Table Of ContentAsrevoltasdejunhode2013têmmuitoemcomumcomasduas
outras grandes manifestações de massa da redemocratização, as
DiretasJáeomovimentopeloimpeachmentdeCollor.Assimcomo
em1984nãosetratavaapenasdeconquistarodireitodevotardireta-
menteparapresidente,assimcomoem1992nãosetratavaapenasde
afastarCollor,tambémasrevoltasde2013carregamaspiraçõesque
vão além da revogação do aumento das tarifas de transporte, ou do
questionamentodousododinheiropúblicopararealizarmegaeventos
esportivos, como a Copa do Mundo.
Em1984,areivindicaçãodeeleiçõesdiretasparapresidenteera
tambémumamanifestaçãoporumatransiçãoparaademocraciaque
estivesse à altura das expectativas de mudanças em todos os níveis.
Queriamuitomaisdemocracia,muitomenosdesigualdades.Aderrota
daemendanoCongressofoiumgolpeparaasruas,queredirecion-
aram então as energias para a Constituinte (1987-1988).
Em1992,aexigênciadoimpeachmentdopresidentetraziainsatis-
fação com a recessão econômica, o péssimo funcionamento dos ser-
viçospúblicos,odesastradoplanodecombateàinflação–principal
problemadaredemocratizaçãoaté1994.Maisquetudo,carregavaas
frustrações de uma Constituição que não se tornava realidade, que
ficavaapenasnopapel,eaaspiraçãoderetomarnasruasopoderque
tinha sido utilizado por Collor de maneira personalista e autoritária.
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Junhode2013tambémcarregaumamultidãodereivindicações,
frustraçõeseaspirações.Nãofoiporacasoqueoaumentodastarifase
arealizaçãodegrandeseventosesportivosnopaíscatalisaraminsatis-
façõesdeordenstãodiferentes.Otransportepúblicoéexemplardein-
eficiência,máqualidadeepreçoexorbitante.Pelomenosdesde2003,
vinha se organizando um movimento nacional (o Movimento Passe
Livre,MPL),commanifestaçõesimportantescontratodososepisódios
deaumentosdetarifa.ComitêsPopularesdaCopaseformaramnas
cidades-sededocampeonatomundialdefutebolparadenunciarviol-
açõesdedireitoseparaquestionarossupostosbenefíciosqueviriam
com os gastos públicos com a organização.
São movimentos que se formaram e que funcionam de maneira
apartidária,mantendoautonomiaeindependênciaemrelaçãoagov-
ernos. São movimentos horizontais, que recusam a ideia da con-
centração da representação em uma liderança individual. A violenta
repressãopolicialaosprotestosqueiniciarampelopaísdesencadeou
umaondaaindamaiordemobilização,tantoemdefesadodireitocon-
stitucionaldemanifestaçãocomocontraaatuaçãodapolíciaemgeral.
E uma série de reivindicações veio se juntar às iniciais.
Mas, ao contrário de 1984 e de 1992, nenhum tipo de narrativa
unificada se colocou de saída como modelo para a formação de um
movimento.Nãoédeummovimentoquesetrata,masdevários.As
interpretaçõesdivergemsobreoqueaconteceu.Aideiamesmadeque
sejapossívelum“relatodosfatos”équestionável.Asinterpretaçõesdi-
vergemtambémsobreosentidodoqueaconteceu.Sãodiferentesas
dinâmicasdemanifestaçãonasdiferentespartesdopaís,emcadacid-
ade,emcadapartedacidadeondeocorremprotestos.Manifestações
surgem como irrupções, grandes, pequenas, isoladas, reunidas.
Quandosereúnememgrandesmassas,têmformadeondas.Depend-
endo de qual onda se pega, a passeata pode ter sentidos opostos,
inconciliáveis.
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Asrevoltasdejunhode2013nãotêmlideranças,palanquesnem
discursos.Aspasseatasseformam,sedividemesereúnemsemroteiro
estabelecido. É difícil até mesmo prever onde vão surgir e ganhar
corpo.Organizam-se apartirdecatalisadoresnasredessociaiseno
bocaabocadasmensagensdetexto.Nãosãorevoltasdirigidascontra
esteouaquelepartido,estaouaquelafigurapolítica.Sãorevoltascon-
tra o sistema, contra “tudo o que está aí”.
Em 1984, o movimento foi convocado e liderado por forças de
oposiçãoaoregime(partidos,sindicatos,movimentossociais)eapoi-
adoporgovernosestaduaisemunicipais.Em1992,foilideradopela
UniãoNacionaldosEstudantes(UNE)eapoiadopelosmaisdiferentes
setoresdasociedade.Em2013,nãohouveorganizaçãoúnicanemlid-
erançasclaras.Asforçasorganizadastradicionaisouestigmatizaramo
movimentocomopolítico(JuventudedoPSDBdeSãoPaulo,porex-
emplo), ou tentaram aderir a ele tardiamente, depois que já tinha
mostradosuaenormeforçademobilização(comoaUNE,oPT,oMST,
ascentraissindicaise,denovo,aJuventudedoPSDBdeSãoPaulo).
Asprimeirasmanifestaçõesforamconvocadaspororganizaçõescomo
oMovimentoPasseLivre(MPL)eosComitêsPopularesdaCopa.São
movimentosquenãotêmmassacríticasuficienteparaliderarummo-
vimentodessaenvergaduraeacabaramengolfadospelaamplitudeda
mobilização.Aindaassim,continuaramadispordelegitimidadesufi-
ciente para convocar novos protestos e para renovar a pauta de
reivindicações.
Acomparaçãocom1984e1992interessatambémsoboutroas-
pecto. No caso das Diretas Já, as ruas foram derrotadas pelo Con-
gresso.Noimpeachment,aocontrário,asmanifestaçõeseprotestosse
impuserameopresidentefoiafastado.Nosdoiscasos,forammobiliz-
açõesqueseestenderamporalgunsmeses.Porcontraste,impressiona
avelocidadecomqueasrevoltasdejunhode2013atingiramseuobjet-
ivo inicial de revogar o aumento das tarifas do transporte público.
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Impressiona que tenham rapidamente obrigado a presidente Dilma
Rousseff a fazer um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e
TV. Impressiona que tenham obrigado a presidente a organizar às
pressasumencontrocomos27governadorese26prefeitosdecapitais
paraanunciar“cincopactos”entretodososníveisdegoverno,relat-
ivos a transporte, educação, saúde, responsabilidade fiscal, reforma
política e mesmo corrupção. Impressiona, sobretudo, que tenham
obrigado apresidente adar opassodepropor umplebiscito para a
realização de uma Assembleia Nacional Constituinte com o objetivo
exclusivo de realizar uma reforma política.
As revoltas de junho deixaram atônitas figuras de todos os
partidos,quenãoconseguiram nementenderoquesepassavanem
agirnotempocerto.Osexemplosseespalhampelopaís,emtodosos
níveis de governo. Mas talvez o emblema seja o caso de São Paulo,
ondeogovernadorAlckmin(PSDB)eoprefeitoHaddad(PT)agiramo
tempotodoemcoordenação, unidosaténomomentodeanunciar a
decisão de revogar o reajuste das passagens. Os dois partidos que,
supostamente, são adversários por excelência.
Osistemapolíticoficouatônito,perguntando-secomquemdever-
ianegociar.Acossadopelasruas,saiuembuscadeumaorganização
hierárquica,comliderançasereivindicaçõesclaras,comquempoderia
debater, de maneira tecnocrática, planilhas de custos e leis orça-
mentárias.Nãoencontrou.Nãoentendeu,nempodiaentender,oque
acontecia.Aolongodevinteanos,essesistemacuidoutãobemdese
blindarcontraaforçadasruasquenãopodiamesmoentendercomo
as ruas o tinham invadido com tanta sem cerimônia.
Essa blindagem do sistema político contra a sociedade tem uma
história.Suaformaprimeiraemaisprecáriafoiaunidadeforçadacon-
traaditaduramilitar(1964-1985),queveioarepercutirdemaneira
importantenamaneiracomosedeuoprocessoderedemocratização.
Nosanos1980,opartidoquedetinhaaliderançaabsolutadoprocesso
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político,oPMDB,impôscomoindispensávelauniãodetodasasforças
“progressistas”paraderrotaroautoritarismo.ComexceçãodoPT,to-
dosospartidosparticiparamdaeleiçãoindiretadejaneirode1985,no
chamadoColégioEleitoral,controladopelasforçasdaditadura.Tan-
credoNevesfoieleitopresidente.Mortoemabrildomesmoanosem
tersidoempossadonocargo,deixounocargooseuvice,JoséSarney,
quadrohistóricodesustentaçãodaditaduramilitar,indicadopeloPFL
(em2007,asiglamudouonomeparaDEM).MesmocomSarneyna
presidência,o“progressismo”continuouarepresentaraideologiaofi-
cialdeumatransiçãomornaparaademocracia,controladapelore-
gimeditatorialemcriseepactuadadecimaporumsistemapolítico
elitista.
Aprimeiracriseenfrentadaporessablindagemsedeudurantea
Constituinte,quandoessaunidadeforçadadeudecaracommovimen-
tos e organizações sociais, sindicatos e manifestações populares que
nãocabiamnoscanaisestreitosdaaberturapolítica.Sobocomando
dochamadoCentrão,blocosuprapartidárioquecontavacommaioria
de parlamentares do PMDB, o sistema político encontrou uma
maneiradeneutralizá-los,apostandonaausênciadeumapautauni-
ficadaedeumpartido(oufrentedepartidos)quecanalizasseasaspir-
açõesmudancistas.Nasceuaíaprimeirafiguradablindagemdosis-
temapolíticocontraasociedade.Aesseprocessodeblindagemdouo
nome de pemedebismo, em lembrança do partido que capitaneou a
transição para a democracia.
O progressismo também prevaleceu no impeachment de Collor.
Masoperíodopós-impeachmentdeuorigemaumasegundafigurado
pemedebismo,quedeixouparatrásaideologiaunificadoradaunião
dasforçasprogressistas.Arespostadosistemapolíticoaoprocessode
impeachmentdeCollornãofoiumareformaradical.Pelocontrário.
Fincou-se como verdade indiscutível que Collor tinha caído porque
não dispunha de apoio político suficiente no Congresso, porque lhe
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teria faltado “governabilidade”. Nasceu aí a exigência inquestionável
de esmagadoras maiorias suprapartidárias que pudessem bloquear
movimentoscomoodoimpeachment,segundoomodelodoCentrão
da Constituinte.
Foiassimqueosistemasepreservousemmudar,fortalecendosua
lógicadetravamentodegrandestransformações,reprimindoasdifer-
ençassobumanovaunidadeforçada.Foiassimqueapartirde1993
foisendoconstruídooacordodagovernabilidadequeblindaosistema
políticocontraasociedade,asegundafiguradopemedebismo,sóde
fato desestabilizada com as revoltas de 2013.
Apartirde1993,oscanaisdeexpressãodasforçasdeoposiçãoao
pemedebismoseestreitaram.Aforçadasruasfoisubstituídapoucoa
pouco pelo clamor da opinião pública. E a opinião pública foi sub-
stituídapelaopiniãodamídia.Paraobrigarosistemaamudar,pouco
quefosse,eranecessárioproduzircampanhasintensivasdedenúncias
vocalizadaspelamídia.AtéofinaldomandatodeItamarFranco,em
1994,asferramentasdeblindagemforamsendoproduzidas,testadase
aperfeiçoadas.Seudesenvolvimentosedeuaolongodosdoismanda-
tos consecutivos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
As forças de oposição ao pemedebismo cuidavam de traduzir as
campanhas midiáticas em termos de ações institucionais: criação de
Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), ações no Supremo
TribunalFederal(STF),mobilizaçõesemanifestaçõesdeprotestoloc-
alizadaselimitadas.Duranteumbomtempo,especialmenteaolongo
dogovernoFHC,oMovimentodosTrabalhadoresRuraissemTerra
(MST)foioúnicoqueconseguiurealizarmobilizaçõesdemassaque
confrontaramosistemapolítico.MasmesmooMSTdependiadamí-
dia para projetar e difundir suas ações.
Mudanças só vinham com “escândalos”, que são difíceis de
produzirporqueexigemumaexposiçãocontínuadosfatosdenuncia-
dos,comdesdobramentoseacréscimoconstantedenovoselementos.
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E,sobretudo,porquedependiamdofiltrodamídiadopaís,altamente
oligopolizada.Oepisódioemblemáticodoanode1993foiochamado
escândalodoOrçamento,emqueverbaspúblicaseramdesviadaspor
meiodeemendasparlamentares.Levouacassaçõesdemandato,ab-
solviçõeserenúncias.Eresultouemumareformadaelaboraçãodoor-
çamento e das próprias emendas parlamentares.
Comotempo,mesmoessejálimitadorecursodenuncistadeco-
brançaperdeuforça.Liderandoasforçasdeoposição,oPTreorientou
suaestratégiaepassouadarprioridadeabsolutaàconquistadopoder
federal,àeleiçãodeLula,emlugardeapostarnamobilizaçãosocialde
massa.Protestosantipemedebistassereduziramameroelementode
táticaeleitoralenãomaisatentativasdeexigirumareformaprofunda
dosistemapolítico.ApartirdogovernoFHC,poucasdenúnciasdefato
prosperaram a ponto de se tornar escândalos e provocar mudanças
significativas no sistema.
Aproduçãodeescândalospassouadependerdeenfrentamentos
abertosentreforçaspolíticasaliadas.Denúnciassóprosperavametin-
hamconsequênciasinstitucionaisquandofeitasemdisputaspúblicas
entrealiados.Foioqueaconteceunosdoisepisódiosmaismarcantes
dosanos2000:nadisputaentreossenadoresJaderBarbalhoeAnto-
nioCarlosMagalhães(entredezembrode2000emaiode2001),eno
mensalão (de junho a dezembro de 2005).
Em dezembro de 2000, o senador pela Bahia, Antonio Carlos
Magalhães,doentãoPFL,acusoupublicamenteopresidentedoSen-
ado,JaderBarbalho(PMDB,Pará),defraudesnaSuperintendênciade
DesenvolvimentodaAmazônia(Sudam)edeparticipaçãoemdesvios
de recursos no Banco do Estado do Pará. ACM denunciou o colega
tambémaoMinistérioPúblicoFederal.Oresultadofoiarenúnciade
ACM (em outro escândalo, conhecido como violação do painel de
votação)eaduplarenúnciadeJader,àpresidência doSenadoeao
mandato parlamentar.
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ApesardeoPTtersemantidodurantemaisdevinteanoscomo
representanteporexcelênciadoantipemedebismo,omesmofigurino
serepetiu noperíodo Lula (2003-2010), noescândalo domensalão,
em2005.OlíderdoPTBnaCâmara,RobertoJefferson,dabasealiada
dogovernoLula,equetinhaantessidolíderdogovernoFHC,pediu
ajudaparaquefossebarradaumainvestigaçãocontraumdiretordos
Correios, indicado pelo partido, acusado de receber propina.
Aoseconvencerdequeogovernoserecusarianãoapenasabarrar
a investigação como ainda iria responsabilizar seu partido pela cor-
rupção,Jeffersonconcedeuumaentrevistaemquedenunciouumes-
quema de arrecadação ilegal de fundos, o qual seria liderado pelo
ministro-chefedaCasaCivil,JoséDirceu,eseusaliadosinstaladosna
máquina partidária. Dezenove deputados estiveram sob investigação
naCâmara,seisdoPT.Quatrorenunciaramantesdoiníciodainvest-
igação.Amaioriafoiabsolvidadasacusaçõesnonívelparlamentare
trêsdeputadosforamcassados,entreosquaisJeffersoneDirceu.O
prosseguimentojudicialsedeunaAçãoPenal470,julgadapeloSTFno
segundo semestre de 2012.
Vendo-seacossadopelofantasmadoimpeachment,ogovernoLula
aderiuàideiapemedebistadeconstruçãodesupermaioriasparlament-
ares.Depoisdomensalão,norestantedoperíodoLula,completou-seo
desenvolvimento das ferramentas de blindagem pemedebistas, cujo
usocontinuoudemaneiraaindamaisostensivasobapresidênciade
DilmaRousseff,apartirde2011.Provadissosãooscasosemblemáti-
cosqueseseguiram.Emmaiode2007,foireveladoqueaempreiteira
MendesJúniorrepassavarecursosparapagamentodepensãoauma
amantedopresidentedoSenado,RenanCalheiros(PMDB,Alagoas),
ex-ministrodaJustiçadogovernoFHC.Foiabertoprocessodecas-
sação de seu mandato. Na votação secreta, em setembro, Calheiros
manteveomandato.Emdezembro,renunciouàpresidênciadoSen-
ado, mas foi novamente eleito para o cargo em fevereiro de 2013.