Table Of ContentPENSANDO A FAMÍLIA NO
BRASIL
AUTORES
Angela Mendes de Almeida
Historiadora, doutorada em Paris,
ANGELA MENDES DE ALMEIDA membro do corpo permanente do
Curso de Pós-Graduação em De-
senvolvimento Agrícola da Univer-
ENI DE MESQUITA SAMARA
sidade Federal Rural do Rio de Ja-
neiro — CPDA/UFRRJ
GILBERTO VELHO
Eni de Mesquita Samara
Doutora em História, faz parte do
KÁTIA MURICY
Departamento de História da Fa-
culdade de Filosofia, Letras e
LEILA UNHARES BARSTED Ciências Humanasda Universida-
de de São Paulo
MARGARETH DE ALMEIDA
GONÇALVES Gilberto Velho
Antropólogo doutorado pela Uni-
versidade de São Paulo, integra o
MARIA JOSÉ CARNEIRO
corpo docente do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia
ROBERTO DA MATTA Social do Museu Nacional/UFRJ
Kitia Muricy
^SÉRVULO AUGUSTO FIGUEIRA Filósofa com doutorado na Ponti-
fícia Universidade Católica do Rio
SILVANA GONÇALVES DE PAULA de Janeiro, onde trabalha como
professora e pesquisadora do De-
partamento de Filosofia
Angela Mendes de Almeida (org.)
Eni de Mesquita Samara
Gilberto Velho
Kátia Muricy
Leila Linhares Barsted
Margareth de Almeida Gonçalves
Maria José Carneiro (org.)
Roberto Da Matta
Sérvulo Augusto Figueira
Silvana Gonçalves de Paula (org.)
PENSANDO A FAMÍLIA
NO BRASIL
DA COLÔNIA A MODERNIDADE
Co-edição Espaço e Tempo/Editora da UFRRJ
Rio de laneiro
1987
© 1987, Editora Espaço e Tempo Ltda.
Rua Francisco Serrador, 2 — grupo 604 — Centro
Rio de Janeiro — RI — CEP 20.031
Tel.: 262-2011
A direção do CPDA sente-se feliz por trazer a público o
Capa: Vanja Freitas
presente volume, que colige as exposições e sumariza os debates
levados a efeito por ocasião do Seminário Pensando a Família
Ilustração da capa: Rugendas (Família de fazendeiros)
no Brasil, realizado em setembro de 1985. O seminário resul-
tou dos trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos da Fa-
mília do CPDA. Criado em 1984, o Núcleo abriu uma nova
área de debates e pesquisas dentro da instituição, que vê, assim,
consolidar-se sua vocação ao trabalho interdisciplinar.
Finalmente na oportunidade desejamos agradecer ao Deca-
nato de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal Ru-
ral do Rio de Janeiro na figura de seu decano, Prof. Manlio
Silvestre pelo apoio dado tanto na realização do Seminário quan-
to à sua publicação.
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Rio de Janeiro, abril de 1987
Pensando a família no Brasil; da colônia à moder-
P467 nidade / Angela Mendes de Almeida... |et al|.
— Rio de Janeiro: Espaço e Tempo: UFRRJ, 1987. Jorge O. Romano
Coordenador do CPDA/UFRRJ
Vários colaboradores.
ISBN — 85-85114-20-7
1. Família-Brasil. 2. Antropologia. I. Almeida,
Angela Mendes de.
87-0357 CDU — 306.8
CDU — 17.023.32(81)
ISBN — 85-85114-20-7
SUMÁRIO
Apresentação, 9
Introdução, 13
Angela Mendes de Almeida, Maria José Carneiro e Silvana
1. Pensando a família no Brasil
Gonçalves de Paula
Vários autores
2. O embuste das dívidas externas — Exportar não é a solução
Jacques Dezelin FAMÍLIA ATRAVÉS DA HISTÓRIA:
REPRESENTAÇÕES E PRATICAS, 23
Tendências atuais da história da família no Brasil, 25
Eni de Mesquita Samara
Expostos, roda e mulheres: a lógica da ambigüidade
médico-higienista, 37
Margareth de Almeida Gonçalves
Notas sobre a família no Brasil, 53
Angela Mendes de Almeida
FAMÍLIA E CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE, 67
O indivíduo e a sociedade em Machado de Assis, 69
Kátia Muricy
Família e subjetividade, 79
Gilberto Velho
O papel da psicanálise no entendimento da construção da
subjetividade, 89
Sérvulo Augusto Figueira
CRISE DA FAMÍLIA: UMA QUESTÃO DA APRESENTAÇÃO
ATUALIDADE?, 101
Permanência ou mudança? O discurso legal sobre a
família, 103
Leila Linhares Barsted
A família como valor: considerações não-familiares sobre
família à brasileira, 115
Roberto Da Matta O Núcleo de Estudos da Família, do Curso de Pós-Gradua-
ção em Desenvolvimento Agrícola (CPDA), da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), veio amadurecendo
longamente a idéia de um seminário sobre família. Nosso obje-
tivo era trocar experiências com outros estudiosos da temática,
combinando pontos de vista interdisciplinares e alargando dessa
forma o leque das questões abordadas e o diálogo entre elas. O
Seminário Pensando a Família no Brasil, realizado em 26 e 27
de setembro de 1985, sob o patrocínio do CNPq, teve a seguinte
programação:
1. Família e estratégia de sobrevivência
Expositoras:
Maria Rosilene Barbosa Alvim (IFCS/UFRJ)
Beatriz Maria A. de Heredia (IFCS/UFRJ)
Maria Coleta F. A. de Oliveira (FAU/USP)
2. Família através da História: representações e práticas
Expositoras:
Eni de Mesquita Samara (Depto. de História —
FFLCH/USP)
Margareth de Almeida Gonçalves (CESAP/SBI)
Angela Mendes de Almeida (CPDA/UFRRJ)
3. Família e construção da subjetividade
Expositores:
Gilberto Velho (Museu Nacional/UFRJ)
Sérvulo Augusto Figueira (Depto. de Psicologia Social/
PUC-RJ)
Kátia Muricy (Depto. de Filosofia/PUC-RJ)
100
4. Crise da família: uma questão da atualidade? trutura fundamental de valores e de mentalidades. Como se
Expositores: verá, as outras três mesas temáticas mantêm entre si muito mais
Leila Linhares Barsted (IDAC/RJ) pontos em comum, de modo que se estabeleceram entre os de-
Roberto Da Matta (Museu Nacional/UFRJ) bates alguns fios condutores com continuidade e interligação.
Foram estas reflexões que nortearam nossa escolha sobre
Desde o início, nossa intenção era também a de transformar o caráter da presente publicação. Queremos agradecer o apoio
o material produzido no Seminário em alimentação para novos inestimável que nos foi oferecido pelo CNPq, pelo Centro de
debates e alargamento do intercâmbio. Mas considerávamos que Estudos Sociais Aplicados (CESAP)/Cândido Mendes e pelas
essa publicação deveria ao mesmo tempo refletir a contribuição instâncias dirigentes da Universidade Federal Rural do Rio de
do evento para o amadurecimento do trabalho do Núcleo de Janeiro.
Estudos da Família. Nos diversos balanços de avaliação, bem
como nos encaminhamentos concretos para a publicação desse
material, delineou-se o caráter do conjunto de textos que ora
apresentamos. Em primeiro lugar, decidimos publicar as inter-
venções apresentadas pelos diversos expositores, dando conta
na Introdução das questões mais importantes suscitadas no de-
bate entre os expositores e a platéia. Para a publicação das in-
tervenções solicitamos aos próprios autores uma revisão, e isto
explica o caráter heterogêneo dos textos, alguns mais coloquiais,
outros menos, fruto da opção de cada expositor. Quanto à In-
trodução, para além da mera transcrição das discussões, tive-
mos a preocupação de reinseri-las na problemática da pesquisa
do Núcleo, dando conta assim da contribuição fornecida pelo
debate.
Em segundo lugar, em função do caráter que escolhemos
para a publicação, bem como de determinações de ordem ma-
terial, fomos levadas a não incluir nesse conjunto as exposições
da primeira mesa temática, "Família e Estratégias de Sobrevi-
vência", uma vez que as questões suscitadas no debate em torno
desse tema escapam de certa forma ao perfil dominante nas
discussões que se travaram no evento. Nosso objetivo com o
Seminário era o de ao mesmo tempo abranger pontos de vista
diversos no estudo da família e mostrar quão grande é a gama
de abordagens possíveis, e esse objetivo foi conseguido com a
inclusão da primeira mesa temática. No entanto, a família vista
como articuladora de estratégias de sobrevivência, escapou, de
certa forma, à tendência predominante no conjunto das dis-
cussões, preocupada essencialmente com a família enquanto es-
10 11
INTRODUÇÃO
A discussão sobre família, enquanto uma porta de entrada
para a compreensão de uma sociedade, começa com o questio-
namento sobre o significado do termo família e sobre o estatuto
teórico que damos a ele. Ou seja, o que pretendemos circunscre-
ver ao definirmos família? Trata-se de um grupo concreto com-
posto por um certo número de pessoas ligadas por consangüi-
nidade ou aliança e que ocupam lugares diferentes numa
hierarquia interna de poder e de papéis? Ou trata-se de uma
representação social que os diversos grupos e sociedades fazem
das relações de aliança e de consangüinidade, sendo, nesse sen-
tido, não uma realidade positiva visível, mas uma realidade
simbólica — e portanto construída — que expressa, produzin-
do, reproduzindo e legitimando valores que transcendem as
fronteiras do grupo, uma mentalidade, uma maneira de se situar
na vida? É praticamente inevitável discutir a questão do esta-
tuto teórico do termo família sem recorrer aos dados empíricos
da realidade. Isto, por paradoxal que possa parecer à primeira
vista, não se deve a nenhum recurso discursivo, mas sim à pos-
tura de que toda teoria deve dar conta e integrar estes dados.
No entanto, a análise do social, em qualquer nível de recorte
em que se realize, implica em conjugar os fatos empíricos e os
simbólicos, dentro da concepção de que a realidade é consti-
tuída por ambos. Além disso, numa sociedade que se percebe
historicamente, é importante levar em conta a inserção desses
fatos numa perspectiva de grandes períodos históricos, como é
feito pelos estudiosos das mentalidades.
Falar de família no Brasil implica necessariamente em se
remeter a uma formulação já clássica sobre o tema que é a de
família patriarcal elaborada por Gilberto Freyre. Em Casa-
li
grande & senzala como em seus livros subseqüentes, Gilberto — Casa-grande & senzala é de 1933 — induz-nos a uma outra
Freyre delineia o perfil da família patriarcal brasileira no pe- série de indagações: até que ponto o modelo gilbertiano de
ríodo colonial, e nos períodos posteriores (Sobrados e mocam- família patriarcal não seria uma construção ideológica das pri-
meiras décadas deste século e sem base empírica alguma na
bos). Esse perfil tem sido objeto de várias leituras, dentre as
história? Tratar-se-ia, então de uma "criação genial" de Gilberto
quais, tendo-se em vista o debate sobre o estatuto teórico possí-
Freyre? Sendo assim, como explicar que a idéia tenha sido tão
vel para o termo família, podemos destacar basicamente duas.
amplamente aceita por diferentes setores da intelectualidade e
A primeira leitura do perfil gilbertiano de família patriar-
da sociedade brasileiras enquanto outras "invenções", como a
cal brasileira reivindica a comprovação dos argumentos de Frey-
de sociedade "democrática" e "antiautoritária", por mais que
re no sentido de testá-los enquanto válidos para explicar o que
tenham sido propagandeadas desde o século XIX, com José
poderíamos chamar de organização familiar. Pesquisas históri-
Bonifácio, por exemplo, nunca tiveram a mesma aceitação,
cas sobre o período colonial brasileiro em diferentes áreas do
nunca "pegaram"? Seria a "família patriarcal" uma construção
território — particularmente as referentes ao sul — permitem 2
ideológica, um mito recente sobre o passado da sociedade brasi-
que se argumente contra os dados levantados por Freyre para
leira? O que justificaria então o surgimento e a necessidade
a elaboração da arqueologia da família brasileira. Isto sugere
desse mito?
uma série de questões tais como: qual a abrangência da família
patriarcal brasileira para o Brasil como um todo? Pesquisas Uma segunda leitura de Gilberto Freyre interpreta seu per-
históricas sobre estratos sociais não dominantes também não fil de família patriarcal brasileira como uma construção ideoló-
parecem encontrar aqueles elementos e personagens utilizados gica que, constituída de traços básicos do comportamento
por Freyre para montar o quadro da família patriarcal, o que
familiar, serve de referência para a prática no que tange a pa-
nos remete a questões como: qual a verticalidade do modelo
drões de relações afetivas, sexuais, de solidariedade e de hosti-
gilbertiano? Trata-se de um modelo válido apenas para os seg-
lidade. Neste sentido, o modelo de Freyre aparece, não como
mentos dominantes da sociedade brasileira? O que esses traba-
uma descrição da família brasileira, mas como uma represen-
lhos indicam, é que o modelo de Gilberto Freyre, enquanto
tação dela. Tal perspectiva não interpreta o modelo enquanto
modelo de organização familiar, só seria encontrável entre uns
uma realidade demonstrável a partir da organização familiar,
poucos senhores de engenho nordestinos todo-poderosos, com
1 mas enquanto ética que envolve o conjunto de suas relações.
as mulheres submissas e preguiçosas em suas redes, as filhas
O modelo gilbertiano funciona assim como critério, como me-
castas, os filhos amamentados e embalados por negras de boa
dida de valor para a vida familiar e para as pessoas nela envol-
saúde, amados pelas escravas jovens, os moleques, as crias ile-
vidas. O conteúdo dos argumentos de Freyre permite que se
gítimas, os agregados, os afilhados, os parentes, os amigos, o
conceba seu modelo como uma representação de família enquan-
padre etc., todos "como se fossem da família".
to um grupo estruturado numa hierarquia, que embora forte —
Isto nos levaria a uma relativização do modelo gilbertiano "todo mundo conhece seu lugar" —, está a cada momento sendo
que o transformaria numa crônica de algumas famílias recifen- subvertida, real ou aparentemente, por força de favores entre
ses e um mito para o restante do Brasil colonial. Um mito que, as pessoas hierarquizadas. Isto permite que pensemos o modelo
tendo sido construído no contexto das décadas de 20 e de 30
de família patriarcal como uma estrutura de relações entre desi-
1 Sobre este tipo de abordagem, ver a contribuição de Eni de Mesquita 2 Este foi o questionamento provocativo feito no debate por Roberto
Samara neste volume. Da Matta.
15 11
guais: pais e filhos, homem e mulher, branco e negro, senhor a valores tidos como positivos, tais como: ser poderoso, ter ami-
e escravo, senhor e agregado e assim por diante. gos poderosos, "arranjar marido", ter "um marido que sustenta,
3
a casa", e assim por diante, como se a realidade ou "a sorte
Esta orientação nos sugere que pesquisas históricas que se
de cada um" estivesse em desacordo com o que "deveria ser",
debruçassem sobre documentos, com o objetivo de deles extrair
com o modelo, com o ideal de homem, de mulher, de relação
um material menos fatual e mais ideológico, poderiam demons-
entre homem e mulher, entre senhor e escravo, entre diferentes.
trar que o modelo gilbertiano sintetiza a lógica das decisões
familiares no tocante aos processos de perfilhamento, "divór- Outra questão a que o modelo gilbertiano nos remete é a
cio", herança e alforria, processos exemplares para se perceber seguinte: essa estrutura de relações entre diferentes que a famí-
lia patriarcal estabelece como desiguais, encobre o quê e revela
a distinção entre o "bem" e o "mal", ou seja, entre o "legítimo"
o quê? O que ela encobre já vem sendo desvendado há um
e o "ilegítimo". Os livros de memória e de histórias familiares
certo tempo: o fortíssimo grau de exploração e subordinação
também permitiriam esse tipo de constatação ao revelarem os
existente na sociedade brasileira. O que ela revela é uma ma-
sentimentos de sucesso ou insucesso medidos em valores como 4
neira sui generis de exercer a exploração e a subordinação: a
os ressaltados por Freyre.
brandura advinda da intimidade entre "superiores" e "inferio-
Enquanto estrutura de relações entre desiguais, o modelo
res". De modo que todos manuseiam dois códigos a um só tem-
gilbertiano também é tomado como instrumento importante para
po; todos são desiguais mas simultaneamente aparecem como
que pensemos a sociedade brasileira contemporânea, não so-
iguais. A brandura da intimidade entre "superiores"e "inferiores"
mente no tocante à mentalidade que rege a vida familiar, mas
amortece o conflito inerente à situação de desigualdade social.
inclusive à ética social e política abrangente. Nessa linha, argu-
Essas duas interpretações da obra de Gilberto Freyre são
menta-se que Freyre tenha conseguido articular aquilo que seria
exemplares de dois dos planos de análise possíveis para o tema
o arquétipo de um modo de pensar tipicamente brasileiro que
família brasileira. A opção por um desses planos não garante,
informaria nossa prática privada e pública.
de per si, a solução de todas as questões atinentes ao tema,
As questões em que esse tipo de leitura de Gilberto Freyre
pois ambos têm suas limitações. Assim, se tomamos família
implica são as relativas ao caráter dominante dessa construção
enquanto um fato empírico podemos dar conta da diversidade
ideológica para o conjunto da sociedade. Assim, critica-se a
de formas de organização familiar ao longo do tempo, nas dife-
abrangência desse modelo para estratos ou classes sociais, ou
rentes regiões e segmentos sociais. Com isso, chegaríamos à
mesmo circunstâncias pessoais em que não se têm as condições
relativização de todas as formulações de ordem mais geral e no
de concretização dele. Isto vem sendo contestado com a argu-
limite nenhuma teoria sobre família seria possível. Nenhum
mentação de que, mesmo em condições adversas à sua realiza-
conhecimento seria atingível pois cada caso seria um caso, cada
ção, o modelo continua sendo legitimado pela sociedade. Situa-
período histórico seria único, cada região uma região, cada gru-
ções de não-atualização do modelo são, em referência a ele,
po um grupo e assim por diante. Ademais, não seria possível
definidas negativamente: não ser poderoso, não ter amigos pode-
explicar como se articulam as diferentes regiões, as diferentes
rosos, ser "solteirona", ser "mãe solteira", ser "mulher abando-
classes sociais e os diferentes períodos históricos. Essa corrente,
nada", ser mulher que "tem que sustentar a casa". Todas essas
portanto, se por um lado enriquece o tema com cuidadosas aná-
e muitas outras são situações em que se vivência a infelicidade;
infelicidade definida implícita ou explicitamente por oposição
4 O trabalho de Leila Linhares Barsted neste volume examina histori-
camente, através da legislação, a situação da mulher brasileira, chaman-
3 As contribuições de Angela Mendes de Almeida e Roberto Da Matta do a atenção para a conveniência contraditória entre sua autonomia
situam-se mais dentro desta segunda leitura. enquanto cidadã e sua subordinação civil enquanto esposa.
16 11
lises descritivas e levantamentos históricos, esquiva-se, pela conteúdo ideológico tem, a nosso ver, o grande mérito de possi-
forma mesma em que o objeto de estudo é construído, tanto de bilitar o conhecimento de um parâmetro comum a toda forma
explicar a diversidade e a mudança histórica como de construir de diversidade de organização familiar, assim como permite
um fio que conecte a diversidade e a história. No limite, a his- perceber o fio condutor das mudanças ao longo do tempo. Dela
tória só seria possível numa microordem, na ordem do singular. pode surgir como interessante ponto de reflexão a questão da
Por outro lado, a opção por um plano de análise que privi- modernidade na sociedade brasileira. Ao lado da modernização
legie, no tema família, o aspecto de representação social, lança- da base material da sociedade, podemos, através desse veio inter-
nos num problema complexo das ciências sociais que é o da pretativo, investigar o processo pelo qual as mudanças concretas
intrincada articulação entre o real empírico — a prática — e são articuladas com noções e valores já enraizados no imaginá-
o real simbólico — a ideologia. • Para o caso que acabamos de rio social. Dessa forma podemos perceber como as construções
ver — o da família patriarcal de Gilberto Freyre —, a pergunta ideológicas conjugam valores tão díspares como são, por exem-
é: como esse modelo pode sustentar-se enquanto ideal para uma plo, os ideais liberais dos séculos XVIII e XIX e o escravismo.
realidade empíriéa polimorfa, onde em grande número as famí- Ou ainda, a modernização do Estado nos termos de seus apa-
lias se organizam de modo tão dispare do descrito? ratos formais e legais depois de 1930 e o seu descompasso com
a sociedade civil.
Essa questão tem sido enfocada de duas maneiras. Em
primeiro lugar, argumenta-se que os modelos — como é o caso Na tradição ocidental, a questão da modernidade tem como
do modelo gilbertiano — não se propõem a retratar a realidade núcleo fundamental uma determinada noção de indivíduo, livre
como ela é, mas sim como ela é pensada e vivida. Nesse sentido, de laços impostos pelas relações de cunho pessoal. A realidade
um modelo não é algo dado, mas algo construído. A validade da histórica do advento do capitalismo ocidental, que transforma
construção é tanto maior quanto mais questões ela for capaz o homem em força de trabalho livre para o mercado, corres-
de resolver de modo a harmonizar as contradições. Assim, as di- ponde uma noção de indivíduo para quem a sociedade existe
ferenças de organização e as mudanças materiais não significam como espaço de plena realização, visto estarem banido? os en-
automaticamente uma alteração na forma de pensar e articular traves de ordem pessoal. Em tese, todas, as oportunidades pas-
as contradições. No caso da família brasileira, o modelo gilber- sam a ser possíveis para todos e todos têm acesso a elas, inde-
tiano aparece como instrumento pertinente de análise ideoló- pendentemente de linhagem ou de vassalagem. O indivíduo
gica, na medida em que é uma construção que encampa uma aparece como valendo por si e acaba por constituir objeto de
série de contradições existentes não só nos limites das unidades saberes específicos como a psicologia e a psicanálise, cujas aten-
familiares, mas que os transcendem, como são as questões eco- ções estão voltadas para ele enquanto unidade articuladora de
nômicas, afetivas, sexuais, raciais e de poder. razão, de sentimento, de criação, de sexualidade e de constru-
Em segundo lugar, o argumento de que o fato ideológico ção de uma imagem de si e dos outros. A linhagem, o grupo, a
é um fato construído socialmente permite que se investigue a nação cedem lugar ao indivíduo enquanto sujeito da história.
sociedade enquanto conjunto de agências formuladoras e arti- Essa noção de indivíduo como valor social, livre do des-
culadoras de padrões de comportamento e de mentalidade. tino que lhe seria imposto por uma linhagem, está associada a
5
Essa linha interpretativa que privilegia no tema família seu uma determinada visão de família: a família nuclear burguesa,
representada como espaço privado e atomizado da vida social.
6
5 Ê nesta seara que se situam os trabalhos de Margareth Gonçalves e
de Kátia Muricy. Embora as autoras tratem de objetos diferentes, am-
bas nos remetem ao caráter construído dos padrões de sentimento, de 6 Ver Eli Zaretsky, O capitalismo, a família e a vida privada, Lisboa,
comportamento e de mentalidade. Iniciativas Editoriais, 1976; Philippe Ariès, História social da criança
19 11
