Table Of ContentAos meus vizinhos poloneses, Agnès
e Georges Barylski, meus amigos
da França, 77.
Acho que estaria muito mais disposto
a morrer por algo em que não acredito
do que pelas coisas que considero
verdadeiras...
Às vezes acho que a vida artística
é um longo e encantador suicídio, e
não lamento que seja assim.
Oscar Wilde em suas Cartas pessoais.
1
Tom estava no jardim quando o telefone tocou. Deixou que sua
governanta, Mme. Annette, atendesse, e continuou raspando o musgo
encharcado que pendia das laterais dos degraus de pedra. Era um outubro
chuvoso.
“M. Tome!”, gritou a voz de soprano de Mme. Annette. “É de Londres!”
“Já vou”, respondeu Tom. Jogou a pá de jardineiro no chão e subiu os
degraus.
O telefone do andar de baixo estava na sala. Tom não se sentou no sofá
de cetim amarelo porque estava com a calça suja.
“Alô, Tom. Jeff Constant. Você...” Piip.
“Pode falar mais alto? A ligação está péssima.”
“Está melhor assim? Eu estou ouvindo bem.”
As pessoas em Londres sempre ouviam bem. “Um pouco melhor.”
“Recebeu minha carta?”
“Não”, respondeu Tom.
“Sei. Estamos com problemas. Eu quis avisá-lo. Tem um...”
Ruídos, um som agudo, um clique, e a ligação caiu.
“Droga”, disse Tom em voz calma. Avisá-lo? Será que havia alguma coisa
errada com a galeria? Com a Derwatt Ltd.? Avisá-lo? Tom mal estava
envolvido. Ele idealizara a Derwatt Ltd., é verdade, e tirava uma pequena
renda dela, mas... Tom olhou para o telefone, esperando que tocasse
novamente. Ou será que deveria ligar para Jeff? Não, ele não sabia se Jeff
estava em seu estúdio ou na galeria. Jeff Constant era fotógrafo.
Tom caminhou para as janelas francesas que davam para o jardim dos
fundos. Pensou em continuar a raspar o musgo. Dedicava-se casualmente à
jardinagem, e gostava de passar uma hora por dia fazendo isso, aparando a
grama com o cortador manual, arrancando e queimando galhos secos,
tirando ervas daninhas. Era um exercício, e ele também podia devanear. Mal
havia recomeçado a trabalhar com a pá, quando o telefone tocou.
Mme. Annette estava entrando na sala, carregando um espanador. Ela era
baixa e corpulenta, quase sessenta anos, e bastante alegre. Não sabia uma
única palavra de inglês e parecia incapaz de aprender qualquer uma, até
mesmo “bom-dia”, o que convinha perfeitamente a Tom.
“Eu atendo, madame”, disse Tom, tirando o fone do gancho.
“Alô”, disse a voz de Jeff. “Escute, Tom, eu estava me perguntando se
você não poderia vir até aqui. Até Londres, eu...”
“Você o quê?” A ligação estava novamente ruim, mas não tanto quanto
antes.
“Eu disse... expliquei em uma carta. Não dá pra explicar por telefone. Mas
é importante, Tom.”
“Alguém cometeu algum erro?... Bernard?”
“De certa forma. Tem um sujeito vindo de Nova York, provavelmente
amanhã.”
“Quem?”
“Eu expliquei na carta. Você sabe que a exposição de Derwatt começa na
terça. Vou segurá-lo até lá. Ed e eu não vamos estar disponíveis.” Jeff
parecia bastante ansioso. “Você vai estar livre, Tom?”
“Bom... sim, vou.” Mas Tom não queria ir a Londres.
“Não deixe Heloise ficar sabendo. Que você vem para Londres.”
“Heloise está na Grécia.”
“Ah, isso é ótimo.” Foi a primeira vez que a voz de Jeff manifestou alívio.
A carta de Jeff chegou às cinco horas daquela tarde, expressa e registrada.
*
4 Charles Place
N. W. 8
Prezado Tom,
A nova exposição de Derwatt começa na terça-feira, dia 15, a primeira
em dois anos. Bernard tem quinze telas novas e outros quadros serão
emprestados. Agora vamos às más notícias.
Existe um americano chamado Thomas Murchison — um colecionador,
não um comerciante —, aposentado e com muita grana. Ele comprou um
Derwatt de nós há três anos. Comparou-o com um Derwatt anterior que
acabara de ver nos Estados Unidos, e agora diz que o dele é falso. É claro
que é, uma vez que foi Bernard quem o pintou. Ele escreveu para a Galeria
Buckmaster (para mim) dizendo que acha que a pintura que ele tem não é
genuína porque a técnica e as cores pertencem a um período de cinco ou
seis anos atrás na obra de Derwatt. Tenho a nítida impressão de que
Murchison pretende fazer um estardalhaço aqui. E o que vamos fazer a
respeito? Você sempre tem boas idéias, Tom.
Pode vir conversar conosco? Com todas as despesas pagas pela Galeria
Buckmaster? Precisamos de uma injeção de confiança mais do que
qualquer outra coisa. Não acho que Bernard tenha feito bobagem em
nenhuma das telas novas. Mas ele está perturbado, e não o queremos por
perto no dia de inauguração da exposição, principalmente nesse dia.
Por favor, se puder, venha imediatamente!
Um abraço,
Jeff
P. S.: A carta de Murchison era bem-educada, mas e se ele for do tipo
que vai insistir em procurar o Derwatt no México para verificar etc.?
Essa última observação era pertinente, pensou Tom, porque Derwatt não
existia. A história (inventada por Tom) que a Galeria Buckmaster e o
pequeno grupo de leais amigos de Derwatt contavam era que Derwatt tinha
ido morar em uma pequena aldeia no México e que não falava com
ninguém, não tinha telefone e proibia a galeria de dar seu endereço para
qualquer pessoa. Bem, se Murchison fosse ao México, teria uma busca
exaustiva, o suficiente para manter um sujeito ocupado pela vida toda.
O que Tom conseguia prever era Murchison — que provavelmente traria
seu quadro de Derwatt — conversando com outros marchands e em
seguida com a imprensa. Isso poderia levantar suspeitas, e Derwatt sumiria
sem deixar vestígios. Será que a gangue iria envolvê-lo naquela situação?
(Tom sempre pensava na turma da galeria, os velhos amigos de Derwatt,
como “a gangue”, embora ele odiasse o termo toda vez em que pensava
nele.) E Bernard poderia mencionar Tom Ripley, pensou Tom, não por
maldade, mas por conta de sua própria honestidade insana — quase cristã.
Tom havia conseguido manter limpa sua reputação, surpreendentemente
limpa, levando-se em conta tudo o que fazia. Seria muito embaraçoso se
aparecesse nos jornais franceses que Thomas Ripley, de Villeperce-sur-
Seine, marido de Heloise Plisson, filha de Jacques Plisson, o milionário
dono das Pharmaceutiques Plisson, planejara a lucrativa fraude da Derwatt
Ltd., e que havia anos tirava uma porcentagem dela, ainda que apenas dez
por cento. Pareceria vergonhoso demais. Até mesmo Heloise, cuja
moralidade Tom considerava quase inexistente, poderia reagir a isso, e
moralidade Tom considerava quase inexistente, poderia reagir a isso, e
certamente o pai dela pressionaria (cortando-lhe a mesada) para que ela se
divorciasse.
A empresa Derwatt agora era grande, e um colapso traria algumas
conseqüências. Os lucros da linha de materiais para pintura com a marca
“Derwatt” iriam cair, e a gangue — e Tom — recebiam royalties por eles. E
havia ainda a Escola de Arte Derwatt, em Perúgia, para velhinhas simpáticas
e garotas norte-americanas em férias, mas que mesmo assim também era
uma fonte de renda. A escola de arte ganhava menos dinheiro com o ensino
de arte ou a venda dos materiais “Derwatt” do que atuando como
imobiliária, encontrando casas e apartamentos mobiliados, dos mais caros,
para os estudantes turistas endinheirados, e ficando com uma porcentagem
de tudo. A escola era administrada por dois homossexuais ingleses, que não
estavam envolvidos na fraude de Derwatt.
Tom não conseguia se decidir quanto a ir ou não a Londres. O que ele
lhes diria? E também não conseguia entender o problema: seria impossível
que um pintor voltasse a uma técnica antiga, apenas para um quadro?
“M’sieur prefere costeletas de carneiro ou presunto frio para o jantar?”,
perguntou Mme. Annette.
“Costeletas, acho. Obrigado. E como está seu dente?” Naquela manhã,
Mme. Annette fora ao dentista do vilarejo, em quem tinha absoluta
confiança, para tratar um dente que a mantivera acordada durante toda a
noite.
“Não está doendo agora. O doutor Grenier é tão gentil! Falou que era um
abscesso, mas abriu o dente e disse que o nervo iria cair.”
Tom concordou com um movimento da cabeça, mas ficou se
perguntando como um nervo poderia cair. Gravidade, provavelmente. Certa
vez tiveram de cavar fundo para encontrar um de seus nervos, que também
estava em um dente superior.
“Recebeu boas notícias de Londres?”
“Não... bem... apenas um telefonema de um amigo.”
“Alguma notícia de Mme. Heloise?”
“Hoje não.”
“Ah, aquele sol da Grécia!” Mme. Annette estava passando um pano na
superfície já brilhante de uma enorme arca de carvalho ao lado da lareira.
“Olhe! Villeperce já não tem sol. O inverno chegou.”
“É.” Ultimamente, Mme. Annette dizia a mesma coisa todos os dias. Tom
não esperava ver Heloise até perto do Natal. Mas ela poderia aparecer
inesperadamente — por alguma briguinha boba com as amigas, ou apenas
por ter mudado de idéia quanto a ficar no navio por tanto tempo. Heloise
era impulsiva.
Tom colocou um disco dos Beatles para levantar o ânimo e ficou
andando pela sala, com as mãos nos bolsos. Adorava aquela casa. Era um
sobrado de pedra cinza de linhas quadradas com quatro pequenas torres
sobre quatro salas redondas no andar de cima, o que o tornava parecido
com um pequeno castelo. O jardim era enorme, e mesmo para os padrões
norte-americanos havia custado uma fortuna. O pai de Heloise lhes dera a
casa como presente de casamento três anos atrás. Na época anterior a seu
casamento, Tom havia precisado de algum dinheiro extra, pois o dinheiro
de Greenleaf não era suficiente para que desfrutasse do tipo de vida que
adotara. Então Tom se interessara por sua parte no negócio de Derwatt.
Agora estava arrependido. Havia aceitado dez por cento, quando dez por
cento eram muito pouco. Mesmo não imaginando que a empresa Derwatt
iria crescer da maneira como cresceu.
Tom passou aquela noite como passava a maioria das noites, sossegado e
sozinho, mas seus pensamentos estavam agitados. Deixou a vitrola estéreo
ligada em volume baixo durante o jantar, enquanto lia Servan-Schreiber em
francês. Havia duas palavras que Tom não conhecia. Iria procurá-las à noite
em seu exemplar do Harrap, que mantinha à cabeceira. Ele era bom em
guardar palavras na memória para procurar depois.
Depois do jantar, vestiu uma capa de chuva, embora não estivesse
chovendo, e caminhou até um pequeno café que ficava a uns quatrocentos
metros da casa. Tomava café lá em algumas noites, encostado no balcão.
Invariavelmente o proprietário, Georges, perguntava sobre Mme. Heloise, e
lamentava que Tom passasse tanto tempo sozinho. Naquela noite Tom
disse, com a voz alegre:
“Ah, duvido que ela fique naquele iate mais dois meses. Vai ficar
entediada”.
“Quel luxe”, murmurou Georges, em devaneio. Era um homem gorducho
com rosto redondo.
Tom não confiava em seu bom humor ameno e indefectível. A esposa
dele, Marie, uma morena grandalhona e enérgica que usava batom
vermelho brilhante, era francamente irascível, mas tinha uma maneira alegre
e selvagem de rir que a redimia. Era um bar de trabalhadores, e Tom não
tinha nada contra isso, mas não era seu bar favorito. Era apenas o mais
próximo. Pelo menos Georges e Marie nunca haviam se referido a Dickie
Greenleaf. Umas poucas pessoas em Paris, conhecidos seus ou de Heloise,
haviam perguntado, e também o proprietário do St. Pierre, o único hotel de
Villeperce. O proprietário perguntara: “Por acaso o senhor é aquele M.
Ripley que era amigo do americano Granelafe?”. Tom admitira que sim. Mas
isso acontecera três anos atrás, e uma pergunta assim — se não fosse além
disso — não irritava Tom, porém ele preferia evitar o assunto. Os jornais
haviam dito que ele recebera uma boa soma em dinheiro, alguns diziam
que era uma renda regular, o que era verdade, do testamento de Dickie.
Pelo menos nenhum jornal jamais havia insinuado que Tom fora o autor do
testamento, o que era verdade. Os franceses sempre se lembravam de
detalhes financeiros.
Depois do café, Tom caminhou de volta para casa, dizendo “Bonsoir”
para um ou dois moradores no caminho, escorregando de vez em quando
nas folhas encharcadas que se acumulavam na beira da rua. Não havia
calçada. Ele trouxera uma lanterna, porque a iluminação da rua era muito
irregular. Viu de relance aconchegantes cenas de famílias em cozinhas,
assistindo televisão, sentadas ao redor de mesas cobertas com toalhas de
plástico. Cachorros presos com correntes latiam em alguns quintais. Abriu
os portões de ferro — três metros de altura — de sua própria casa, e seus
sapatos rangeram de encontro ao cascalho. A luz do quarto de Mme.
Annette estava acesa. Ela ganhara sua própria televisão. Tom com
freqüência pintava à noite, apenas para sua própria diversão. Sabia que era
mau pintor, pior do que Dickie. Mas naquela noite não estava com
disposição para pintar. Em vez disso, escreveu para um amigo em
Hamburgo, Reeves Minot, um americano, perguntando-lhe quando achava
que iria precisar dele. Reeves iria plantar um microfilme, ou coisa parecida,
em um certo italiano, o conde Bertolozzi. Quando o conde fosse visitar Tom
em Villeperce, por um dia ou pouco mais, Tom retiraria o objeto
implantado em sua mala — ou em outro lugar, conforme o que Reeves
indicasse — e o despacharia para um homem que Tom não conhecia em
Paris. Tom freqüentemente realizava esses serviços de receptação, às vezes
de jóias roubadas. Era mais fácil se ele removesse os objetos de seus
hóspedes do que se alguém tentasse fazê-lo em um quarto de hotel em
Paris, quando o portador não estivesse presente. Tom conhecia o conde
Bertolozzi superficialmente, de uma recente viagem a Milão, onde Reeves,
Description:A paz do respeitável criminoso Tom Ripley em sua bela casa francesa é interrompida por um telefonema de Londres. Um de seus sócios num negócio de falsificação de quadros do falecido pintor Derwatt - que eles fingem estar vivo - está apavorado com a possibilidade de tudo ser descoberto. Um emp