Table Of ContentDA «IUSTITIA» A «DISCIPLINA». TEXTOS, PODER
E POLITICA PENAL NO ANTIGO REGIME
SUMARIO
I. INTRODUQAO. II. O DIREITO PENAL DA MONARQUIA CORPORATIVA. III. O
DIREITO PENAL DA MONARQUIA "ESTATALISTA". IV. O SISTEMA DISCURSI-
VODO C6DIGO CRIMINAL de Pascoal do Melo.«ARQUIVO=TEXTUAL ESIS-
TEMATICA. V. OS CODIGOS IDEOL6GICOS DO DISCURSO LEGISLATIVO.
1. Os crimes contra a reltgtao. 2. Os crimes contra ordem moral.
3. Os crimes contra a ordempolittca -r lesa-magestade. 4 Os cri-
mes contra aordempolitica -aviolencta. 5. Oscrimes contra aspes-
soas -a honra. 6. Os crimes contra as pessoas -ocorpo. 7. Os cri-
mes contra a verdade. 8. Os crimes contra o patrim6nio. 9 Con-
clusdo.
I. INTRODUCAO
Em 26 de Novembro de 1786 -quatro dias antes da promul-
gatrdo daquele que e considerado como o primeiro «c6digopenal
moderno», o c6digo de Pedro Leopoldo da Toscana-, Pascoal de
Melo apresentavaaJunta do Novo C6digo a primeira parte do seu
projecto de c6digo criminal.
Apesar de objecto de tresedi(;des 1 e de ser geralmente conhe-
cido e citado, este texto nao tern despertado grande atenqao. E,
' Ensaio do Codlgo Criminal aque mandou proceder a rainha D Mariat, Lls-
boa(Tip.Malgrense, 1823), XIII + 459pp Ed Mlguel Setaro,ex-consul de Portu-
gal na Russia,queutlllzou um manuscrlto cedldo pelos herdelrosdo autor Co-
dlgocriminal, tntentadopelaramhaD Maria l.. Segundaediqao castigadadoserror,
Llsboa 1823 (Tip SlmaoTadeu Ferreira), 1823, XIX-144. Ed FranciscoFreire de
Melo que, posslvelmentecorn acolabora(;aodo pr6pno Pascoal de Melo nor tilt]-
mosanos de suavlda,retocouaversao original «porventuracorn maisalgumfim,
do que o de adepurare cornglr- («Advertenclao da 3a.ed., IV), pelo que, no dl-
zerdosmesmos tercelrosedltores,atransformou«por asslmdizer,numaobra no-
va».NAoIncluias«Provas».C6digo criminal,intentadopela ralnha D Marial, corn
asprovas,Coimbra, 1844 (Imprensada Unlversidade).Segue, fundamentalmente,
aprlmelra edlqao. Masos edltores prometem Inclulr, a final, uma tabela dasva-
rlantes, entre as duas anteriores edio;6es, todavla, nor exemplares queconheqo,
tat tabela naoaparece.No presente texto, seguiu-sea tercelra ediqao Sobre Pas-
coal de Melo,v., portodos, VITORFAVEIRO, 1968
494 A M Hespanha
no entanto, trata-se, a meuver, de umapeqa impair, quer no con-
fronto com a tradi(;ao legislativa europeia, quer pela importan-
cia que vai ter como modelo (muitas vezes implicito ou silencia-
do) das futuras tentativas de codificaqao penal em Portugal Z.
Neste estudo, pretendo contribuir para colmatar esta lacuna
da nossa historiografia.
Ao faze-lo, dou-meconta, porem, docaricter inusitado doem-
preendimento, nocontextodasactuais tend6nciasda hist6ria ins-
titucional ejuridica. Numa fase de critica generalizada, e global-
mentejusta, a uma histbrica juridico-institucional voltada para
os textos -legislativos ou doutrinais- e separada do estudo dos
factos sociais, eis que me re-proponho um estudo textua13, numa
area onde, para mais, proliferam leituras antropoldgicas, socio-
logicas e political -a hist6ria do crime e da pena4.
Ocorre, portanto, colocar algumas questoes preliminares so-
bre o estatuto tecirico da hist6ria textual, nesta nossa epoca que
rompeu definitivamente com os postulados da historiografia ju-
ridico-institucional de cariz dogmatico (Dogmengeschichte).
A primeira questao a ser levantada 6 a de saberse tem senti-
do, para quem pretenda fazeruma hist6ria dos sistemas de con-
trole e marginalizaqao sociais, preocupar-se assim com os textos.
Na verdade, e quanto aos textos legais, todos sabem que as
leis -mesmo as penais- nunca sao pontualmente cumpridas e
que, em alguns casos, nem sequer visam -como diremos adian-
te- essa aplicaqao pontual. Que, ademais, elas nao constituem
todoodireito,existindo normas socialmente eficazes nopianoda
marginalizaqAo eda puniqao dediverssissima origem, desdeoses-
tilosdejulgar ate a regras muitopouco estruturadas de compor-
tamento social 5. Quanto a doutrina, todos os Clue estao familia-
rizados com a literaturajuridica cedo descobrem Clue ela consti-
tui, nao um espelho da realidade social, mas um seu filtro e re-
construqao. Que reclassifica erevaloriza uns factossociais,Cluesi-
lencia outros, Cluecria realidades «imaginarias» -e nao me refi-
Z Sobreelas, v por ultimo, o original trabalho de J M LOPES SUBTIL, 1986
3 A. M HESPANHA, 1986a, yJ.-M SCHOLZ, 1986
Para um balanqo actual, v PH ROBERT, 1985, conjunto slgnlflcatlvo dal
onentao;oes hole correntes, em L BERLINGUER, 1986.
5 Sobrea multlpllcldade de normas de condutaede tecnologiasde controlo
social,v A.M HESPANHA, 1987.
Da atustuia- d adiscipfinan 495
ro apenas aquilo queos pr6prios juristas consideramcomo fictio-
nes iuris, mas a coisas de cujo caracter -construido» eles pare-
cem nao sedar conta- e as trata como reais.
E, no entanto, os textos, nao apenas sao, eles mesmos, reali-
dades da histbria juridica e institucional, como mantem uma in-
tima rela(;ao com outras realidades de que se alimenta quotidia-
namente a tal hist6ria social das instituic,6es.
Comeqo poreste ultimo aspecto. Um dostemasactuais da his-
tbriapenal europeia eo dasgrandes linhas de evolu(;Ao da crimi-
nalidade na Europa, da idademedia aos nossos dias. Explorando
umasugestdo inicial de uma transiqaoda criminalidade violenta
para acriminalidade patrimonial (fromviolence to theft) ', tem-se
procurado, com base em estudos estatisticos dos registos judi-
ciais, comprovar ou infirmar esta tese. Mas, «furto» ou «violen-
cia» sao realidades conceituais e nao empiricas (no sentido mais
lhano da palavra). Erealidades conceituaisque, como severa,ex-
perimentaram mudanqas bruscas no decursoda evolucao dogma-
tica de ciencia penal. Como os factos sociais do passado nosche-
gam atraves de textos -e de textos que os filtram pelas catego-
rias da grande tradiqao dogmatica europeia- esta tradicao tex-
tual acaba por constituir uma chave indispensavel para fazer a
hist6ria dos factos empiricos.
Mas, mais do que isto, parece importante sublinhar como os
textos, em si mesmos, sdo factos socials «htstoridveis»; como nao
sao apenas receptaculos neutros e disponiveis de ideiasou de coi-
sas, mas realidades internamente estruturadas, dotadas, por as-
sim dizer, de uma villa e l6gica evolutiva pr6prias. Realidades
queseleccionam as coisas (os objectos) de que nelesse pode falar;
queatribuem um certoestatuto s6cio-institucional ao autore que
pre-figuram um certo audit6rto; que autorizam certa maneira de
argumentar ou de provar e excluem outras; que, entre si, auto-
nomamente dialogam, convidando a leitura de outros textos e,
em contrapartida, interditando certas referencias (i.e., quecriam
uma certa intertaxtualtdade)'.
6 Sobreotema, v JENS CHR V JOHANSEN, 1986
' Cf para estesaspectos,M FOUCAULT, 1969 (estruturasdiscursivasacondiq6es
da priticadiscursiva), P ZYMA, 1977, 1980 (sobretudo para oconcerto de intertex-
to) Apresentaqao geraldestes temas, em portuges, CARLOS REIS, 1981 .Aplicaqao
ao discurso juridico,A M HESPANHA, 1978a
496 A M.Hespanha
Falar de autonomia dos textos pode constituir um equivoco,
se nao se esclarecer imediatamente que este sistema interno dos
discursos e a outra face das condicoes sociais e institucionais e
ate materiais emque elessao produzidos. Condiqoes sociais, ins-
titucionais e political modelam o universo dos autores e dos lei-
tores e estabelecem o modelo das suas rela(;6es reciprocal. Cir-
cunstancias materiais (v.g., estado dal bibliotecas) e culturais
(v.g.,linguisticas) condicionam ouniverso dalreferencias.Porsua
vez, sao de novopondi<;oes sociais e political que estabelecem os
limites do impacto social (da recepqdo) de um texto$.
Eeste o contexto teorico, e esta a pre-compreensaometodol6-
gica, em que vai decorrer aseguinte apresentaqao do Projecto de
C6digo Criminal de Pascoal de Melo.
Numa primeira parte(caps. II eIII),procuraremos definiroes-
paqo politico em que se situa(em que eeficaz) o grande discurso
penalista de que faz parte a obra de Pascoal de Melo. Estudare-
mos, para isso, o espaqo punitivo do direito legal doutrinal -a
que por simplifica(;ao chamaremos o direito real-, na orbita do
qual este discurso se situa, a fim de surpreender as apostas poli-
ticas que ai sejogam.
Numpiano, as apostasda coroa,enquantopromotoradestaes-
pecifica ordem penal; noutro, as dos pr6prios juristas, enquanto
titulares da mediaqAo juridica letrada.
No primeiro plano, veremos comp, durante o periodo da mo-
narquia «corporativa)) 9, o direito real constituiu uma ordem ju-
ridtca apenas virtual, mais ortentada para uma intervenqaosiin-
b6lica, ligada a promo(;ao da imagem do rei como sumo dispen-
sadorda justiqa, do quepara uma intervenqao normativaquedis-
ciplinasse, efectivamente, as condutas desviantes. Este caracter
virtual da ordem penal real expltca, por sua vez, o caracter «li-
vresco» da teoria penal que incide sobre ela e a sua aparente in-
sensibilidade aos problemas sociais e humanos da puniqao. Tan-
to comp a lei, o discurso dos juristas naoesta decisivamente vo-
" Sobreoconcerto de «reccp~aou, v. asobras citadasna nota 7 Sobreaani-
lise pragmMico-politica dos textosedos discursos-alem de M FoUCAULT, 1969-,
P BoURDIEU, 1976, 1980 e 1984
' Uuhramos esteconcerto como%entUdoqueresultadalconclusoes apresen-
tadasem As vesperas do Leviathan (A M HESPANHA, 19866)
Da Qiumtza- d adisciplinan 497
cacionadopara uma modelaigao quotidiana da praticapenal.Nao
e que esta esteja completamente fora do horizonte do discurso,
mas impoe-se ai tanto como a tradi(;ao literaria. Por isso, gritan-
tes questoes de politica criminal -como, por exemplo, a da uti-
lidade social das penasou a da preven(;ao penal- sao completa-
mente submergidas pelo peso da tradiqao textual e pelos cliches.
O discurso fecha-se sobre si,sobreo seu inter-texto, e pode,assim,
manter-se fiel a tradi4;oes textuais antiquissimas, prolongar du-
ranceseculos as mesmas classificaqaese hierarquizaqoes, repetir
os mesmos temas e topicos da tradi(;aojuridica romana, canbni-
ca e medieval. E, com isto,reforqar ainda um habitus intelectual
dosjuristas que, subvertidas ascondiqoesde produqao ede inter-
venqao social destediscurso,continuara aserresponsavelpelasu-
pervivenciadas formulas literarias tradicionais,aindaquepreen-
chidas com um novo conteudo.
Nosegundo plano-odas apostaspoliticas dos mediadoresju-
ridicos-, destacaremos como este fechamentodo discurso sobre
si se transforma num factor de constru(;ao do poder corporativo
dos juristas. Pela hetero-integraqdo dos textos legislativos com os
textos do direito comum,osjuristasescapavam aos limites dodi-
reito legislado (ele mesmo, em grande parte, da sua feitura); dai
a importancia politics da discussao em torno dos topicos nullum
crimen, nullapoena sine lege que, segundo cremos, nao deve, nes-
te periodo,ser tao relacionadocom adefesa das garantias dos par-
ticulares quanto com as tensoes political acerca do arbitrio dos
juristas. Pela defesa de um dominio arbitrariodeacqao-na bus-
ca e prova dos factos, na sua avaliaqao, na interpretaqao da nor-
ma juridica, na decisao sobre aoportunidade da sua aplicaqao-
osjuristas constituem-se em mediadores monopolistas dodireito
e averbam, assim, o capital politico e simbolico dai decorrente.
O pr6prio caracter fechado e exoterico do discurso favorece esta
estrategia, aoacentuarainda omonopolio dos juristassobre osa-
berjuridico e ao decorar este ultimo corn o ar de uma disciplina
altamente tecnica e formalizada (i.e.,distanteeneutra emrelaqao
aos interesses sociais e vitais em discussao) t°.
'° V sobre estes temas, hole centrais, da sociologia do discursojuridico mo-
derno, sobretudo os trabalhosde R AJELLO esua escola, nomeadamente, R Ate-
LLO, 1976, 1985, L Roviro, 1981 V Scturt-Russi, 1983
498 A M Hespanha
A ruptura iluminista corresponde, por sua vez, a varios fe-
nomenos.
No respective capitulo, destacaremos a modifica(;ao das mo-
dalidades de intervenqaosocial do direito real.Noseio de um pro-
jecto politico que intents reduzir os p61os perifericos de poder,
construir o Estado e fazerdesteo p61o unico de disciplina social,
afunqdo do direitopenalreal vai ser, agora, verdadeiramentenor-
mativa e disciplinar.
Isto implica, naturalmente, mudanqas institucionais come a
reforma do direito, da organizaqaojudiciaria e do sistemadaspe-
nas, a que se aludira nesta primeira parte. Mas tambem mu-
dan(;asdiscursivas, quer no planosintactico-i.e., da organizaqao
formal do discurso-, quer nosplanes semantico-i .e., dos temas
e problemas tratados -e pragmatico- i.e., do estatuto dos locu-
tores e do pCiblico visado. Destas mudanqas se falara, sobretudo,
na segunda parte; mss destacaremos, per era, dois aspectos.
Um deles, correlative da adquis(;ao, pelo discurso juridico-pe-
nal, de uma mais efectiva intenqao pratico-normativa, e o facto
de nele passarem a estarcontinuamentepresentesos temasde po-
litica criminal, substituindo as discuss&es dogmaticas usuais na
tradi(;ao textual.A utilidadedassoluqoes impoe-se agoraa suaele-
gancia. E, com isto, ganham-se um novo tom, um novo sistema
de argumentaqao e de comprovaqao das proposiqoes, um novo
universo de referencias e autoridades. Novas questoes se abrem
-come, perexemplo, ado «humanitarismo»-que, menusdo que
numa maior sensibilidade moral, se fundam antes na maior res-
ponsabiliza(;ao social dos juristas pelas opinioes que formulam
no seio de um discurso quedeixou de serun jogo literarioou dog-
matico para setransformarnuminstrumentode disciplina social.
O outro aspecto diz respeito aos novos estatutos dos sujeitos
do discurso.
Da parte dos autores, as modificaqoes institucionais no plano
da reforms das Pontes do direito, do ensino juridico e da organi-
za4;aojudiciaria, abalam-lhes oanterior monopolio da discussao
juridico-penal. Agora, eles tem, mais frequentemente, que con-
vencer os leigos e que dialogar cum uma literatura nao tecnica.
No seu intertexto -i.e., no seu campo virtual de diJilogo- dei-
xam de estarapenas os textos da tradiqao penal letrada, para pas-
sarem a estar, tambem, os textos da nova ciencia de policia e a
Da aiustitia- a adisciplina- 499
literatura sobre temas penais, mais ou menos panfletaria, consu-
mida avidamente pela opiniao publica europeia na segunda me-
tade do sec. xvin. E, com isto,e todo um universodiscursivo que
se transforma.
Da parte do auditorio, experimentam-se as modificatroes res-
pectivas.Os textos,assim dirigidosAopiniaopublicaecorrespon-
dentemente organizados no pianoformal -na sistematizatrao,na
lingua, no vocabulario, nasreferenciasbibliograficas-, modelam
um novo leitor,criamum novo auditorio, naojaodos peritosem
direito, mas o dos «homens ilustrados e amantes do bem pttbli-
co». E,com isto, modifica-se tamb6m asitua(;aosemiotica do tex-
to e as apostas politico-culturais em que este passa a estar
comprometido.
Definidos o espaqo discursivo e as mutaqoes que ai se verifi-
cam, abordaremos, depois (cap. IV), a tradi(;aoliterariaquecons-
titui ointertexto do Projecto. Procurando detectar ai, quer os mo-
ments de ruptura, quer as continuidades na organizatiao do dis-
curso.Como veremos, as continuidades discursivas aparecem co-
mo imponentes, constituindo as categorias de apreensaodos pro-
blemas do crimee da pena, vigentes durante seculos para os tec-
nicos das ciencias do poder e da sociedade. Uma tao longa vigen-
cia destes quadros classificativos e valorativos nao pode ter dei-
xado de marcar muito profundamente a cultura penal europeia,
mesmo nas suas manifestaqoes populares (como o documenta a
literatura popular sobre temas penais) 11 . Nesse sentido, nao se-
ria totalmente despropositado tentar recuperar, com base neles,
alguns dos traqos da antropologia cultural da sociedade euro-
12.
peia Mas, seja como for, o que tais quadros representam e, pe-
lo menos, a antropologia espontanea dosjuristas, o cabedal im-
pensado com o qual geraqoes e geraqoes de titulares de uma me-
dia(;ao politico-social decisiva vao avaliaros homens e asocieda-
de do seu tempo e propor-Ihes modelos de organizatiao.
E aqui -ao nivel de estruturas textuais e discursivas que, a
um tempo, manifestam e modelam a sensibilidade mais profun-
" V.sobrealiteratura popular francesa sobretemaspenais,com m6todos ino-
vadores, H-J LUSEBRINCK, 1983
12 Retomo,nestcponto, umainteressante propostade B Cu+VERO(em B CtA-
VERO I985)..
500 A M Hespanha
da dos mediadores juridicos da Europa moderna- que as mu-
ta(;oes (na maneira de classificar, de hierarquizar, de relacionar
ou de opor, de valorar) sao mais decisivas e reprodutoras. Dai
que, se concluirmos-como algumas vezesconcluiremos-quee
neste piano que o novo discurso de Pascoal de Melo (ou melhor,
que tem em Pascoal de Melo o seu medium) rompe com o passa-
do,entao estaremos a justificar plenamente aquilo que antes dis-
semos sobre o caracter epocal da sua obra.
II. O DIREITO PENAL DA MONARQUIA CORPORATIVA
O sistema penal da monarquia corporativa caracterizava-se
por uma estrategia correspondente a propria natureza politica
desta. Ou seja,se, no pianopolitico, opoderreal seconfrontacom
uma pluralidade de poderes perifericos, frente aos quais se assu-
me sobretudo como um arbitro, em nome de uma hegemoniaape-
nas simb6lica, tambem no dominioda puniqao, aestrategia da co-
roa nao esta voltada para uma interven(;ao punitiva quotidiana
t3.
e efectiva
De facto, a funqao politico-social determinante do direito pe-
nal real nao parece ser, na sociedade «sem Estado» dos secu-
los xvl exvil, adeefectivar, por si mesmo, uma dtsciplina social.
Para isso the falta tudo-os meios institucionais, os meioshuma-
nos, o dominio efectivo do espaqo e, por fim, o dominio do pro-
" Limito-me, nesteestudo, aconsiderar odireitopenal da coroano dommmo
secular Apraticapunitiva da Inqusiqao-que, formalmente, devena serintegra-
da no universo da pumqao real, dada a natureza do Tribunal-funciona,a meu
ver,num plano diferente, pouco tendoa vercom o discurso juridico-penal cujas
condicionantes estamosaestudar Porum lado,realizaumafunqao politico-ideo-
logica diferente, naoseorientando prevalentementepara a promoq5oda imagem
do reicomo sumodispensadordalustiqaeda graqa, depots,naoapresentaasmes-
mas dificultades de implantai;aopritica, sobretudo pelo factode se jmp&r atra-
ves de mecamsmosinstitucionaiseprocessuatsmuito mass eficazes,importados
do modelo eclesiAstico deorganizaqao, porfim, porque aesta prAtica naocorres-
pondeomesmo universo de discurso,pois os junstasniose ocupam,senaolate-
ralmente, da prfitica punitiva da Inquisiqao, mesmo quando tratam de crimes
que, em Portugal,sio do seuforo
Da siustittan d adisciplinaa 501
prio aparelho de justio;a, expropriado ou pelo «comunitarismon
das justiqas populares ou pelo (corporativismoy) dos juristas le-
trados. Essa fun(;ao parece ser, em contrapartida, a de afirmar,
tambem aqui, o sumo poder do rei como dispensador, tanto da
justiqa como da graqa.
E nesta perspectivaque, a meu ver, deve serlido o direito pe-
nalda coroa.Se ofizermos, naodeixaremosde convir que, em ter-
mos de norma(;ao e puniqaoefectivas, ele se caracteriza, mais do
que por uma presenqa, por uma ausencia. Vejamos como e
porque.
Comecemos pelos aspectos ligados a efectivaqao positiva, por
assim dizer, da ordem real.
Com esta se relaciona, desde logo, a questao da eficacia con-
formadora da mediaqao dos juristas, ou seja, da capacidade que
osjuristas tem, no sistema do ius commune, de estabelecer auto-
nomamente o direito. No entanto, como esta questao nos ira so-
bretudo interessar num ulterior momento, deixemo-la poragora.
Fixemo-nos, para ja, no grau de aplica(;ao prAtica da ordem pe-
nal legal.
Os dispositivos de efectivaqao da ordem penal, tat comp ou
vi-nha na lei, careciam de efici6ncia.
Primeiro, pela multiplicidade de jurisdi(;oes 14,origem de con-
flitos de competencia -descritos por muitas fontes comp inter-
minaveis-,quedilatavamos processosefavoreciam fugasaocas-
tigo. Depois, pelas delongas processuais -de que todas as fontes
nos dao conta-, combinadas como o regime generoso de livra-
mentodos arguidos,aquenos referiremos 15. Finalmente-eees-
'" V, para alem das indica~oes que dei no meuAs vesperas do Leviathan , a
descnqao sucinta de CASTRO, 1619, pg II, I 1, c 2, 78ss [pg 25ss ] (lurisdiqdes
temporais ou laicas) e pg 1, I 2, c I ss [pg 55ss ] (lurisdi(;oes eclesiasucas).
's Oterra das «delongas processuais» carecede estudo, para que se nao acel-
teacnticamente um t6pico comum ALernbranqa detodosos crinrinozos. ,adian-
te mass dendamente referida, nao fornece dadosdefinihvos para uma avallacAO
doassunto, nosfinais doseculoxvu ao lado depresoscom v5nosanos decarcere
,~ esperade dectsao, outros unham os feitos conclusos parajulgamentoao fimde
does ou tres meses Sobreasdificultades de implantaqao da ordempuniuva real,
mesmonacapital,esobreodiagnosnco dascausasdestas dificultades,v opream-
bulo do alv. de 31-3-1612 (C LE, 1, 422 ss), onde se referem, sobretudo, a falta
deestruturas «policiais- e decontrolo da ordempublica, as «inumeraveis indus-
502 A. M Hespanha
to o terra que, agora, nospassa a interessar-, pelos condiciona-
lismos de aplicaqao das penas.
Condicionalismos de doistipos. De natureza politica, isto e, re-
lacionados corn o modo como a politica penal da coroa se inte-
grava numa politica mais global de disciplina regia; ou de natu-
reza pritica, relacionada como as limitaqaes dos meios institu-
cionais, logisticose humanos na disponibilidade da coroa. Come-
cemos por estes itltimos e, no final, concluiremos corn os pri-
meiros.
Tomemos para exemplo a pena de degredo. Quanto aplicada
para o ultramar, ela obrigava a espera, porvezes durante meses
16;
ou anos, de barcos para o local do exilio o reu ficava preso a
ordem da justiqa, nascadeia dos tribunais de apelaqao, tentando
um eventual livramento, aquandodas visitas do Regedorda Jus-
tiqa t'. De qualquer modo, uma vez executada a deportaqao, fal-
tavam os meios de controle que impedissem a fuga do de-
1
gredado 8.
As mesmas dificultades existiam nas medidas, preventivas ou
penais, que exigissem meioslogisticosde quea administraqao da
justiqa carecia. Era o que se passava corn a prisao -de resto, ra-
ramente aplicada como pena-, que obrigava a existencia de car-
ceres seguros, a organizatyao de operai;oesonerosas de transporte
de presos (as odiadas levasdepresos), a disponibilidade de meios
teas esubterfugiosb corn quesepodia iludirocastigoou dilatarasua execuqao
eademora dosprocessor(nomeadamente, no casode reus pobresos escrivaesnao
queriam realizar actosde quesabiam nao jr serpagos, ou naqueles em quenao
havia acusaqao de parte).
'6 Isto levoua que sedetermmasse que o lugardo degredo fosse fixado gene-
ncamente («paraAmgola-, «paraoBrasil-),embora conheqa decisoes dedegredo
«para Bissau-, «para Cacheu-, «para a Ilha do Principe-, «para o Maranhao-
" Sobre estas visitas, v., infra
'" No manuscrito Lembranqadetodososcriminozos ., encontram-se (poucos)
casosde crimmososfugidosdo localdo degredo Apena e, normalmente, adevol-
taracumpnrodegredoporinteiro Noutroscasos, ocrime6pumdocorn apena
de degredo, convertida na de morte natural se ocrimmoso regressar, fugido, ao
remo Istocorrespondia Adoutnnageralsobreotema,queestabelecia,para estes
casos, arepetiqaodo degredo, em localconsideradomats agravado(v.g ,seopn-
meirodegredoerano nortede Africa,osegundoseriaemAngola,ou,sendoopn-
meiro aqui,o segundo seriano Brasil, fugindo-se, neste ultimo caso, a pena era
a morte).
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