos e enganados pelo contágio mimético, tal como os autores
processo esclarecido pelos Evnngell10s, a exaltação mimética contra
dos 'mitos, os autores btblicos e evangélicos foram, finalmente,
uma vítima única.
desenganados. Esta experiência única torna-os capazes de aperce
Até à data, apenas o anticristianismo recon.hecf!u que o processo,
ber, por detrás do contágio mimético que os desencaminhou junta
que se produz em inúmeros mitos, se produz também na crucificação
mente com o resto da multidão, a inocência da vítima.
de Jesus. O anticristianismo via nisto um argumento a favor da sua
Tudo isto se torna manifesto a partir do momento em que se
tese. Na realidade, longe de confirmar a concepção mítica do cristia
compare a tentamente a um mito tal como o de Édipo um relato
nismo, este dado comum, esta acção comum, uma vez compreen
dida, pennite revelar a divergência crucial, nunca antes assinalada bfblico tal como a história de José (capitulo IX) 011 os relatos da
Paixão (capítulo x).
(a n~o ser por Nietzsche), entre os mitos r? o cristianismo.
16 17
Para se Jazer um uso verdadeiramente eficaz dos Evangelhos, é
*
preciso ainda um olhar livre de preconceitos modernos a respeito de
* *
certas noções evangélicas, injustamente desvalorizadas e desacre
ditadas pela crítica com pretensões cientificas, em particular, nos Como se vê, a minha análise não é religiosa, mas converg~ para
Evangelhos Sinópticos, a noção de Satanás, ou seja o Diabo no religioso. Se estiver correcta, as suas consequências religiosas são
0
Evangelho de João. Este personagem desempenha, no pensamento incalculáveis.
cristão sobre os conflitos e sobre a génese das divindades mitológi O presente livro constitui, em última instância, aquilo a que se
cas, um papel-chave ao qual n identificação do mimetismo violento chamava, outrora, uma apologia do cristianismo. Longe de dissi-
permite Jazer justiça. 11111/ar este aspecto, reivindico-o sem hesitar. Esta defesa «antropo
Os mitos invertem, sistematicamente, n verdade. Inocentam os lógica» do cristianismo nada tem a ver, seguramente, nem com as
perseguidores e castigam as vítimas. São sempre enganadores por velhas «provas da existência de Deus», nem com o «argumento
que são eles próprios enganados e, com a diferença dos discípulos ontológico», nem com o sobressalto «existencial» que abalou com
de Emaús após a Ressurreição, nada nem ninguém vem alguma brevidad& a inércia espiritual do sérnlo xx. Todas estas coisas são
vez esclarecê-los. excelentes no seu tempo e espaço, mas, do ponto de vista cristão,
Retratar a violência colectiva de forma exacta, tal com.o o Jazem apresentam o grande inconveniente de não terem qualquer relação
os Evangelhos, é negar-lhe o valor religioso positivo que lhe confe com a Cruz: são mais deístas do que especificamente cristãs.
rem os mitos, é contemplá-la no seu horror puramente humano, Se a Cruz desm.itifica qualquer mitologia mais eficazmente do
moralm.ente culpado, é libertar-se da ilusão mJtica que, ou bem que que os automóveis e a electricidade de Bultmann, se nos desemba
transforma a violência em acção louvável, sagrada, porque útil à raça de ilusões que se prolongam indefinidamente nas nossas filo
comunidad~, 011 bem que a abandona completamente, tal como o faz sofias e ciências sociais, não podemos renunciá-la. Longe de estar
nos nossos dias a investigação científica à mitologia. para sempre fora de moda e ultrapassada, a religião da Cruz, na
A singularidade e a verdade que a tradição judaico-cristã rei sua integridade, é uma valiosa pérola cuja aquisição justzfica mais
vindica são pe1jeitamente reais, mesmo evidentes, sob o aspecto que nunca o sacrifício de tudo o que possuímos.
antropológico. Para se apreciar a força da tese, ou a sua fra
queza, não basta a presente introdução, há que ler a demonstração
inteira. É na terceira e última parte deste livro (capítulos IX-XIV)
que a singularidade absoluta do cristianismo, não apesar mas por
causa da sua sim.etria pe1feita com a mitologia, é plenamente con
firmada. Ao passo que a divindade dos heróis míticos resulta da
ocultação violenta da violência,_a divindade que se atribui a Cristo
funda-se na força reveladora das suas palavras e, sobretudo, da sua
morte livremente consentida, que torna manifesta, não só a
sua própria inocência, mas tam.bém a de todos os «bodes expiató
rios» do mesmo tipo.
18
19